31/10/2024

Jurisprudência 2024 (38)


Processo de inventário;
emenda da partilha; dever de colação


1. O sumário de RC 6/2/2024 (51/14.8T8MBR-G.C1) é o seguinte:

Intentada partilha adicional de bens em sede de inventário, proferida decisão transitada em julgado que considerou serem estes bens propriedade de um dos herdeiros por adquiridos por usucapião após doação dos inventariados, a improcedência deste incidente não obsta à dedução e apreciação de pedido de emenda da partilha já realizada, com fundamento na existência do dever de colação deste herdeiro.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Funda o recorrente a sua discordância quanto à decisão proferida nos autos que declarou extinta a instância do incidente de partilha adicional, por inutilidade da lide, por entender que, não podendo estes bens ser objecto de partilha adicional, deve, ainda assim, ser levado o seu valor à colação, por adquiridos por usucapião pelo interessado BB, na sequência de doação dos seus avós, autores da herança.

Decidindo

Alega o recorrente que se mantém intocado o direito de os demais herdeiros exigirem a colação de bens doados a um dos herdeiros e por este adquiridos por usucapião, mais considerando que “a falta de conferência destes bens no inventário, prejudica de forma inaceitável e é fundamento de erro quanto às decisões tomadas no mesmo inventário por todos os demais herdeiros o que resulta de imediato do simples cotejo dos valores dos imóveis urbanos doados ao interessado / Recorrido BB que totalizam mais de € 71.150,00 €. E que embora estes bens não possam ser agora partilhados, “tal não significa que não deverão ser levados, nos termos legais, à colação e à conferência pela imputação do seu valor, por se estar em tempo útil e com todas as consequências legais.”, requerendo afinal que seja admitida a partilha adicional e a consequente emenda á partilha.”

O requerimento de partilha adicional de bens entrou em juízo em 2015, pelo que lhe é aplicável o Regime Jurídico do Processo de Inventário (Lei 23/2013 de 5 de Março, entretanto revogada pela Lei 117/2019, de 13 de Setembro, com entrada em vigor a 1 de Setembro de 2020) que, no essencial, dispunha no seu artº 75, nº 1, que “Quando se reconheça, depois de feita a partilha, que houve omissão de alguns bens, procede-se no mesmo processo a partilha adicional”.

Decorre deste normativo que a partilha adicional de bens, destina-se a efectivar a partilha de bens cujo conhecimento advenha após a partilha já realizada e homologada por decisão judicial transitada em julgado, devendo efectuar-se no mesmo processo com aproveitamento dos elementos constantes dos autos, mas sendo absolutamente distinta e autónoma da anterior partilha. Constitui uma nova partilha, uma nova causa e só são objecto desta partilha os bens omitidos, independentemente das causas dessa omissão.

Como referem Teixeira de Sousa et al. [SOUSA, Miguel Teixeira de, REGO, Carlos Lopes, GERALDES, António S. Abrantes e TORRES, Pedro Pinheiro, O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, 2021, Almedina, pág. 149, nota 5.], “…o incidente de partilha adicional respeita aos casos em que, na partilha realizada no processo de inventário, tenham sido omitidos alguns bens, independentemente dos motivos que a isso conduziram, quer dizer: em contraste com o que sucede na emenda e na anulação da partilha (…), não se atribui qualquer relevância ao erro, dolo ou à má fé de qualquer dos interessados…”.

Quer isto dizer que, como aliás reconhece o recorrente, a partilha adicional não se destina a emendar a partilha anteriormente feita, nem interfere com esta.  

Já a emenda da partilha, apenas pode ocorrer se, após o trânsito da sentença que homologou partilha anterior, se verificar que existiu “erro de facto na descrição ou qualificação dos bens ou qualquer outro erro susceptível de viciar a vontade das partes”, desde que seja pedida em acção proposta “dentro de um ano, a contar do conhecimento do erro, contanto que este conhecimento seja posterior à sentença” (artºs 70, nº1 e 71, nº1 do RJPI e 1126 do C.P.C., na actual redacção introduzida pela Lei 117/2019).

Como refere LOPES CARDOSO [CARDOSO, João António Lopes, Partilhas Judiciais, Vol.II, Almedina-Coimbra, 1990, páginas 545 e seguintes.], “Em princípio a sentença homologatória da partilha, transitada em julgado, põe termo ao inventário. Pode suceder, porém, que a partilha tenha lesado os interessados; estes, para se ressarcirem dos prejuízos, que, porventura, sofreram por via disso, só têm ao seu alcance, para além do recurso extraordinário de revisão, três meios específicos:

a) A emenda da partilha por acordo de todos eles;

b) Na falta de tal acordo, a acção para a emenda da partilha proposta dentro de um ano a contar do conhecimento do erro;

c) A ação para a anulação da partilha judicial.” [...]

Do acima exposto decorre que enquanto a partilha adicional visa partilhar bens da herança do de cujus, ainda não partilhados, a emenda à partilha visa corrigir situações de erro na partilha. Não são, assim, incidentes confundíveis, nem visam as mesmas finalidades.

Nestes termos, suspensa a partilha adicional até decisão sobre a propriedade destes bens, o trânsito em julgado da sentença que decidiu serem estes bens próprios do herdeiro e, assim, excluídos da partilha, determina, não a inutilidade da lide, conforme decidido pela decisão recorrida, mas antes a improcedência do pedido de partilha adicional de bens pertencente à herança dos primeiros inventariados, formulado pelo cabeça-de-casal, AA, cfr. decorre do artº 276, nº2 do C.P.C.

O que não significa que o pedido de sujeição a colação não possa ser feito no inventário, mormente a emenda da partilha já efectuada, nos termos previstos no artº 1126 do C.P.C.

O dever de colação é precisamente um dos casos que legitima o pedido de emenda da partilha, verificados os demais pressupostos constantes deste preceito legal e não lhe sendo oponível nenhuma excepção (nomeadamente a de caducidade do direito de a vir requerer). A colação visa, não a partilha de um novo bem, mas antes a igualação da partilha, mediante a restituição à herança dos bens (ou do seu valor) que foram doados em vida pelo autor da herança a um dos herdeiros legitimários. A ela só estão obrigados, in casu, os descendentes que eram, à data da doação presumíveis herdeiros legitimários do doador (cfr. artsº 2104, nº1 e 2105 do C.C.), sendo irrelevante que venham a assumir essa qualidade no momento da abertura da sucessão. Ora, o interessado BB integrava essa categoria, atenta a data do óbito do inventariado EE.

Tem por fundamento, conforme assinala DUARTE PINHEIRO [PINHEIRO, Jorge Duarte, O Direito das Sucessões Contemporâneo, Gestlegal, 5ª edição, 2022, pág. 304.], “uma presunção legal iuris tantum de que o autor da sucessão quando faz uma doação a um dos filhos (ou a outro descendente que, na altura, seja um sucessível legitimário prioritário) não pretende avantaja-lo relativamente aos demais.”

Já o artº 2108 do C.C. diz-nos que a colação, não existindo acordo de todos os herdeiros para a restituição dos bens doados, “faz-se pela imputação do valor da doação ou da importância das despesas na quota hereditária”, sendo este valor calculado à data da abertura da sucessão (artº 2019, nº1 do C.C.).

Se, em consonância com o já decidido em Acórdão proferido no Apenso F, se entende que a sentença proferida na que correu termos sob o nº 103/18...., “apenas obsta à partilha dos prédios a que respeita, “rectius”, em incidente de partilha adicional, não obstando a que os mesmos sejam considerados para efeitos de colação, ou, seja, em temos práticos, que o respectivo valor seja considerado para que se componham os quinhões de todos os interessados do inventário em termos de não se tolher o respectivo direito a uma partilha equilibrada, e, portanto, justa.”, esta colação constitui fundamento de emenda da partilha já realizada, não havendo lugar a esta operação no âmbito deste incidente de partilha adicional de bens.

Requerida a emenda da partilha para efeitos de colação, a decisão recorrida não se pronunciou, no entanto, sobre este requerimento do cabeça-de-casal, nem sobre a oposição que a ele foi deduzida pelo interessado BB, não tendo apreciado nenhuma das questões que nele se encontram colocadas, nomeadamente a caducidade oposta pelo interessado à requerida emenda da partilha.

