08/03/2025

Bibliografia (1176)


-- García Mirete, C. M., Justicia digital transfronteriza (Tirant lo Blanch, Valencia, 2025)


07/03/2025

Jurisprudência 2024 (121)


Processo executivo;
recurso de revista; admissibilidade


1. O sumário de STJ 11/6/2024 (499/08.7TCSNT-B.L1.S1) é o seguinte:

O art. 854º do CPC impõe uma regra de condicionamento de acesso ao terceiro grau de jurisdição, de forma que, na acção executiva, não é admissível revista das decisões respeitantes à instância executiva (como a que se reservam para os «modos de pagamento» e «venda» em sede de execução para pagamento de quantia certa), reservando-se tal impugnação de último grau em regime ordinário apenas para as decisões respeitantes aos enxertos-incidentes declarativos contemplados na excepção legal, sem prejuízo de revista para os «casos em que é sempre admissível revista» (art. 629º, 2, CPC).


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Questão prévia da admissibilidade do recurso

9. O art. 652º, 5, b), do CPC permite «recorrer nos termos gerais» dos acórdãos proferidos em conferência.

10. O art. 854º do CPC prescreve:

«Sem prejuízo dos casos em que é sempre admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiçaapenas cabe revista, nos termos gerais, dos acórdãos da Relação proferidos em recurso nos procedimentos de liquidação não dependente de simples cálculo aritmético, de verificação e graduação de créditos e de oposição deduzida contra a execução.»

11. Desta norma resulta uma regra de condicionamento de acesso ao terceiro grau de jurisdição, de forma que, na acção executiva, não é admissível revista das decisões respeitantes à instância executiva (como a que se reservam para os «modos de pagamento» – arts. 795º-797º, CPC – e «venda» – arts. 811º e ss, em esp. 816º-829º, CPC – em sede de execução para pagamento de quantia certa – arts. 724º a 851º do CPC), reservando-se tal impugnação de último grau em regime ordinário apenas para as decisões respeitantes aos enxertos-incidentes declarativos contemplados na excepção legal (arts. 716º, 791º, 728º-734º, CPC), sem prejuízo de revista para os «casos em que é sempre admissível revista» (art. 629º, 2, CPC).

12. Perante a irrecorribilidade legal que afecta a presente impugnação [da entrega de imóvel adjudicado em execução], em referência ao despacho em 1.ª instância de 23/2/2023, a Recorrente não estribou a sua revista em qualquer das situações legalmente previstas no art. 629º, 2, do CPC, para fundar uma revista extraordinária que legitimasse a revista (art. 637º, 2, 1.ª parte, CPC) e ultrapassasse a irrecorribilidade-regra (v., por ex., recentemente, os Acs. do STJ de 17/10/2023, processo n.º 3141/07, e de 25/5/2023, processo n.º 2422/04).

É o suficiente para não podermos deixar de concluir pela manifesta inadmissibilidade do recurso."

[MTS]


06/03/2025

Jurisprudência 2024 (120)


Recurso de revisão;
fundamentos; violação do princípio da confiança*


I. O sumário de RE 23/5/2024 (236/20.8T8GDL.E1-A) é o seguinte:

1 – Uma sentença não pode servir de fundamento a recurso extraordinário de revisão por não poder ser qualificada como um documento.

2 – Já assim não será se a parte deposita confiança num acto do Tribunal e definiu a sua actuação processual com base nessa decisão, sob pena de infracção de princípios processuais tão relevantes como o da boa fé ou da cooperação.

3 – Nos recursos de reparação existe uma malha apertada de fundamentos e de prazos para a interposição do recurso de revisão.

4 – Quanto ao prazo de interposição consignado no artigo 697.º do Código de Processo Civil, dando aplicação prática ao preceito inscrito no artigo 329.º do Código Civil, o mesmo é contado a partir do momento em que a parte obteve o documento ou teve conhecimento do facto que serve de fundamento à revisão e não do trânsito em julgado da decisão a rever.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"O Tribunal competente para o recurso de revisão é o Tribunal que proferiu a decisão objecto deste recurso de harmonia com a previsão do n.º 1 do artigo 697.º do Código de Processo Civil. E, assim, tendo havido recurso de apelação ou de revista, independentemente de a decisão ser confirmatória ou revogatória, o Tribunal competente é, respectivamente, o da Relação ou o Supremo Tribunal de Justiça, corrigindo-se o lapso manifesto do despacho proferido a 05/05/2023 pelo precedente relator.

