"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



11/07/2023

Jurisprudência 2022 (223)


Recurso; "questão nova";
acção de reivindicação; acção de demarcação*


1. O sumário de RP 14/11/2022 (
1711/19.2T8PNF.P1) é o seguinte:

I - O Tribunal da Relação goza no âmbito da reapreciação da matéria de facto dos mesmos poderes e está sujeito às mesmas regras de direito probatório que se aplicam ao juiz em 1ª instância, competindo-lhe proceder à análise autónoma, conjunta e crítica dos meios probatórios convocados pelo recorrente ou outros que os autos disponibilizem, introduzindo, nesse contexto, as alterações que se lhe mostrem devidas.

II - A parte que impugne a decisão da matéria de facto não pode limitar-se a transcrever os depoimentos e concluir, sem mais, que com base neles se devem alterar determinados pontos factuais, a par disso terá de fazer a sua análise crítica.

III - O novo CPCivil, no que tange à impugnação da matéria de facto, reforça o ónus de alegação imposto ao recorrente, exigindo que deixe expressa a solução alternativa que devem ter as questões de facto impugnadas, sob pena de rejeição do recurso nesse segmento.

IV - A ação de reivindicação de parcela de imóvel, consagrada no artigo 1311.º do CCivil, funda-se na discussão e reconhecimento do título aquisitivo de prédio identificado no mesmo título e de que o proprietário está desapossado e, portanto, supõe a definição certa, segura e concreta dos limites do prédio reivindicado.

V - A ação de demarcação, prevista no artigo 1353.º do Código Civil, supõe a certeza e indiscutibilidade dos títulos de propriedades confinantes, havendo dúvidas apenas quanto aos respetivos limites.

VI - Se os Autores propõem um acção típica de revindicação com a causa de pedir e pedidos formulados em conformidade, não podem depois, a nível recursivo, vir alegar que a questão de facto a decidir na ação é no fundo uma questão de demarcação e, dessa forma, esgrimindo os pertinentes argumentos jurídicos, dizer que está preenchida a facti sepecies dos artigos 1353.º e 1354.º do CCivil.

VII - Os recursos são meios de modificar decisões e não de criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre, visando, assim, um reestudo das questões já vistas e resolvidas pelo tribunal recorrido e não a pronúncia sobre questões novas.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Segundo nos é dado entender os recorrentes sustentam que a questão de facto na presente ação é no fundo uma questão de demarcação, em que os autores defendem que o limite do seu prédio é em determinado sítio e a ré defende um limite diferente.

Todavia, salvo o devido respeito, a acção tal como foi proposta pelos recorrentes é não uma acção de demarcação, mas sim uma verdadeira acção de revindicação.

Na verdade, não restam dúvidas que os pedidos formulados pelos Autores recorrentes em B 1 a B 2 4 são verdadeiros pedidos típicos de uma acção de reivindicação, com cumulação de um pedido de pagamento de sanção pecuniária compulsória.

A acção de demarcação, entendida como acção para a determinação ou fixação das estremas de prédios confinantes (cfr. artigo 1353.º do CCivil), quando dúvidas restem sobre os seus exactos limites, não pode confundir-se com a acção de reivindicação, apresentando-se, em termos gerais, como critério de distinção entre as duas acções a existência de um conflito entre prédios ou a existência de um conflito acerca do título. Ainda que, em determinadas situações, o recurso a uma ou a outra das acções possa conduzir ao mesmo resultado.

Como anotam P. de Lima e A. Varela [In C.C. Anotado, III, 2.ª de. Pg. 199.], “se as partes discutem o título de aquisição, como se, por exemplo, o autor pede o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a faixa ou sobre uma parte dela, porque a adquiriu por usucapião, por sucessão, por compra, por doação, etc., a acção é de reivindicação. Está em causa o próprio título de aquisição. Se, pelo contrário, se não discute o título, mas a relevância dele em relação ao prédio, como, por exemplo, se o autor afirma que o título se refere a varas e não a metros ou discute os termos em que deve ser feita a medição, ou, mesmo em relação à usucapião, se não discute o título de aquisição do prédio de que a faixa faz parte, mas a extensão do prédio possuído, a acção já é de demarcação”. Pretende-se com ela, no fundo, “uma declaração da extensão da propriedade, sem que estejam em causa os títulos de aquisição”.

Em suma, a demarcação não visa a declaração do direito real, mas apenas pôr fim a um estado de incerteza ou de dúvida sobre a localização da linha divisória entre dois (ou mais) prédios, e por isso, a pretensão a formular pelo autor é, no uso do direito potestativo que lhe assiste, a de que os proprietários dos prédios vizinhos sejam obrigados a concorrer para a definição e fixação das estremas dos prédios confinantes.