Nessa medida, considerando que os bens indicados para partilha adicional estão sujeitos a colação, integrando o interessado BB a categoria dos herdeiros legitimários à data da doação, improcedendo embora o incidente de partilha adicional, devem os autos prosseguir para conhecimento do pedido de emenda da partilha com fundamento no dever de colação por parte do interessado BB e, dos termos da oposição que a ele foi deduzida."

[MTS]


Jurisprudência 2024 (37)

 
Conflito de competência;
conflito impróprio*


1. O sumário de RL 29/2/2024 (decisão individual) (7020/23.5T8SNT.L1-8) é o seguinte:

Tendo sido instaurada a mesma ação, entre as mesmas partes, embora figurando em inversa posição nos respetivos processos, distribuídos a diversos juízos e tendo ambos conhecido oficiosamente da exceção de litispendência, ocorre um conflito negativo impróprio, cuja resolução se impõe, em conformidade com o prescrito no corpo do artigo 114.º do CPC, radicando a competência para a tramitação do processo no juízo onde o respetivo réu/demandado foi, em primeiro lugar, citado.

2. Na fundamentação da decisão escreveu-se o seguinte:

"A ação de regulação do exercício das responsabilidades parentais e o conhecimento das questões a esta respeitantes, constitui uma providência tutelar cível (cfr. artigo 3.º, al. c) do regime geral do processo tutelar cível – RGPTC - aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 08 de setembro).
 
No caso, foram instauradas em juízo, separadamente, duas ações de regulação, nas quais, cada um dos Tribunais a que vieram a ser distribuídas, veio a julgar verificada a exceção de litispendência em face do outro processo, absolvendo o demandado – em cada uma delas – da instância.
 
Nos termos do n.º 2 do artigo 109.º do CPC, há conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão.
 
Não há conflito enquanto forem suscetíveis de recurso as decisões proferidas sobre a competência (cfr. artigo 109.º, n.º 3, do CPC).
 
O artigo 114.º do CPC dispõe sobre a aplicação do processo de resolução de conflito de competência a outros casos, nos seguintes termos:
 
“O disposto nos artigos 111.º a 113.º é aplicável a quaisquer outros conflitos que devam ser resolvidos pelas Relações ou pelo Supremo Tribunal de Justiça e também:
a) Ao caso de a mesma ação estar pendente em tribunais diferentes e ter passado o prazo para serem opostas a exceção de incompetência e a exceção de litispendência;
b) Ao caso de a mesma ação estar pendente em tribunais diferentes e um deles se ter julgado competente, não podendo já ser arguida perante o outro ou outros nem a exceção de incompetência nem a exceção de litispendência;
c) Ao caso de um dos tribunais se ter julgado incompetente e ter mandado remeter o processo para tribunal diferente daquele em que pende a mesma causa, não podendo já ser arguidas perante este nem a exceção de incompetência nem a exceção de litispendência”.
 
Conforme salientam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 142), “[c]om uma frequência superior à que seria desejável ocorrem por vezes situações de bloqueio processual, em resultado da verificação de conflitos de competência impróprios, mas que têm que ser resolvidos a bem do interesse das partes e da justiça. São essas situações que são configuradas no corpo do artigo. Já as alíneas subsequentes visam evitar a pendência de duas ações, apesar do que relativamente a cada uma delas tenha sido decidido”.
 
Dispõe o artigo 580.º, n.º 1, do CPC que as exceções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência.
 
A litispendência pode considerar-se um pressuposto processual negativo (cfr., Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, II, Almedina, 1982, p. 242), que visa evitar a repetição de causas, ou seja, "evitar decisões inúteis ou desnecessárias" (cfr., Fernando Luso Soares, Direito Processual Civil, Almedina, 1980, pp. 167-168) e o "risco de grave dano para o prestígio da justiça" (assim, Antunes Varela, Sampaio e Nora, J. M. Bezerra, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra editora, 1985, p. 301).
 
De acordo com o disposto no artigo 578.º do CPC, o conhecimento da litispendência é oficioso por parte do Tribunal.
 
O impedimento da litispendência opera na ação proposta em segundo lugar, considerando-se como tal, aquela em que o réu foi citado posteriormente (cfr., artigo 582.º, n.ºs. 1 e 2, do CPC).
 
“A litispendência (e o caso julgado) visam evitar a prolação de decisões contraditórias ou a repetição de decisões (por se tornar inútil a segunda decisão – vide art. 130º do CPC)” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26-10-2022, Pº 474/20.3YHLSB.L1-PICRS, rel. SÉRGIO REBELO).
 
A situação de litispendência, cuja arguição tem regras específicas, resolve-se em conformidade com essas mesmas regras, podendo dizer-se que, na sua apreciação individual, “os juízes não chegam a dispor sobre a situação decidida pelo outro” (cfr. decisão de 19-02-2021 do Vice-Presidente do STJ no processo n.º 1324/20.6T8CBR-A.S1).
 
Sucede que, se afigura que a situação se integra na previsão do corpo do artigo 114.º do CPC, dado que, na presente situação, ambos os Tribunais julgaram verificada a exceção de litispendência, gerando um conflito decisório, ou de competência impróprio ou latente, tanto mais que, ambas as decisões que declararam a litispendência, transitaram em julgado.
 
Resolvendo o conflito, verifica-se que, na ação n.º (…)/23.5T8SNT.L1 o requerido foi citado posteriormente (o que ocorreu em 23-06-2023), relativamente à citação que se operou (em 21/06/2023), no processo n.º (…)/23.7T8SNT, pelo que, o litígio entre as partes deve ser dirimido no âmbito da ação instaurada em primeiro lugar, ou seja, a competência para a tramitação do processo radicará no Juízo de Família e Menores de Sintra - Juiz “99”, onde o respetivo réu/demandado foi, em primeiro lugar, citado.
 
Em suma: Tendo sido instaurada a mesma ação, entre as mesmas partes, embora figurando em inversa posição nos respetivos processos, distribuídos a diversos juízos e tendo ambos conhecido oficiosamente da exceção de litispendência, ocorre um conflito negativo impróprio, cuja resolução se impõe, em conformidade com o prescrito no corpo do artigo 114.º do CPC, radicando a competência para a tramitação do processo no juízo onde o respetivo réu/demandado foi, em primeiro lugar, citado.
 
Pelo exposto, sem necessidade de mais considerações, decido este conflito impróprio, declarando competente para a presente acção o Juízo de Família e Menores de Sintra - Juiz “99”.
 
*3. [Comentário] Em apoio do decidido poderia ter sido invocado o disposto no art. 205.º, n.º 2, CPC, que é uma das situações a que se aplica o disposto no art. 114.º pr. CPC. O argumento seria o seguinte: se o art. 114.º pr. CPC se aplica às divergências entre juízos do mesmo tribunal, também se aplica, por maioria de razão, às divergências entre juízes do mesmo tribunal.
 
MTS



29/10/2024

Jurisprudência 2024 (36)


Processo de inventário;
competência material


1. O sumário de RL 6/3/2024 (decisão individual) (9462/16.3T8SNT-A.L1-6) é o seguinte: 

O processo de inventário para partilha dos bens comuns do casal, na sequência de divórcio decretado na competente conservatória do registo civil, podendo ser instaurado, atento o disposto no artigo 1087.º, n.º 2, do CPC, no tribunal (ou no cartório notarial), deverá ser instaurado no tribunal territorialmente competente, determinado por força do disposto no artigo 80.º do CPC, não funcionando a regra de conexão (que, nos termos do disposto no artigo 206.º, n.º 2, do CPC, determina a apensação de processos) existente no caso de ter havido prévio processo judicial onde o divórcio tenha sido decretado.

2. Na fundamentação da decisão escreveu-se o seguinte:

"Os presentes autos de inventário foram instaurados em 03-11-2022.

Conforme resultava do artigo 1404º, n.º 3, do CPC, na redação do D.L. n.º 329-A/95, de 12 de dezembro, o inventário corria por apenso ao processo de separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação, conforme a situação.