O recurso extraordinário de revisão interpõe-se de decisões transitadas em julgado (sentenças, despachos e acórdãos) e representa uma possibilidade de reabertura do processo que escapa ao axioma da res iudicata pro veritate habetur.

Neste domínio, existe o princípio fundamental que aquilo que foi objecto de julgamento definitivo não pode ser novamente submetido à discussão, salvo se se verificar um conjunto restrito de fundamentos que «visa combater um vício ou anomalia processual de especial gravidade, de entre um elenco taxativamente previsto» [José Lebre de Freitas, Armando Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2022, pág. 302.]

Efectivamente, alvitrava Alberto dos Reis que o recurso extraordinário de revisão apresentava «o aspecto de atentado contra a autoridade do caso julgado» e se situava no âmbito do «conflito entre as exigências da justiça e a necessidade da segurança ou da certeza» [José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. VI, Coimbra Editora, Coimbra, reimpressão de 1980, págs. 335-336.]

A revisão de uma decisão transitada em julgado deverá ser algo de excepcional, sendo que a regra é que o caso julgado, a bem da segurança jurídica, torne a decisão indiscutível. Estando-se perante um recurso que é extraordinário e que existe precisamente para que o caso julgado possa ser ultrapassado, as exigências para a admissão do mesmo têm de ser particularmente cuidadas, para que não se faça da excepção a regra [---]

No fundo, apesar da denominação, trata-se de uma verdadeira acção e não de um recurso no sentido técnico-jurídico de rigor [---] e os fundamentos de recurso são acolhidos no artigo 696.º [---] do Código de Processo Civil.

A questão matricial deste procedimento recursal reside na resposta diferente de dois Tribunais quanto à questão do exercício da preferência por parte dos Autores e que obteve duas respostas discordantes sobre a mesma questão essencial, uma confirmatória da pretensão por entender que o adquirente não era dono de nenhum prédio confinante e outra negatória na medida em que se provou existir uma prévia relação de vizinhança impeditiva da procedência da acção.

É de salientar que o prédio decisivo para formular o juízo de confinância era o que deu origem à acção registada sob n.º 235/20.0T8GDL. O dito imóvel constituía o fundamento da defesa por excepção ao exercício do pedido do direito de prelação na acção aqui em discussão. Porém, naquele outro procedimento foi reconhecido à parte activa o direito de haver para si, pelo referenciado preço, o prédio em causa, em substituição dos prévios adquirentes. E, em determinada concepção, com essa adjudicação terá desaparecido o motivo determinante da improcedência ocorrida na acção registada sob o n.º 236/20.8T8GDL.

Os recorrentes encaixam a sua pretensão na alínea c) do artigo 696.º do Código de Processo Civil que estabelece que a decisão transitada em julgado só pode ser objecto de revisão quando se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida.

Quanto ao requisito novidade, João Espírito Santo refere que o mesmo não significa a necessidade de o documento se haver formado depois do trânsito em julgado da sentença a rever, porque as palavras «de que a parte não dispusesse nem tivesse conhecimento», inculcavam precisamente que «o documento já existia, mas a parte não pôde socorrer-se dele, ou porque o desconhecia ou porque não o teve à sua disposição» [João Espírito Santo, O documento superveniente, para efeito de recurso ordinário e extraordinário, Almedina, Coimbra, 2001, pág. 70.]

Um dos documentos apresentados corresponde a uma certidão permanente da Conservatória do Registo Predial referente ao prédio sub judice, que revela a aquisição a favor de (…) e mulher (…), por decisão judicial na sequência da procedência da acção de preferência.

É ideia consolidada que a força probatória material dos documentos autênticos se cinge às percepções da entidade documentadora (quorum notitiam et scientiam habet propiis sensibus, visus et auditus), razão pela qual a jurisprudência dos nossos Tribunais se tem pronunciado pela negação da presunção a que se refere o artigo 7.º do Código do Registo Predial relativamente às áreas e às confrontações, mas sublinham que abrange a presunção da titularidade.