Ora é evidente que se não se pode discutir, sem contradição intelectual, a existência do título e requerer a restituição da coisa (a qual tem de ser concretamente delimitada, em termos de fundamentação da causa de pedir–facto jurídico de que emerge o direito real) e simultaneamente afirmar-se a existência dos títulos aquisitivos dos autores e réus por modo a requerer a demarcação a qual supõe a incerteza dos limites.

Como se decidiu no Ac. desta Rel. do Porto de 25/01/2021 [---] de que fomos adjunto, “O efeito jurídico da procedência do pedido de restituição da parcela de terreno reivindicada pela autora (e do implícito pedido de reconhecimento do direito de propriedade) será o de excluir qualquer necessidade de demarcação, pois tal significa que inexiste incerteza ou indefinição quanto aos limites dos dois prédios confinantes, pressuposto da acção de demarcação. (…) Assim se evidencia a incompatibilidade substancial, não só dos pedidos formulados pela autora, mas também das causas de pedir em que se sustentam.”

Por isso, na acção de reivindicação, está excluído que o autor possa formular a pretensão de que seja delimitado o seu terreno no confronto com o(s) terreno(s) contíguo(s), que se determine a área e os limites do prédio de cuja propriedade se arroga titular.

Porque das duas, uma: ou o reivindicante está certo de que o terreno que reivindica é, todo ele, parte integrante do seu prédio, ou afirma que são incertos ou desconhecidos os seus limites e então já não é a acção de reivindicação que deve propor.

Daqui resulta que os recorrentes, não podem agora tresmudar a acção cuja causa de pedir e pedidos integram uma acção típica de reivindicação, para uma acção de demarcação esgrimindo nova argumentação jurídica como consta, aliás, das conclusões V a XI formuladas pelos recorrentes, que o tribunal recorrido não analisou e sopesou tratando-se, pois, de uma questão nova e de que esta Relação não pode conhecer.

Efectivamente, como supra se consignou, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões “salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras” - artigo 608.º, nº 2 do CPCivil.

A problemática prende-se com a delimitação do objecto do recurso, ou seja, com os poderes do Tribunal da Relação na apreciação dos recursos de apelação.

Conforme sinteticamente refere Castro Mendes [Castro Mendes, Direito Processual Civil, Recursos, AAFDL, 1980, pág. 24. Veja-se, também, Ribeiro Mendes, Direito Processual Civil III, Recursos, AAFDL, 1982, pág. 172 e Lebre de Freitas/Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3.º. Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2008, pág. 7-8.], em relação ao objecto do recurso, duas soluções são possíveis.

Primeira: entender-se que o “Objecto do recurso é a questão sobre que incidiu a decisão recorrida.”

Segunda: defender-se que o “Objecto do recurso é a decisão recorrida, que se vai ver se foi aquela que “ex lege” devia ser proferida.”

A primeira hipótese remete para um sistema de reexame, que permite ao tribunal superior a reapreciação da questão decidenda pelo tribunal a quo, isto é, permite um novo julgamento, eventualmente com recurso a factos novos e novas provas; enquanto o segundo caracteriza um sistema de revisão ou de reponderação, o qual apenas possibilita o controlo da sentença recorrida, ou seja, apenas permite aferir se a decisão é justa ou injusta, considerando os dados fácticos e a lei aplicável, tal como o juiz da 1.ª instância possuía no momento em que proferiu a decisão.

Apesar de não existirem sistemas absolutamente “puros”, ou seja, que apenas apliquem um ou outro sistema “tout court”, a doutrina e a jurisprudência portuguesa têm entendido que “O direito português segue o modelo do recuso de revisão ou ponderação. Daí o tribunal ad quem produzir um novo julgamento sobre o já decidido pelo tribunal a quo, baseados nos factos alegados e nas provas produzidas perante este.” [Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 2008, 8.ª edição, pág. 147.]

Por via disso, repetidamente os tribunais superiores têm afirmado que os recursos são meios de modificar decisões e não de criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre, visando, assim, um reestudo das questões já vistas e resolvidas pelo tribunal recorrido e não a pronúncia sobre questões novas.

Por esse motivo, se entende que não é lícito invocar em sede de recurso questões que as partes não tenham suscitado perante o tribunal recorrido.

Esta regra decorre, designadamente, dos artigos 627.º, n.º 1, 635.º, n.º 3 e 665.º, n.º 2 e 5 do CPC, apenas excepcionada quando a lei expressamente determine o contrário [Veja-se, assim, o disposto no artigo 665.º, n.º 2 do CPC que permite a supressão de um grau de jurisdição, desde que verificados os pressupostos ali mencionados.] ou nas situações em que a matéria é de conhecimento oficioso. [Conforme se alude expressamente na parte final do n.º 2 do artigo 608.º do CPC.]

A questão reside, pois, em saber o que se entende por questões de facto ou direito já submetidas à apreciação do tribunal recorrido.