Esta norma foi revogada, após a alteração da regulação do inventário pela Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro.

A Lei nº. 117/2019, de 13 de setembro, com entrada em vigor a 01-01-2000, reintroduziu o processo de inventário judicial no Código de Processo Civil (artigos 1082.º a 1135.º do CPC).

O n.º 1 do artigo 1083º do CPC indica os casos em que o processo de inventário é da exclusiva competência dos tribunais judiciais, sendo que, será o caso, sempre que o inventário constitua dependência de outro processo judicial.

Por seu turno, o n.º. 1 do artigo 1133. º do CPC., dispõe que, decretada a separação judicial de pessoas e bens ou o divórcio, ou declarado nulo ou anulado o casamento, qualquer dos cônjuges pode requerer inventário para a partilha dos bens comuns.

Nos termos do preceituado no nº. 1 do art. 122º da LOSJ:

“1 - Compete aos juízos de família e menores preparar e julgar: (…)
2 - Os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos”.

No presente conflito de competência não é colocada em questão a competência material dos juízos de família e menores para a tramitação do processo de inventário instaurado.

Contudo, verifica-se que, muito embora tenha corrido ação judicial de divórcio, o extinto casal divorciou-se, não por decisão proferida no âmbito desse processo, mas sim, por via de decisão proferida pela Conservatória do Registo Civil onde os requerentes apresentaram, ulteriormente, pretensão nesse sentido, o que coloca a questão de saber se deverá funcionar a regra da competência por conexão – apensando-se o inventário ao divórcio – como o entendeu o Juiz “X”, ou se, ao invés, tal regra não funciona, nessa situação, como o considerou o Juiz “Y”.

Ora, nos casos em que não existe processo judicial de que o proposto inventário seja dependência, nomeadamente quando o divórcio foi decretado em Conservatória do registo Civil, trata-se de inventário que, de modo meramente facultativo, pode ser proposto em tribunal judicial.

A LOSJ não fixa qual o Juízo de Família e Menores territorialmente competente para processos de inventário que sigam o novo regime, ao invés do que sucedia quanto aos inventários tramitados nos cartórios notariais, no âmbito da Lei n.º 23/2013, de 5 de março, conforme decorria do disposto no artigo 3.º, n.º 6 do Regime Jurídico do Processo de Inventário, aprovado por este diploma legal.

Quanto aos inventários instaurados após a revogação do referido Regime Jurídico do Processo de Inventário, operada pela Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro, não existe norma que fixe a competência territorial.

Já a competência territorial dos tribunais com a competência material para os restantes inventários – visando matéria sucessória – foi prevista no artigo 72.º-A, aditado pela referida Lei n.º 117/2019, sendo competente o tribunal do lugar da abertura da sucessão, sem prejuízo dos critérios subsidiários de determinação da competência territorial referenciados no mesmo normativo e do estabelecido no n.º 4 do artigo 12.º da Lei n.º 117/2019.

Assim, “quanto ao inventário subsequente a divórcio decretado por decisão da Conservatória do Registo Civil, como decorre do art. 1083º nº2 do CPC (pois é um dos “demais casos” aqui previstos por referência aos casos do nº 1), o seu requerente pode optar entre o tribunal judicial ou o cartório notarial” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27-03-2023, Pº 553/22.2T8AVR.P1, rel. MENDES COELHO, na linha do Acórdão do mesmo Tribunal de 24-03-2022, Pº 4165/21.0T8AVR.P1, rel. ISABEL SILVA).

Ou seja: “O inventário para partilha dos bens comuns do casal, na sequência de divórcio decretado na competente conservatória do registo civil, pode ser instaurado, por escolha do requerente, no tribunal ou no cartório notarial, nos termos do art. 1087º/2 CPC. Optando o requerente por instaurar o processo no tribunal, determina-se o tribunal competente por aplicação do regime previsto no art. 80º CPC” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24-01-2022, Pº 1240/21.4T8AVR.P1, rel. ANA PAULA AMORIM).

Conforme se lê neste último Acórdão, a alteração legislativa foi motivada “pela frustração dos objetivos que o legislador se propusera alcançar com a desjudicialização operada pela Lei 23/13 (…), perante objeções que se suscitaram em torno do princípio constitucional da reserva do juiz”, sendo que, “[p]erante a dimensão da alteração operada, com a reintrodução do regime do processo de inventário judicial, necessariamente esteve presente na mente do legislador as situações em que o processo de divórcio correu os seus termos na conservatória do registo civil (…). As alterações introduzidas pela Lei 117/2019 de 13 de setembro criaram, como se referiu, um regime de repartição de competências quanto à tramitação do processo de inventário, sem excluir em qualquer caso o recurso ao tribunal judicial. Apenas torna obrigatória a sua instauração no tribunal nas situações previstas no art. 1083º/1 CPC (…). A redação do art. 122º/2 da Lei de Organização do Sistema Judiciário garante tal regime concorrente, na medida em que não só prevê a competência dos tribunais de família e menores para a tramitação do processo, como ainda, prevê a intervenção do juiz no processo, quando este seja instaurado no cartório notarial (…). Conclui-se que ao abrigo do art. 108[3]º/2 CPC pode o interessado requerer no tribunal competente processo de inventário para partilha dos bens comuns na sequência de divórcio por mútuo consentimento decretado na conservatória do registo civil”.

Decorre destas considerações que, o inventário para partilha dos bens comuns do casal, na sequência de divórcio decretado na competente conservatória do registo civil, podendo ser instaurado, atento o disposto no artigo 1087.º, n.º 2, do CPC, no tribunal (ou no cartório notarial), deverá ser instaurado no tribunal territorialmente competente, determinado por força do disposto no artigo 80.º do CPC, não funcionando a regra de conexão (que, nos termos do disposto no artigo 206.º, n.º 2, do CPC, determina a apensação de processos) existente no caso de ter havido prévio processo judicial onde o divórcio tenha sido decretado.

Ora, no presente caso, nem a circunstância de ter corrido termos ação de divórcio, determina a apensação do inventário, pois, como se referiu, tal processo cessou, por desistência, sem que o divórcio aí tenha sido decretado.

Assim, os autos deverão prosseguir termos no juízo onde foram primeiramente distribuídos, radicando a competência, para o efeito, no Juízo de Família e Menores de Sintra – Juiz “X”."

[MTS]


28/10/2024

Jurisprudência 2024 (35)


Procedimento cautelar;
recurso de revista; admissibilidade

1. O sumário de STJ 8/2/2024 (2143/22.0T8CLD.C1.S1) é o seguinte:

I. A previsão expressa dos tribunais de recurso na Lei Fundamental, leva-nos a reconhecer que o legislador está impedido de eliminar a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso, ou de a inviabilizar na prática, todavia, já não está impedido de regular, com larga margem de liberdade, a existência dos recursos e a recorribilidade das decisões.

II. O direito adjetivo estabelece regras quanto à admissibilidade e formalidades próprias de cada recurso, reconhecendo-se que a admissibilidade dum recurso depende do preenchimento cumulativo de três requisitos, a saber: a legitimidade de quem recorre, ser a decisão proferida recorrível e ser o recurso interposto dentro do prazo legalmente estabelecido.

III. A decisão cautelar é uma verdadeira decisão judicial que, por isso, goza da garantia da coercibilidade e da executoriedade, pois, a provisoriedade não é sinónimo de inexequibilidade.

IV. Em regra, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação proferido no âmbito de procedimentos cautelares, sendo o respetivo limite recursório a Relação, importando, porém, anotar que esta regra de irrecorribilidade é excecionada se invocada alguma das situações elencadas no direito adjetivo civil - art.º 629º n.º 2 do Código de Processo Civil - .