Contudo, este documento não é susceptível de «por si só, alterar em sentido mais favorável a decisão revidenda em que o recorrente foi vencido» [José Lebre de Freitas, Armando Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2022, pág. 305.]. Ou, nas palavras de Abrantes Geraldes, este documento deveria «ser de tal modo antagónico com aquela, no seu alcance probatório, que justifique, sem qualquer relação com a prova produzida no processo, a decisão em sentido contrário» [António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I (Parte Geral e Processo de Declaração: artigos 1.º a 702.º), 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2023, pág. 896.]. E isso não acontece, dado que a situação exige a interacção com outros elementos factuais e probatórios para que seja formulado um silogismo judiciário distinto.

Resta assim o documento que contém a sentença proferida. No entanto, tanto a doutrina [---] como a jurisprudência [---] defendem que uma sentença não pode servir de fundamento a recurso extraordinário de revisão por não poder ser qualificada como um documento, ficando assim, desde 2007, em especial após a eliminação da alínea f) do Código de Processo Civil de 1961, vedada a possibilidade de revisão de sentença ser fundada num suporte que não corporize uma declaração de verdade ou ciência.

Para além desta restrição quanto à apresentação de sentença, um dos fundamentos do recurso de revisão é a apresentação de documento novo, no sentido em que não foi apresentado no processo onde se emitiu a decisão a rever, porque ainda não existia, ou, porque existindo, a parte não pôde socorrer-se dele, por não ter tido conhecimento da sua existência [---]

A decisão transitada em julgado só pode ser objecto de revisão quando se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida.

Retornemos então à matéria do acórdão anteriormente proferido por este Tribunal da Relação de Évora, para afirmar que cremos que, não tendo transitado a decisão, a solução processual mais razoável seria a de suspender os actos por via da existência de uma causa prejudicial e isso, certamente, evitaria o recurso ao recurso de revisão e poderia balançar a resultados distintos.

O que é certo é que, em função daquilo que ali ficou escrito, temos aqui de excepcionalmente seguir a linha de pensamento e de orientação presente no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência de 31/03/2009, depois reproduzida no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08/05/2013.

Estamos perante um caso em que a confiança que a parte deposita num “acto do juiz, que lhe foi notificado, e em função do qual definiu a sua actuação processual” tem de ser tutelada, sob pena de infracção de princípios processuais tão relevantes como o da boa fé ou da cooperação [Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8/05/2013, consultável em www.dgsi.pt.]

Neste parâmetro, note-se que, de acordo com o comentário de Lebre de Freitas [José Lebre de Freitas, Armando Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2022, págs. 169-170.], neste caso, a prevalência da confiança e da boa fé sobre o rigor formal impõe-se, dado que a propositura da acção de revisão assenta numa possível errónea interpretação do Tribunal quanto aos fundamentos da reapreciação da prova baseada em documento superveniente ao da produção de prova na Primeira Instância [No presente acórdão do Tribunal da Relação de Évora datado de [?; sic] ficou consignado: «no caso dos autos, assiste sempre aos recorrentes o direito de interpor recurso de revisão, caso a sentença acima referida e proferida pelo mesmo tribunal, venha a transitar em julgado, como o permite e prevê o artigo 696.º/c), do CPC».]

Por isso, como se disse, excepcionalmente, admite-se a decisão judicial como fundamento formal do pedido de revisão."

*III. [Comentário] O acórdão da RE não pode passar despercebido.

O acórdão considerou admissível o recurso de revisão com base na confiança que, 
pelo próprio acórdão recorrido, foi incutida na parte de que esse recurso extraordinário era admissível. É uma orientação a que se adere sem hesitação, na base de que as partes podem confiar na aparência criada pelo tribunal e de que o sistema processual deve comportar-se perante as partes de modo confiável.

O caso chama a atenção para um défice do CPC (já referido aqui). O CPC consagra suficientes garantias inerentes ao processo equitativo, mas ainda é muito insuficiente quanto aos meios de reacção contra a violação dessas garantias.

MTS


Jurisprudência 2024 (119)


Processo de inventário;
avaliação de bens; licitações


1. O sumário de RG 23/5/2024 (2714/21.2T8BCL.G1) é o seguinte:

I - No actual processo de inventário, instituído pelo Lei n.º 117/19, contrariamente ao que acontecia no anterior Código de Processo Civil, o despacho determinativo da forma à partilha é proferido antes da conferência de interessados, das eventuais avaliações de bens (art.º 1114º), das licitações (art.º 1113º) e do incidente de redução de doações (art.º 1118º), destinando-se apenas a definir as quotas ideais de cada um dos interessados independentemente do resultado daquelas.