É comum mencionar-se a este respeito que “questões” não são argumentos, raciocínios jurídicos ou juízos de valor expostos na defesa das teses controvertidas em litígio, reservando-se tal menção apenas para os fundamentos fáctico-jurídicos em que as partes assentaram as suas pretensões, ou seja, para as questões que na perspectiva substantiva apresentam pontos de facto e direito relevantes para a solução do litígio.

Em relação à parte activa, atender-se-á à causa de pedir e pedido e em relação à parte passiva, às excepções deduzidas.

É este, aliás, o raciocínio que subjaz à nulidade a que alude o artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPCivil quando prescreve a obrigatoriedade do juiz se pronunciar sobre as questões colocadas à sua apreciação, como supra se referiu.

Tentando, agora, aplicar estes considerandos ao caso presente, verifica-se que os apelantes nunca no processo e, concretamente na petição inicial, suscitaram a questão factual e jurídica da demarcação entre o seu prédio e o prédio da Ré, sendo que, se trata de questão que, na perspectiva substantiva, apresenta pontos de facto e direito relevantes para a solução do litígio.

Estamos, assim, perante argumentação nova que nunca tinha sido defendida pelos apelantes, o que coloca o tribunal ad quem perante um novo julgamento, na medida em que este, na reponderação que iria fazer da decisão proferida, não se encontra em situação idêntica àquela em que se encontrou o juiz da 1.ª instância, sendo certo que se trata de questão que não é de conhecimento oficioso.

Como assim, nunca a questão da demarcação, pode ser conhecida por este tribunal de recurso.
*
Mas ainda que assim não fosse nunca a facti species do artigo 1354.º, nº 1 do CCivil não tem qualquer respaldo na matéria factual que nos autos se mostra assente, sendo que só essa é que releva face ao decidido quanto à impugnação da matéria de facto.

Efectivamente, o citado normativo, definindo o modo de proceder à demarcação, preceitua que a mesma é realizada, antes de mais, em conformidade com os títulos de cada um e na falta de títulos suficientes, de harmonia com a posse em que estejam os confinantes ou segundo o que resultar de outros meios de prova, sendo que se a questão não puder ser resolvida pelos títulos, ou pela posse, ou por outros meios de prova, a demarcação faz-se distribuindo o terreno em litígio por partes iguais.

Ora, quanto aos títulos o que resulta da matéria assente é que o prédio da Ré confronta em toda a extensão com a Avenida ... do seu lado Norte, prolongando-se no sentido Poente/Nascente, até atingir o prédio de terceira pessoa e do lado sul, ou seja, o que se localiza na plataforma superior, confronta com a propriedade dos Autores. [cfr. pontos 17). e 22). dos factos provados].

No que a posse diz respeito por parte dos autores apelantes da parcela em disputa, não tem ela qualquer respaldo na fundamentação factual, a não ser que quando ainda dono dos prédios dos Autores e intervenientes e da Ré, II deu de arrendamento a HH em 1.10.1977 a parte agrícola do prédio, contrato que ainda hoje se mantém em vigor, sendo que o prédio da Ré nunca esteve arrendado ao referido HH [pontos 18). e 19). da resenha dos factos provados]."

*3. [Comentário] a) A RP decidiu bem, atendendo a que a problemática da demarcação surge, pela primeira vez, no recurso interposto pelos Autores.

b) Quanto ao mais, não se acompanha, salva a devida consideração, a rígida delimitação entre a acção de demarcação e a acção de reivindicação, principalmente, quando essa delimitação é realizada através de "uma declaração da extensão da propriedade, sem que estejam em causa os títulos de aquisição” (demarcação) e, implicitamente, um reconhecimento da propriedade, quando estão em causa os títulos de aquisição (reivindicação).

No fundo, toda a acção de reivindicação é uma acção de demarcação, porque se reivindica algo com uma certa demarcação, e toda a acção de demarcação é uma acção de reivindicação, porque se reivindica uma dada parcela como pertencente a um prédio. Atente-se, além do mais, no seguinte:

-- A reivindicação pode incidir sobre uma parcela que, segundo o reivindicante, pertence a um prédio que lhe pertence; quer dizer: o reivindicante pode alegar que o seu terreno não tem a área x, mas a área x+y e reivindicar apenas y;

-- Na acção de reivindicação pode não se discutir o título de aquisição alegado pelo reivindicante, mas precisamente o que, em termos de extensão do prédio, está abrangido por esse título;

 -- Na acção de demarcação, pode-se discutir o título de aquisição alegado pelo autor que requer a demarcação e, mesmo quando não se discuta esse título, não deixa de se discutir o que está abrangido por esse título; efectivamente, não se imagina que o autor demarcante não invoque um qualquer título para justificar a demarcação que requer.

MTS