V. Esta limitação recursória abrange não só a fase declarativa dos procedimentos cautelares, incluindo todos seus incidentes, mas também a sua fase executiva, nas situações em que haja lugar à mesma, a par daquela que determina a inversão do contencioso, pois, não faria sentido, nomeadamente, que a decisão sobre o decretamento de uma providência cautelar não admitisse recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, mas a decisão sobre a Oposição à sua execução já o admitisse, ademais, quando sabemos que a ponderação sobre a solução da intentada Oposição à execução bule, ou pode contender, com a interpretação da sentença exequenda, proferida nos autos de providência cautelar, donde, importará concluir que, nas execuções das providências cautelares, o art.º 370º n.º 2 do Código de Processo Civil, funciona como uma norma especial, relativamente ao genericamente disposto no art.º 854º do Código de Processo Civil.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"II. 3. Da Questão prévia

[...] 5. No caso que nos ocupa é pacífica a legitimidade da Recorrente/Requerente/AA, outrossim, a tempestividade do recurso apresentado em Juízo, encontrando-se a dissensão em saber se a decisão é recorrível.

6. Tenhamos em atenção estarmos perante uma Oposição à execução, cujo título exequendo é uma sentença proferida nos autos de procedimento cautelar, entendido como medida provisória que corresponde à necessidade efetiva e atual de remover o receio de um dano jurídico, implicando, por isso, uma antecipação de providência, sendo emitida com vista a uma decisão definitiva, cujo resultado garante provisoriamente.

7. Como adiantamos, o princípio geral da recorribilidade das decisões judiciais sofre várias exceções, impondo-se sublinhar, a este respeito, que o acórdão que a Recorrente/Requerente/AA pretende impugnar, foi proferido em Oposição à execução da sentença exequenda, prolatada nos autos de procedimento cautelar, que corre seus termos a esta providência cautelar.

8. Estando em causa, como está, a admissibilidade do recurso, cujo objeto contende com apenso à providência cautelar, respeitante à sua fase executiva, não temos reserva que há que convocar, a este propósito, as regras recursivas adjetivas civis, concretamente, o art.º 370º n.º 2 do Código de Processo Civil.

9. Tendo em consideração a apreciação da questão prévia enunciada, abrimos um parêntesis para anotar que na interpretação das leis o julgador não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e o tempo em que é aplicada, não podendo ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, presumindo que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

Assim, com vista à exegese do enunciado normativo que nos permitirá uma ajustada aplicação ao caso dos autos, interessando saber qual a limitação recursiva ditada pela aludida norma adjetiva, temos por avisado que, na interpretação da mesma, não nos cinjamos apenas à letra da lei, mas, acentuamos, reconstituir, a partir dos textos, o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições do tempo em que é aplicada, não podendo ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

10. O nosso direito adjetivo civil ao prevenir sobre os recursos nos procedimentos cautelares (Livro II Titulo IV do Código de Processo Civil) teve a preocupação de estatuir regras próprias reguladoras dos recursos, conforme se colhe do art.º 370º do Código de Processo Civil ao estabelecer “Das decisões proferidas nos procedimentos cautelares, incluindo a que determine a inversão do contencioso, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível”.

11. Esta limitação ao acesso ao Supremo Tribunal de Justiça foi introduzida no Código de Processo Civil de 1961 (art.º 387º-A) pelo Decreto-lei n.º 375-A/99, de 20 de setembro, e manteve-se no Código de Processo Civil de 2013, tendo visado, por um lado, racionalizar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, dispensando-o de intervir em procedimentos em que estavam em causa medidas meramente provisórias, e, por outro lado, tendo em conta a urgência das medidas cautelares, procurou estabilizar o maís célere possível a sua adoção e execução.

12. Assim, em regra, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação proferido no âmbito de procedimentos cautelares, sendo o respetivo limite recursório a Relação, importando, porém, anotar que esta regra de irrecorribilidade é excecionada se invocada alguma das situações elencadas no direito adjetivo civil - art.º 629º n.º 2 do Código de Processo Civil - daí que, não se verificando qualquer uma destas situações excecionais permissivas da revista “atípica”, é inadmissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, quando está em causa acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, no âmbito de procedimentos cautelares, sublinha-se, qualquer decisão proferida no âmbito da providência cautelar, nomeadamente, aquelas prolatadas na sua fase de execução, proferidas em apenso à providência, como é o caso da Oposição à execução da sentença decretada em procedimentos cautelares, destacando-se que a decisão cautelar é uma verdadeira decisão judicial que, por isso, goza da garantia da coercibilidade e da executoriedade (artºs. 703º, 704º, alínea a), e 705º, todos do Código de Processo Civil), pois, a provisoriedade não é sinónimo de inexequibilidade.

Na verdade, esta limitação recursória abrange não só a fase declarativa dos procedimentos cautelares, incluindo todos seus incidentes, mas também a sua fase executiva, nas situações em que haja lugar à mesma, como sucede neste caso, pois, não faria sentido, salvo o devido respeito por opinião contrária, que a decisão sobre o decretamento de uma providência cautelar não admitisse recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, mas a decisão sobre a Oposição à sua execução já o admitisse, ademais, quando sabemos que a ponderação sobre a solução da intentada Oposição à execução bule ou pode contender com a interpretação da sentença exequenda, proferida nos autos de providência cautelar.

13. Outrossim, diga-se, a técnica legislativa usada na enunciação do art.º 370º n.º 2 do Código de Processo Civil (pressupondo a orientação assumida pela reforma processual civil de racionalizar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, dispensando-o, em principio, de intervir em procedimentos em que estavam em causa medidas meramente provisórias, e, por outro lado, tendo em conta a urgência das medidas cautelares, procurando-se estabilizar o maís célere possível a sua adoção e execução) vai no sentido de adotar uma enunciação aberta e não taxativa (o legislador teve o cuidado de enunciar que o conhecimento do procedimento da inversão do contencioso está, em principio, vedado ao STJ, dada a singularidade do mesmo, com vista a acautelar exegese que não esta interpretação ampla da limitação recursiva), dispensando o legislador de enunciar que estão arredados do conhecimento de revista, todos os incidentes da providência cautelar, a par dos apensos processados na sua fase executiva, nas situações em que haja lugar à mesma.

14. Daqui decorre que a limitação recursória estabelecida no aludido art.º 370º n.º 2 do Código de Processo Civil, tem, necessariamente, a amplitude que vimos de discretear e definir, donde, também importará concluir que, nas execuções das providências cautelares, este enunciado preceito adjetivo civil funciona como uma norma especial, relativamente ao genericamente disposto no art.º 854º do Código de Processo Civil.

15. Salvaguardando putativas criticas à orientação exegética acabada de expor, impõe-se desde já adiantar que esta interpretação do disposto no art.º 370º n.º 2 do Código de Processo Civil, limitativa do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, não só à decisão cautelar, incluindo todos seus incidentes, mas também a sua fase executiva, nas situações em que haja lugar à mesma, não desrespeita a exigência constitucional de um processo civil justo equitativo (art.º 20º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa), uma vez que, conforme já adiantamos, o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado que se o legislador está impedido de eliminar pura e simplesmente a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso, ou de a inviabilizar na prática, já não está, porém, impedido de regular, com larga margem de liberdade, a existência dos recursos e a recorribilidade das decisões.

16. Anota-se, neste sentido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 21 de março de 2023, no âmbito do Processo n.º 140/19.2YHLSB-B.L1.S1, cujo relator é o mesmo do presente acórdão, e cujo enquadramento jurídico aqui seguimos de perto.

17. Tudo visto, revertendo ao caso sub iudice que encerra um apenso ao procedimento cautelar, processado na sua fase executiva, e, cotejado o requerimento de interposição do recurso, distinguimos que a Recorrente/Requerente/AA não indica quaisquer das situações excecionais permissivas da revista “atípica”, impondo-se concluir que não estamos perante qualquer um dos casos em que o recurso é sempre admissível, donde, não se admite a revista."

[MTS]


25/10/2024

Bibliografia (1152)


-- Carolina de Freitas e Silva [et al.] (Coord.), O Código de Processo Civil 10 anos depois: Estudos em Comemoração, Edições Universitárias Lusófonas: Lisboa 2023


Papers (516)


-- Heaton, J. B., Why Does Pseudoscience Still Thrive Under Daubert? The Case of Discounted Cash Flow (SSRN 10.2024)

-- Seng, Daniel Kiat Boon, Electronic Evidence (SSRN 06.2024)


Jurisprudência 2024 (34)

 
Recurso de revista;
dupla conforme

 
I. O sumário de STJ 22/2/2024 (6039/20.2T8GMR.G1.S1) é o seguinte:

[1.] O instituto da inadmissibilidade é aplicável ao recurso de revista quanto a um só dos capítulos do dispositivo do acórdão recorrido, quando não satisfaça os requisitos extraformais do artigo 671.º, 3 CPC.
 