II - Para que tal despacho sobre o modo como deve ser organizada a partilha, definindo as quotas ideais de cada um dos interessados, possa ser proferido, têm de se mostrar já decididas todas as questões susceptíveis de influírem na partilha e na determinação dos bens a partilhar (art.º 1110º nº 1 al. a) do CPC).

III - No regime da comunhão geral de bens estão excluídos da comunhão os objectos de uso pessoal e exclusivo de cada um dos cônjuges (art.º 1733º, al. f) do Código Civil, doravante CC), pelo que a aliança de casamento do cônjuge marido não integra o património comum do dissolvido casal, não se atendendo ao seu valor para o cálculo das meações dos inventariados, mas apenas para o acervo da herança a partilhar deixada pelo de cujus a quem pertencia.

IV - Nos termos do art.º 2104º do CC, os descendentes que pretendam entrar na sucessão do ascendente devem restituir à massa da herança, para igualação da partilha, os bens ou valores que lhes foram doados por este: esta restituição tem o nome de colação.

V - Quando a doação é feita a favor de descendente por conta da quota disponível dos doadores, afastada se mostra a igualdade na partilha e, atento o disposto nos art.º 2113º do CC, a herdeira legitimária donatária está dispensada de colação, ou seja, para entrar na sucessão dos seus pais não tem o dever de restituir o bem doado à massa da herança, para igualação da partilha.

VI - Significa isto, que, não havendo lugar a colação, o bem comum doado já não existe no património dos doadores – a imputação de metade do valor do bem doado por morte de cada um doadores (art.º 2117º do CC), destina-se apenas ao cálculo do valor da quota disponível para aferir da eventual inoficiosidade da doação. Só os restantes bens integram o património comum e a respectiva meação, nesse património, a herança a partilhar pela por óbito da inventariada. Já a herança a partilhar por óbito do cônjuge supérstite é constituída pelo valor da sua meação, pelo bem próprio, e pela sua quota na herança de sua pré defunta esposa.

VII - Inoficiosidade da doação que nunca poderá ser invocada nem beneficiará a herdeira testamentária, aqui recorrente, mas apenas o outro herdeiro legitimário (art.º 2169º do CC. Sendo requerida a redução da doação, por meio do incidente previsto numa fase processual posterior à presente (artºs 1118º e 1119 do CPC), a mesma poderá ser reduzida no montante indispensável ao preenchimento da legítima ofendida, o que na prática leva à imputação do excesso na quota legitimária da donatária. Em princípio só haverá lugar à restituição (em regra do valor e não da coisa) se e na medida em que a doação dispensada de colação exceda o valor da quota disponível dos doadores e da quota legitimária da donatária.

VIII - Até ao início das licitações é admissível requerer-se a avaliação de bens. As licitações terão por valor base o que constar da relação de bens, ou do acordo das partes, ou o da avaliação, se for esta for requerida.

IX - Ao determinar-se que “(…) os aludidos preenchimento e composição dos quinhões hereditários serão efectuados em função dos valores das licitações, quanto aos bens que forem licitados, e dos demais valores dos restantes bens”, e não, como pretende a apelante, apenas em função do valor da avaliação, não se está a “tratar desfavoravelmente a parte que, pela sua situação económica, não possa entrar na licitação”, pois que o valor base da licitação será sempre o da avaliação, avaliação que a recorrente poderá requerer, caso discorde dos valores atribuídos na relação de bens (art.º 1114º do CPC) e o excesso da licitação será contabilizado na massa do activo a partilhar (somam-se os valores dos bens com os aumentos provenientes das licitações).

X - Só existiria tratamento desfavorável se se admitisse licitação por valor inferior, interpretação que, dada a redacção do nº 3 do art.º 1113º e a inserção sistemática do art.º 1114º, nº 1, ambos do CPC, entendemos colidir com o sentido e alcance de tais normas.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"No despacho recorrido determinou-se que “(…) os aludidos preenchimento e composição dos quinhões hereditários serão efetuados em função dos valores das licitações, quanto aos bens que forem licitados, e dos demais valores dos restantes bens”.

Segundo a recorrente, do assim determinado resulta, que, no preenchimento dos quinhões hereditários, apenas se terá em conta o valor das licitações relativamente aos bens que forem licitados, excluindo o valor atribuído pela avaliação dos mesmos.  Situação que, no entender do recorrente, corresponde a tratar desfavoravelmente a parte que, pela sua situação económica, não possa entrar na licitação, revelando-se tal interpretação inconstitucional por violação do princípio da igualdade entre as partes, previsto no n.º 1 do art.º 13º da Constituição da República Portuguesa.

