"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/09/2023

Jurisprudência 2023 (3)


Pedido de reivindicação; pedido de demarcação
compatibilidade*


1. O sumário de RP 9/1/2023 (41/21.4T8BAO.P1) é o seguinte:

I - Enquanto a ação de revindicação pressupõe a definição precisa da coisa imóvel reivindicada, nomeadamente dos seus limites, operando a restituição dentro desses limites, a ação de demarcação implica necessariamente uma situação de incerteza ou dúvida quanto a uma ou várias estremas do imóvel a demarcar, destinando-se precisamente à definição precisa das linhas que permitem a determinação das referidas estremas.

II - Sendo a pretensão principal do autor a de demarcação do seu prédio do prédio dos réus, indicando para tanto, por remissão para uma planta e em função daquilo que considera título para efeitos de demarcação, a linha divisória dos referidos imóveis e pedindo apenas por efeito da procedência da linha divisória que reputa ser a correta a demolição de um muro e de uma garagem situados dentro da referida linha divisória, não existe incompatibilidade substancial de pedidos ou incompatibilidade de causas de pedir geradoras de ineptidão da petição inicial.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"O recorrente sustenta inexistir incompatibilidade substancial dos pedidos por si deduzidos em primeiro e segundo lugar com o que foi deduzido em último lugar.

Para tanto argumenta que os dois primeiros pedidos são “pedidos típicos de uma ação de demarcação, não restando dúvidas sobre os factos essenciais constitutivos da situação jurídica que o A. pretende fazer valer” e que “não pretende obter a declaração de que é proprietário, nem tampouco discutir a sua amplitude, apenas definir as extremas de dois prédios contíguos, de proprietários distintos, em relação aos quais existe uma indefinição das respectivas extremas e, consequentemente, quanto ao domínio relativamente a uma faixa de terreno, no sentido de saber onde acaba um prédio e começa o outro.”

Cumpre apreciar e decidir.

Retomando, com alterações e correções, o que se escreveu no acórdão proferido em 14 de novembro de 2022, no processo nº 2041/21.6T8PNF.P1, com intervenção deste colectivo, a ação de reivindicação permite ao titular do direito de propriedade ou de outro direito real exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa de que é titular o reconhecimento do seu direito e a consequente restituição da coisa que lhe pertence ou sobre a qual tem outro direito real que não o direito de propriedade (artigos 1311º, nº 1 e 1315º, ambos do Código Civil).

Na eventualidade de ser reconhecido o direito de propriedade ou outro direito real, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei (artigo 1311º, nº 2, do Código Civil), isto é, desde que exista norma legal que permita ao possuidor ou detentor a manutenção da posse ou detenção, não obstante o reconhecimento do direito de propriedade ou outro direito real de gozo ao reivindicante.

No entanto, na realidade diária e, além do mais, dadas as limitações do nosso sistema registral quanto à precisa e inequívoca definição da composição, área e limites dos imóveis descritos [---], é frequente o reconhecimento do direito de propriedade sem a concomitante imposição do dever de restituição da coisa a que respeita o direito reconhecido.

Enquanto meio de defesa de um direito real, a ação de reivindicação pressupõe a precisa identificação e delimitação da coisa reivindicada [---].

Porém, por variadas vicissitudes, como seja a ignorância dos limites dos prédios e a identidade dos confrontantes, seja em consequência do crescente afastamento das pessoas da terra, seja ainda em decorrência de encobertas ações de usurpação, nem sempre a delimitação dos imóveis se acha definida de forma inequívoca e indiscutida, com a existência de marcos respeitados pelos confinantes ou com outros sinais igualmente respeitados, como sejam muros, fragas, ribeiros, etc…

Nesta eventualidade, em ordem a dissipar as dúvidas existentes quanto aos limites dos prédios, o proprietário tem o direito potestativo de exigir aos proprietários confinantes que concorram para a demarcação das estremas entre o seu prédio e os deles (artigo 1353º, do Código Civil).

De forma sintética, pode dizer-se que enquanto a ação de revindicação pressupõe a definição precisa da coisa imóvel reivindicada, nomeadamente dos seus limites [---], operando a restituição dentro desses limites, a ação de demarcação implica necessariamente uma situação de incerteza ou dúvida quanto a uma ou várias estremas do imóvel a demarcar, destinando-se precisamente à definição precisa das linhas que permitem a determinação dos limites dos prédios em que se regista essa incerteza.

Tem sido jurisprudência constante [Sem preocupações de exaustividade, por ordem cronológica, vejam-se os seguintes acórdãos, todos acessíveis na base de dados da DGSI: acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de janeiro de 2003, processo 02A1029; acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 09 de outubro de 2008, processo 1192/08-3; acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 31 de outubro de 2013, processo 98/11.6TBNIS.E1; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 05 de abril de 2018, processo 75/15.8T8TMC.G1; acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25 de janeiro de 2021, relatado pelo Sr. Desembargador segundo-adjunto nestes autos, processo 4029/18.4T8STS.P1; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25 de março de 2021, processo 768/21.0T8BRG-B.G1; acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13 de julho de 2021, processo 500/20.6T8ALB.P1 e acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15 de fevereiro de 2022, processo 768/21.0T8CVL.C1.], ao menos à luz da jurisprudência publicada, a afirmação de que existe incompatibilidade substancial de pedidos no caso de cumulação real de pedido de reivindicação e de demarcação [---].