2. Todos os vícios do artigo 615.º CPC são formais: não se pode dizer que o juiz decidiu mal; o que se pode dizer é antes que o juiz infringiu regras que disciplinam o exercício da sua função jurisdicional. 
 
3. Litiga com má fé quem insiste em impugnar no segundo grau factos que tem a obrigação de saber que não correspondem à verdade, mas não quem procura modificar o acórdão sustentando uma posição jurídica divergente, ainda que ousada.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"1. Da inadmissibilidade parcial do recurso.

O recurso interposto tem três capítulos (sobre este conceito cfr. Francesco Carnelutti, «Capo di sentenza», Rivista Diritto Processuale, 1933,I e Cândido Rangel Dinamarco, Capítulos de Sentença, 2.ª tiragem, Malheiros Editores, São Paulo, 2004), a saber:

No capítulo A, o recorrente argui a nulidade do acórdão nos termos do art. 615º, 1, alíneas b), c) e d) do CPC (serão deste código os artigos ulteriormente citados sem diferente menção), ou seja, falta de especificação dos fundamentos que justificam a decisão, ambiguidades, obscuridades e até contradições na interpretação das provas e factos e omissão de pronúncia.

No capítulo B, o recorrente insurge-se contra a sua condenação como litigante de má fé.

No capítulo C, o recorrente entende que o Tribunal da Relação violou os princípios da fundamentação da formulação da “livre convicção prudente” e da construção lógica de “presunção judicial” (artigos 607º e 615º e 349º CC).

Se é sempre admissível, em um grau, recurso da decisão que condene por litigante de má fé, independentemente do valor da causa e da sucumbência (recurso especial) ex artigo 542.º, 3, e se consequentemente é também admissível suscitar a questão de nulidade decisória como fundamento deste recurso (cfr. Acórdãos deste STJ de 7.9.2020, Proc. 12651/15.4.T8PRT.P1.S1 e de 16.12.2020, Proc. 12380, a contrario) já não parece que seja de admitir o recurso do acórdão com o fundamento do capítulo C.

Vejamos porquê.

Constitui ius receptum que é inadmissível, em resultado da chamada regra «dupla conforme» que se extrai do artigo 671.º, 3, o recurso do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido, e sem fundamentação essencialmente diferente a decisão proferida no primeiro grau.

Passar por este filtro, pressupõe três requisitos:

a) um, de carácter negativo: a inexistência de voto de vencido.

b) dois, de carácter positivo: fundamentação essencialmente idêntica e conformidade decisória.

O STJ tem também repetidamente observado que importa distinguir as figuras de «fundamentação diversa» e de «fundamentação essencialmente diferente», sendo esta mais exigente, porquanto para afastar o obstáculo da dupla conforme não basta que a sentença e o acórdão da relação que a confirme por unanimidade apresente fundamentação diferente, exige-se mais, exige-se que a diferença seja essencial.

Dito de outro modo: «o conceito de fundamentação essencialmente diferente não se basta com qualquer modificação ou alteração de fundamentação no iter jurídico que suporta o acórdão da Relação em confronto com a sentença da 1.ª instância, sendo antes indispensável que naquele aresto, ocorra uma diversidade estrutural e diametralmente diferente no plano da subsunção do enquadramento normativo da mesma matéria litigiosa» (Ac. 10.6.2016, Proc. 1320/11.4TVLSB.L1.S1).

Ou ainda: «essa essencialidade pressupõe novidade argumentativa e consideração do enquadramento factual e/ou jurídico diferente e decisivo, que se afaste distintivamente da fundamentação da decisão apelada, não se verificando tal requisito quando o tribunal da Relação, dentro do enfoque jurídico da decisão recorrida aduz argumentos relacinados com a questão decidida que apenas lhe emprestam maior solidez» (Ac. 1.3.2016, Proc. 1813/12.6.TBPVF.P1.S1).

No caso sujeito, o Acórdão da Relação de Guimarães não tem qualquer voto de vencido.

Por outro lado, a parte decisória não podia ser mais clara: é mantida a sentença proferida [...].

E que dizer em relação à conformidade da fundamentação?

Dizer que a mesma também se verifica. Em relação à matéria de facto, o segundo grau procedeu à sua reapreciação, conforme requerido, concretamente quanto aos factos provados n.ºs. 20, 21 e 22.

Afirmou «que a factualidade constante dos nºs 20 a 22 estava, e está, no domínio da livre apreciação da prova e que era, e é, lícito o uso de presunções judiciais no que à mesma respeita»; e que «portanto, o tribunal a quo não violou qualquer norma processual ou substantiva no que a esta matéria concerne», adoptou/secundou o raciocínio utilizado pelo primeiro grau na avaliação das provas, que qualificou de assertivo, lógico e de total congruência, e concluiu «que se encontra acertadamente valorada a matéria factual a que se alude nas doutas alegações, que se mantém sem qualquer alteração».

Igual conclusão quanto à matéria de direito. O segundo grau, diante da matéria de facto inalterada, asseverou: «Quanto à solução jurídica, para que a lide tivesse, agora, decisão dissonante, impor-se-ia a alteração do quadro factual da primeira instância que não ocorreu, pelo que é mantida a sentença proferida».

O recorrente parece encontrar a desconformidade, no trecho da sentença que alude a um putativo erro de julgamento.

Porém, tal não se verifica. Em sede de apreciação das nulidades da sentença o segundo grau debruçou-se sobre eventual contradição entre os factos 20, 21 e 22, por um lado, e os 3, 7, 8 e 11, por outro, e disse: «A invocada contradição na resposta a esta matéria de facto mereceu despacho de pronúncia da Srª Juiz a quo, que o fez com completa assertividade.

E, se como ela, também nós colhemos das doutas alegações que a contradição resulta do facto de o prédio se encontrar já onerado com hipoteca judicial e por isso a originar desinteresse em gizar qualquer plano destinado a onerar o património, o que, então, daí se retiraria seria um erro de julgamento e não uma contradição derivada de incoerência lógica de actuação dos RR, o chamado error in iudicando, decorrente, no caso, de uma distorção da realidade factual (error facti)».

Não está aqui reconhecido qualquer erro no julgamento do tribunal recorrido. O que se faz é distinguir erro de actividade e erro de juízo, e advertir que o alegado vício, a existir, nunca seria um vício da primeira espécie.

Não se admite, pelo exposto, o recurso, nesta parte, ou seja , quanto ao capítulo C das conclusões das alegações."

[MTS]


24/10/2024

Bibliografia (1151)


-- Lai. P., L'estromissione della parte nel processo di cognizione (E.S.I.: Napoli 2024)

Jurisprudência 2024 (33)


Decisão arbitral;
impugnação; fundamentos


1. O sumário de STJ 22/2/2024 (111/23.4YRPRT.S1) é o seguinte:

I - Na impugnação duma sentença arbitral, “apenas” se podem invocar/discutir os vícios do percurso, do processo arbitral, que levou os árbitros até à sentença, assim como, atento o disposto nas subalíneas v) e vi) da alínea a) do art. 46.º/3, se podem invocar os vícios da condenação por excesso ou defeito e a falta de fundamentação.

II – Pelo que, sendo taxativos os fundamentos da impugnação de uma sentença arbitral, como claramente resulta do corpo do art. 46.º/3 da LAV, não pode “aproveitar-se” a instauração de tal impugnação para invocar outros e diversos fundamentos, designadamente fundamentos respeitantes ao “mérito” da sentença arbitral.

III – Dizendo-se na sentença arbitral que se irá acompanhar, na decisão da matéria de facto, o relatório pericial, mas transpondo-se incorretamente, por vários vícios de raciocínio, o que resulta do relatório pericial para o que factualmente foi sendo decidido pela sentença arbitral, ocorre um erro no julgamento de facto por parte da sentença arbitral: estamos perante uma sentença arbitral que está “errada” (e não perante uma sentença arbitral não fundamentada), “erro” este que, tendo a ver com o “mérito”, não pode sequer ser corrigido numa impugnação de sentença arbitral.

IV – Uma sentença arbitral mal fundamentada ou erradamente fundamentada, seja de facto ou de direito, não padece das nulidades/vícios referidos nas alíneas v) e vi) do art. 46.º/3/a) da LAV.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"II – Fundamentação [...]

II – B de Direito

Estamos numa ação de anulação de sentença arbitral, ação esta, de anulação, prevista no art.46.º da LAV (Lei da Arbitragem Voluntária aprovada pela Lei nº 63/2011, de 14 de dezembro).

Entre as partes correu termos uma prévia ação arbitral – para dirimir um litígio emergente da execução de um contrato de consórcio celebrado entre as partes para a exploração do Bingo das instalações do antigo Cinema ..., na cidade do ... – sendo da sentença (arbitral) proferida em tal ação arbitral que é intentada, pelo S. C. e Salgueiros, a presente ação de anulação.

Ação esta, de anulação, para que é competente um Tribunal da Relação (cfr. art. 59.º/1/g) da LAV), o que aconteceu, no caso, com a Relação do Porto que, em 1.ª Instância, conheceu da ação de anulação em que nos encontramos, indeferindo-a liminarmente, sendo deste indeferimento – decidido singularmente primeiro e em Conferência depois – que vem interposto o presente recurso de apelação (na medida em que, embora o recurso seja para o Supremo, sendo a decisão recorrida proferida em 1.ª Instância, cabe dela apelação – cfr. art. 644.º/1/a) do CPC), nos termos do art. 59.º/8 da LAV.

E começamos por fazer notar o meio processual em que nos encontramos – ação anulatória de sentença arbitral – por estar aqui, nas regras de tal ação anulatória, o fulcro do desfecho do presente recurso de apelação (como antes esteve o fulcro da decisão do Acórdão da Relação sob recurso).

Como no despacho de admissão liminar deste recurso se disse, “é necessário distinguir, no que diz respeito às sentenças arbitrais, entre a recorribilidade e impugnabilidade: se, por força do art. 39.º/4 da LAV, não há recurso para o tribunal estadual competente, salvo quando as partes, em relação às sentenças arbitrais proferidas segundo o direito constituído, dispuserem diferentemente na convenção ou em acordo posterior a ela, outro tanto não acontece quanto à possibilidade de impugnação, mesmo das sentenças ex aequo et bono, faculdade esta, de impugnação, de que as partes não podem sequer renunciar (salvo no caso do art. 46.º/4da LAV), sob pena de nulidade da renúncia (cfr. art. 46.º/5 da LAV)”.

Efetivamente, no que diz respeito às sentenças arbitrais, a regra legal (supletiva), em matéria de recursos, é a irrecorribilidade, na medida em que, de acordo com o disposto no art. 39.º/4 da LAV, “[a] sentença que se pronuncie sobre o fundo da causa ou que, sem conhecer deste, ponha termo ao processo arbitral, só é suscetível de recurso para o tribunal estadual competente no caso de as partes terem expressamente previsto tal possibilidade na convenção de arbitragem e desde que a causa não haja sido decidida segundo a equidade ou mediante composição amigável.”

Sendo que, no caso, como resulta da cláusula 14.ª do Contrato de Consórcio, as partes acordaram sujeitar a “apreciação e decisão de qualquer litígio emergente deste contrato (…) ao Tribunal arbitral”, o qual “julgará de acordo com a equidade”, sendo que “as decisões proferidas pelo Tribunal Arbitral constituirão caso julgado, não sendo assim suscetíveis de recurso, ao qual cada uma das partes expressamente renuncia”, ou seja, as partes não só não previram expressamente a possibilidade de recurso (previram, isso sim, o seu contrário), como previram que a causa arbitral fosse decidida segundo a equidade, pelo que afastada ficou a possibilidade de interporem recurso da sentença arbitral que aprecie e decida qualquer litígio emergente do contrato de consórcio celebrado entre as partes.

Daí que – e bem – o S. C. e Salgueiros, em vez de interpor recurso da sentença arbitral (recurso esse que, repete-se, seria inadmissível), tenha vindo apresentar, diretamente na Relação do Porto, a presente ação de anulação da sentença arbitral proferida em 08/03/2023 (processada autonomamente e não nos próprios autos do processo arbitral).

Mas, claro, podendo impugnar a sentença arbitral pela presente ação anulatória – na medida em que a regra legal (supletiva), em matéria de impugnação, é a impugnabilidade (cfr. art. 46.º/1 e 5 da LAV) – tal não significa, sendo taxativos os fundamentos da impugnação fixados na LAV (como claramente resulta do advérbio “só”, constante do corpo do art. 46.º/3 da LAV), que possa aproveitar tal impugnação para invocar outros e diversos fundamentos, designadamente os respeitantes ao “mérito” da sentença arbitral.

Caso fosse admissível recurso da sentença arbitral, seria o próprio “mérito” da sentença arbitral, o seu sentido, que seria colocado em causa: perante um erro in judicando, um erro de julgamento (de facto ou de direito), cometido pelos árbitros, o recorrente pediria que a sentença fosse revogada ou modificada.

Mas, estando em causa “apenas” a impugnação da sentença arbitral, não se pode invocar/discutir o “mérito” e o sentido da sentença arbitral: estando em causa a impugnação da sentença arbitral, “apenas” se podem invocar/discutir os vícios do percurso, do processo arbitral, que levou os árbitros até à sentença, assim como, atento o disposto nas subalíneas v) e vi) da alínea a) do art. 46.º/3, se podem invocar os vícios da condenação por excesso ou defeito e a falta de fundamentação; sendo que, verificado o vício invocado, o tribunal estadual não procede à substituição da sentença arbitral por outra de sentido diferente, antes se limitando a decretar, como consequência, a supressão da sentença arbitral da ordem jurídica (cfr. art. 46.º/9 da LAV).

Enfim, sintetizando, não podendo haver recurso da sentença arbitral proferida e sendo o “mérito” duma sentença arbitral apenas suscetível de ser discutido por via do recurso, isso significa que não se podem colocar e decidir pela via da impugnação questões respeitantes ao “mérito” da sentença arbitral proferida, sob pena de, a ser de outro modo, se desrespeitar a inadmissibilidade do recurso.

Convindo neste ponto salientar que a regra da inadmissibilidade do recurso da sentença arbitral proferida foi, como já se referiu, estabelecida pelas próprias partes na cláusula 14.ª do Contrato de Consórcio, ou seja, foram as próprias partes – o S. C. e Salgueiros e a Pauta de Flores – que estabeleceram que aceitariam e não discutiriam nos Tribunais Estaduais o “mérito” de uma sentença arbitral que dirimisse um qualquer litígio emergente da execução do contrato de consórcio celebrado.

E, claro, estamos a insistir neste ponto (como acima referimos, reside aqui o fulcro do desfecho da presente ação anulatória) por o que o S. C e Salgueiros repetidamente invoca – no pedido de retificação da primitiva sentença arbitral, na PI da presente ação anulatória, na reclamação para a Conferência e nas alegações da presente apelação – ter a ver com o “mérito” da sentença arbitral e não com vícios da condenação por excesso ou por defeito ou com a falta de fundamentação da sentença arbitral, ou seja, por o S. C e Salgueiros invocar algo que não cabe nos fundamentos que podem ser suscitados/decididos na impugnação da sentença arbitral.

Os poderes de conhecimento e decisão do Tribunal Estadual, na ação de impugnação da sentença arbitral, restringem-se, repete-se, aos fundamentos elencados no art. 46.º/3 da LAV, nada mais lhe sendo permitido conhecer/decidir a propósito da sentença arbitral, nomeadamente reexaminar todo o processo, corrigir os erros e preencher as omissões de facto ou de direito de que a sentença arbitral padeça e passar a proferir uma sentença de mérito sã sobre a causa (sentença que as partes, insiste-se sempre, convencionaram não ser suscetível de recurso para os Tribunais Estaduais, o mesmo é dizer, que as partes convencionaram não ficar sujeita à apreciação de mérito pelos Tribunais Estaduais).