No entanto, recentemente, alguma doutrina tem questionado essa jurisprudência [Referimo-nos aos comentários críticos do Sr. Professor Teixeira de Sousa aos acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 25 de março de 2021, processo 768/21.0T8BRG-B.G1 e do Tribunal da Relação do Porto de 13 de julho de 2021, processo 500/20.6T8ALB.P1, publicados no blogue do IPPC, respetivamente, em 25 de outubro de 2021 e em 30 de março de 2022 e ao comentário crítico do Sr. Juiz Conselheiro Urbano Aquiles Dias também publicado no blogue do IPPC em 27 de março de 2022 e intitulado “Da não incompatibilidade entre os pedidos de reivindicação e de demarcação”.], com argumentos ponderosos do ponto de vista dogmático e de uma adequada e eficiente gestão dos instrumentos processuais, sendo de admitir desenvolvimentos futuros na jurisprudência, aderindo ou criticando essas posições doutrinais.

Pela nossa parte, não cremos que exista uma verdadeira incompatibilidade de efeitos jurídicos entre o pedido de reivindicação e de demarcação, pois que também a reivindicação, na sua vertente de restituição, implica a prévia definição precisa dos limites do imóvel a restituir e, por outro lado, da definição das estremas entre os prédios em ação de demarcação pode resultar demonstrada uma violação desses limites, nomeadamente com a realização de construções dentro dos limites determinados em sede de ação de demarcação.

A nosso ver, incompatibilidade existe sim ao nível das causas de pedir pois que enquanto a reivindicação pressupõe a certeza quanto aos limites do imóvel reivindicado, a demarcação envolve necessariamente uma incerteza quanto à definição de uma ou mais confrontações do prédio a demarcar, surgindo a pretensão de demarcação precisamente para pôr termo a tal situação de dúvida.

Importa ainda reter que a incerteza dos limites dos prédios nem sempre é inicial, surgindo amiúde no desenvolvimento da lide, muitas vezes por força das contingências probatórias, o que deve motivar alguma reflexão sobre os meios a adotar para uma mais eficiente utilização dos meios processuais e para uma tanto quanto possível expedita resolução do conflito em que as partes estão envolvidas.

No caso em apreciação importa antes de mais verificar se, como se pressupõe na decisão recorrida, na petição inicial foram efetivamente deduzidos em cumulação real pedidos de reivindicação e de demarcação [---].

Atentando na integralidade da petição inicial e especialmente nos artigos 13, 14, 24, 25, 27 e 30 a 34 da petição inicial, verifica-se que a pretensão principal do autor é a de demarcação do seu prédio do prédio dos réus, indicando para tanto, por remissão para uma planta e em função daquilo que considera título para efeitos de demarcação [---], a linha divisória dos referidos imóveis e apenas por efeito da linha divisória que reputa ser a correta e que indica no artigo 30 da petição inicial, surgem os pedidos de demolição do muro e da garagem.

De facto, há alguma inépcia do autor na “arrumação” dos pedidos que a final deduz, já que, se não se tiver em conta a globalidade da petição inicial e a sua razão de ser, pode ficar-se com a ideia errada a nosso ver, como sucedeu com o tribunal recorrido, que os dois primeiros pedidos correspondem a uma autónoma pretensão reivindicatória, enquanto o terceiro pedido corresponde a uma pretensão de demarcação.

Na realidade, os dois primeiros pedidos acham-se com o terceiro pedido numa espécie de subsidiariedade invertida, se nos é lícita a expressão, na medida em que são para ser conhecidos no caso de procedência do terceiro pedido. Em bom rigor, o primeiro e o segundo pedido formulados nesta ação, olhando ao integral conteúdo da petição inicial, são pedidos dependentes, sendo principal o pedido de demarcação.

Nesta leitura da petição inicial não só não existe qualquer incompatibilidade substancial de pedidos como nem sequer se verificam causas de pedir contraditórias, na medida em que a pretensão de demolição do muro e da garagem e do respeito do direito do autor definido pela linha divisória que o mesmo indica surgem como mera decorrência da procedência da pretensão de demarcação e no pressuposto que a linha divisória vem a ser fixada nos termos indicados pelo autor.

Assim sendo, não se verifica a incompatibilidade substancial de pedidos que o tribunal recorrido entendeu existir, não enfermando deste modo a petição inicial de ineptidão e ficando prejudicado o conhecimento da questão enunciada para ser conhecida em segundo lugar."

*3. [Comentário] Como se refere no acórdão não se encontra nenhuma incompatibilidade entre o pedido de reivindicação e o pedido de demarcação, nem sequer ao nível das causas de pedir.

Considerem-se as palavras do recorrente: “não pretende obter a declaração de que é proprietário, nem tampouco discutir a sua amplitude, apenas definir as extremas [sic] de dois prédios contíguos, de proprietários distintos, em relação aos quais existe uma indefinição das respectivas extremas e, consequentemente, quanto ao domínio relativamente a uma faixa de terreno, no sentido de saber onde acaba um prédio e começa o outro.". Pergunta óbvia: como é que se pode discutir as "extremas de dois prédios contíguos" e o "domínio relativamente a uma faixa de terreno" sem discutir a "amplitude" da propriedade?

MTS