Aliás, continuando a dizer a mesma coisa por diferente modo, não será despiciendo chamar a atenção para o já referido art. 46.º/9 da LAV, em que se diz expressamente que “o tribunal estadual que anule a sentença arbitral não pode conhecer do mérito da questão ou questões por aquela decidas, devendo tais questões, se alguma das partes o pretender, ser submetida a outro tribunal arbitral para serem por este decididas”, isto é, que situa a impugnação da sentença arbitral no campo da mera revisão e não no domínio do reexame da causa/pedido, o que faz com que seja a própria sentença estadual anulatória, caso se pronuncie sobre o mérito da sentença arbitral, a incorrer em nulidade (por se pronunciar sobre questão de que não pode conhecer – art. 615.º/1/d)/2.ª parte do CPC).

E estamos com todos estes “rodeios” e explicações para que fique finalmente claro que, tendo o invocado pelo S. C. e Salgueiros a ver com o “mérito”, não podemos decidir sobre tal “mérito” e, em consequência, não podemos corrigir o erro de julgamento em que incorreu a sentença arbitral.

Tendo em vista mostrar que estava a respeitar os fundamentos taxativos de impugnação fixados na LAV (no já referido art. 46.º/3 da LAV), o S. C. e Salgueiros qualificou o que invocou como configurando vícios de condenação por excesso ou por defeito e como vício de falta de fundamentação, porém, o que invocou é claramente um erro do julgamento de facto da sentença arbitral.

Repare-se:

Começava por estar em causa, na ação arbitral, saber se o contrato de consórcio celebrado entre as partes havia ou não sido resolvido pela Pauta Flores e, a tal propósito, a sentença arbitral concluiu, primeiro, que a Pauta Flores resolveu o contrato e, depois, que o fez ilicitamente; após o que a sentença arbitral considerou, não obstante tal ilicitude, que a resolução produziu os seus efeitos (foi eficaz), passando então o S. C. e Salgueiros, de acordo com o decidido na sentença arbitral, a ter o “direito a ser indemnizado, equivalendo a indemnização ao que seria devido ao credor se o contrato continuasse a vigorar e a ser executado” ou, mais exatamente, segundo concretização também efetuada na sentença arbitral, a ser “devida ao S. C e Salgueiros a meação dos lucros auferidos pela Pauta Flores na atividade de exploração do Bingo levada a cabo por esta sociedade isoladamente nos anos de 2016 e 2017”.

Estabelecido/decidido tal aspeto jurídico do litígio, passava então a estar em causa a liquidação da participação do S. C e Salgueiros no resultado líquido do Consórcio – sabido que a cláusula 9.ª do Contrato de Consórcio fixava tal participação em 50% – mais exatamente o acerto da participação do S. C. e Salgueiros no período da execução contratual (entre 2012 e a produção dos efeitos resolutivos em meados de março de 2016) e o cálculo da indemnização ao S. C e Salgueiros (de meados de março de 2016 ao final de 2017), ou seja, no fundo e em termos práticos, passava a estar em causa o cálculo do resultado líquido do consórcio durante 6 anos, sendo que 50% de tal montante seria o direito do S. C. e Salgueiros, pelo que, caso já tivesse recebido quantia superior, seria a Paula Flores credora da diferença e, caso a quantia recebida fosse inferior, seria o S. C e Salgueiros credor da quantia necessária a perfazer os 50% a que tinha direito.

E foi sobre isto – sobre tal tarefa de liquidação – que se ocupou a maior parte da sentença arbitral, ou seja, sem que se possa dizer que a mesma padece de falta de fundamentação e/ou que haja incorrido em condenação por excesso ou por defeito.

O que claramente sucedeu foi que a sentença arbitral se equivocou em raciocínios que fez para estabelecer a liquidação da participação do S. C e Salgueiros no resultado líquido do contrato de consórcio e para, depois, estabelecer o crédito do S. C. e Salgueiros.

E este Supremo (como antes a Relação) não pode, como já se referiu, decidir/corrigir – se o fizesse, estaria a incorrer na nulidade do art. 615.º/1/d)/2.ª parte do CPC – um erro no julgamento da matéria de facto cometido pela sentença arbitral, porém, para melhor explicarmos ao A./recorrente o motivo por que a presente impugnação estava ab initio condenada ao fracasso, ousamos “no limite de tal nulidade” afirmar que a sentença arbitral se equivocou em vários dos raciocínios que fez para estabelecer a liquidação da participação do S. C e Salgueiros no resultado líquido do contrato de consórcio e para, depois, estabelecer o crédito do S. C. e Salgueiros; e podemos fazê-lo por ser a própria sentença arbitral a dizer, por várias vezes, que seguiu, na decisão de facto, o relatório subscrito pelo perito presidente (e pelo perito do S. C e Salgueiros) e tão só o fazemos com o objetivo, repete-se, de melhor explicar, ao justificar tal afirmação, que o que o recorrente invoca é um erro do julgamento de facto da sentença arbitral (e sendo um erro do julgamento de facto não configura vícios de condenação por excesso ou por defeito e/ou vício de falta de fundamentação)."

[MTS]

23/10/2024

Jurisprudência constitucional (230)


Partidos políticos
isenção de custas


1. TC 24/9/2024 (596/24) decidiu 

a) julgar inconstitucional a norma contida no artigo 4.º, n.os 1, alínea e), e 7, do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro, na redação introduzida pela Lei n.º 7/2012, de 13 de fevereiro, por violação do n.º 2 do artigo 166.º da Constituição da República Portuguesa [...].

 

2. O art. 4.º RCP tem, na parte relevante, a seguinte redacção:


Artigo 4.º
Isenções

1 – Estão isentos de custas: [...]

e) Os partidos políticos, cujos benefícios não estejam suspensos, no contencioso previsto nas leis eleitorais; [...]

7 – Com exceção dos casos de insuficiência económica, nos termos da lei de acesso ao direito e aos tribunais, a isenção de custas não abrange os reembolsos à parte vencedora a título de custas de parte, que, naqueles casos, as suportará.

 

 

Afinal, havia dois bons caminhos para chegar a uma boa decisão (2)


Esclarecimento


O Senhor Desembargador que foi Relator do acórdão analisado no post intitulado "Afinal, havia dois bons caminhos para chegar a uma boa decisão" fez o favor de esclarecer que, apesar de tal não constar do relatório do acórdão, o proferimento deste foi antecedido da audição das partes.

Fica assim sem justificação a referência ao carácter de decisão-surpresa do acórdão que, sem conhecimento desse facto, se fez no post.

MTS

Bibliografia (1150)


Fasan, M., Essere o apparire? L’imparzialità dei magistrati tra questioni irrisolte e nuove sfide nel diritto costituzionale comparato, DPCE Online 3/2024, 1657


Jurisprudência 2024 (32)

 
Recurso de revista;
revista excepcional; admissibilidade
 
 
1. O sumário de STJ 8/2/2024 (10730/21.8T8SNT.L1-A.S1) é o seguinte:

I. O n.º 1 do artigo 671.º do Código de Processo Civil, diferentemente do que sucedia com a lei anterior, toma como referência o conteúdo do acórdão da Relação do qual é interposto, e não a decisão da 1.ª Instância, para o efeito de saber se cabe recurso de revista.

II. O Supremo Tribunal de Justiça não tem qualquer discricionariedade na admissão de recurso de revista, quando os respectivos pressupostos não estão preenchidos.

III. Nem tem discricionariedade na admissão do recurso de revista excepcional quando, nem o acórdão de que se pretende interpor tal recurso admite revista, nos termos gerais, nem houve dupla conformidade decisória entre as instâncias.

IV. Estando preenchidos os requisitos gerais de admissibilidade da revista e havendo dupla conforme entre as decisões das instâncias, então a formação prevista no n.º 3 do artigo 672.º do Código de Processo Civil pondera, discricionariamente, se está verificado o requisito da relevância jurídica e/ou da relevância social que a reclamante invoca.
 

2. No acórdão escreveu-se o seguinte:

"1. Em 18 de Dezembro de 2023 foi proferido o seguinte despacho:

«1. Na acção proposta pela Sociedade de Construções Pulrodrigues, S.A. contra a Administração Conjunta do Bairro de Nossa Senhora dos Enfermos, foi proferido despacho saneador absolvendo a ré da instância por ilegitimidade passiva.

Esta decisão, todavia, foi revogada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26 de Outubro do presente ano, que julgou a ré parte legítima e determinou que os autos seguissem “a sua normal tramitação”.

A Administração Conjunta do Bairro de Nossa Senhora dos Enfermos interpôs recurso de revista, que não foi admitido pelo despacho de 20 de Novembro de 2023, por não se tratar “de uma decisão recorrível, porquanto se limitou a determinar o prosseguimento dos autos”, não sendo portanto susceptível de recurso de revista, como resulta do n.º 1 do artigo 671.º do Código de Processo Civil.

A Administração Conjunta do Bairro de Nossa Senhora dos Enfermos reclamou para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, requerendo que o recurso fosse admitido, “ao abrigo do disposto no artigo 643.º n.º 3 do CPC".

2. Não cabe ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça decidir esta reclamação, que deve ser dirigida ao Supremo Tribunal de Justiça (n.º 1 do artigo 643.º do Código de Processo Civil) e decidida pelo relator (n.º 4 do mesmo artigo 643.º).

No entanto, porque o requerimento de reclamação contém os elementos necessários para o efeito, convola-se em reclamação para o Supremo Tribunal de Justiça (n.º 3 do artigo 193.º do mesmo Código) e passa-se à sua apreciação.

3. Não se tratando de nenhum caso em que o recurso é sempre admissível (n.º 2 do artigo 629.º) nem de recurso interposto de acórdão da Relação que tenha conhecido de um recurso interposto de decisões interlocutórias da 1.ª Instância em matéria processual (n.º 2 do artigo 671.º), a admissibilidade da revista afere-se pelo disposto no n.º 1 do mesmo artigo 671.º

O n.º 1 do artigo 671.º, diferentemente do que sucedia com a lei anterior, toma como referência o conteúdo do acórdão da Relação do qual é interposto, e não a decisão da 1.ª Instância. Ora o presente acórdão recorrido, nem conheceu de mérito, nem pôs termo ao processo, absolvendo o réu da instância. O recurso não é, pois, admissível, como decidiu o despacho agora reclamado.

4. Na reclamação, a reclamante alega que o recurso deve ser admitido como revista excepcional; no entanto, não havendo dupla conforme, nem sendo admissível revista, não poderia o presente recurso ser interposto como revista excepcional (cfr. n.º 3 do artigo 671.º e artigo 672.º, ambos do Código de Processo Civil).

A revista excepcional é um recurso de revista, que apenas é excepcional quanto à sua admissibilidade; só é possível quando se verificam os pressupostos do recurso de revista – o que aqui não sucede ­– mas ocorre o obstáculo da dupla conformidade das decisões das instâncias.

5. A reclamada requer que a conduta da reclamante seja apreciada à luz do disposto no artigo 670.º do Código de Processo Civil, sem prejuízo de ser considerada como litigante de má fé.

Ora, neste momento, não estão demonstrados elementos suficientes para o efeito. Observa-se, nomeadamente, que não cabe manifestamente revista excepcional quando já foi interposto recurso de revista, nem hoje a lei de processo civil prevê pedidos de aclaração – cfr. ponto 15 da resposta à reclamação.

5. Nestes termos, indefere-se a reclamação.»

2. A reclamante veio reclamar para a conferência, discordando desta decisão e requerendo que seja proferido acórdão, nestes termos:

“(…) A douta decisão singular – salvo o devido respeito, que é muito – a aqui reclamante não pode de todo concordar com a mesma, uma vez que deixa de fora os comproprietários da AUGI Nossa Senhora dos Enfermos, sendo que a Administração Conjunta só por si, é parte ilegítima, quanto às responsabilidades que a reclamada pretende.

3 – O recurso de revista tem sido uma ferramenta essencial para a aqui reclamante, pois sem o mesmo, não haveria a jurisprudência que foi feita até hoje, nomeadamente com a decisão proferida no processo 8240/20.8T8SNTA.E1.S1, Supremo Tribunal de Justiça, 6ª Secção, em que considerou que as atas 20 e 21 eram e são títulos executivos.

4 – Assim, a aqui reclamante tem que lançar mão de todos os meios ao seu alcance, para defender os interesses dos comproprietários e pretende por isso que com a alteração da agora decisão singular, por mais justa e acertada, possa este douto Tribunal continuar a fazer jurisprudência para com as AUGIs, uma vez que, a que existe até agora não tem sido suficiente.

5 – A aqui reclamante concorda plenamente com a interpretação que foi dada pelo Tribunal de 1ª Instância, uma vez que aí foi muito bem explicado todos os factos pelos quais a mesma, por si só, é parte ilegítima neste processo, sendo o seu conteúdo de extrema relevância para futuras decisões.

6 – Por outro lado, a aqui reclamante, mais uma vez, não pode estar de acordo com a decisão singular, uma vez que a mesma não admitiu a revista excecional, mas por estar em causa uma apreciação cuja relevância jurídica é fundamental para que haja equilíbrio de justiça entre todos os comproprietários, a mesma deve ser admitida, caso contrário, viola a lei, nomeadamente o artigo 672.º, n.º 1, alíneas a) e b) do CPC o qual diz o seguinte:

Artigo 672.º (art.º 721.º-A CPC 1961)

Revista excecional

1 - Excecionalmente, cabe recurso de revista do acórdão da Relação referido no n.º 3 do artigo anterior quando:

a) Esteja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;

b) Estejam em causa interesses de particular relevância social;

7 – Ora, nada melhor se aplica ao presente caso, pois, claramente, é necessária uma melhor aplicação de direito, Lei 91/95 de 02/09, nomeadamente o artigo 6.º, em que a regra é a gratuitidade da cedência e artigo 26.º, n.º 3, em que cada lote comparticipe com a totalidade dos custos, e estando também em causa interesses de relevância social, pois é uma questão que afeta todos os proprietários e comproprietários, que inclui também a aqui reclamada, daí a aqui reclamante ter apresentado recurso de revista excecional.

8 – Assim, requer-se a V. Exas. Exmos. Doutores Juízes Conselheiros, que esta reclamação seja apreciada em conferência, para uma melhor aplicação dos factos ao direito e que à final seja admitido o recurso de revista excecional e a aqui reclamante seja considerada parte ilegítima, por si só. Termos em que revogando a decisão sumária e proferindo acórdão, como referido, se espera justiça.”

3. A reclamada respondeu, considerando o recurso de revista inadmissível [...].

4. A reclamante respondeu [...].

5. O Supremo Tribunal de Justiça não tem qualquer discricionariedade na admissão de recurso de revista, quando os respectivos pressupostos não estão preenchidos; no caso, o acórdão da Relação é irrecorrível, nos termos explicitados na decisão agora reclamada.

Nem tem discricionariedade na admissão do recurso de revista excepcional quando, (1) nem o acórdão de que se pretende interpor tal recurso admite revista, nos termos gerais, (2) nem tão pouco houve dupla conformidade decisória entre as instâncias.

Estivessem preenchidos os requisitos gerais de admissibilidade da revista e havendo dupla conforme entre as decisões das instâncias, então a formação prevista no n.º 3 do artigo 672.º do Código de Processo Civil ponderaria, discricionariamente, se estaria verificado o requisito da relevância jurídica e/ou da relevância social que a reclamante invoca.

Não é, todavia, o caso.

Para além disso, recorda-se que, na reclamação prevista no artigo 643.º do Código de Processo Civil, apenas se pode apreciar a admissibilidade do recurso que estiver em causa, não cabendo emitir qualquer opinião ou decisão sobre a ou as questões que eventualmente constituam o objecto do recurso não admitido. [...]

7. Assim, indefere-se a reclamação."

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