Cremos que a apelante está a configurar a hipótese de os bens serem licitados por valor inferior ao da avaliação.

Sem prejuízo do que a seguir se expenderá, cremos que a parte final do despacho recorrido ultrapassa as questões que se impunha conhecer nesta fase, pois só subsequentemente se colocarão as questões relativas ao preenchimento e composição dos quinhões hereditários (artºs. 1111º a 1120º nº 1 do CPC), o que, contudo, não sindicaremos, por extravasar o objecto do recurso.

Apreciando

Numa fase posterior à determinação da forma à partilha, já em sede de elaboração do mapa da partilha, notificados os interessados para apresentarem proposta de mapa da partilha, da qual constem os direitos de cada interessado e o preenchimento dos seus quinhões, de acordo com o despacho determinativo da partilha e os elementos resultantes da conferência de interessados, estabelece o art.º 1120º nº 3 do CPC:

Para a formação do mapa determina-se, em primeiro lugar, a importância total do ativo, somando-se os valores de cada espécie de bens conforme as avaliações e licitações efetuadas e deduzindo-se as dívidas, legados e encargos que devam ser abatidos, após o que se determina o montante da quota de cada interessado e a parte que lhe cabe em cada espécie de bens, e por fim faz-se o preenchimento de cada quota com referência às verbas ou lotes dos bens relacionados.

Redacção que não difere da prevista no art.º 1375º nº 2 do antigo CPC (Para a formação do mapa acha-se, em primeiro lugar, a importância total do activo, somando-se os valores de cada espécie de bens conforme as avaliações e licitações efectuadas e deduzindo-se as dívidas, legados e encargos que devam ser abatidos; em seguida, determina-se o montante da quota de cada interessado e a parte que lhe cabe em cada espécie de bens; por fim, faz-se o preenchimento de cada quota com referência aos números das verbas da descrição)

Entendemos que, neste conspecto, não há razões para divergir de doutrina e jurisprudência, há muito firmadas no domínio do anterior CPC, no sentido de que se somam os valores dos bens (resultante de avaliação ou acordo das partes) com o aumento eventualmente resultante das licitações [Ver a título meramente exemplificativo uma das fórmulas sugeridas por João António Lopes Cardoso em Partilhas Judiciais, 4º edição (1990) Vol. II, pág. 382: “somam-se os valores dos bens descritos com o aumento proveniente das licitações”, a mesma expressão se usando nas fórmulas a fls. 383, 388, etc.]. É esse o sentido da norma actual que não diverge da anterior.

Efectivamente, nos termos do art.º 1114º nº 1 do CPC:

1 - Até à abertura das licitações, qualquer interessado pode requerer a avaliação de bens, devendo indicar aqueles sobre os quais pretende que recaia a avaliação e as razões da não aceitação do valor que lhes é atribuído.
2 - O deferimento do requerimento de avaliação suspende as licitações até à fixação definitiva do valor dos bens.

Sobre as licitações rege o art.º 1113º e sobre o excesso de licitação o art.º 1116º, ambos do CPC.

Intuindo-se que o valor base de tal licitação será o da avaliação.

Neste sentido diz-se no sumário do acórdão do TRC de 20-9-2016 (proc. n.º748/06.6TBLMG.C1) in www.dgsi.pt: 

«(…) 2. A faculdade de os interessados reclamarem contra o valor dos bens antes das licitações não visa senão evitar que a base de licitação esteja acentuadamente falseada - a base de licitação, a concretização desta e o valor final da herança a partilhar são pressupostos de que depende, obviamente, a partilha que se pretende equitativa e justa; a justa determinação do valor constitui regra de imperativa aceitação, pois é mercê dela que vai atribuir-se a cada um aquilo a que tem legítimo direito.

3. O n.º 1 do art.º 1362º, do CPC, limitou o momento até ao qual é admissível o requerimento de avaliação de bens (“até ao início das licitações”) de modo a evitar a inutilização de licitações já efectuadas, em consonância com os princípios da economia e da boa fé processual.

4. Não sendo deduzida reclamação até ao início das licitações (contra eventuais excessos da avaliação) e/ou na falta de acordo dos interessados para uma nova alteração do valor dos bens, o valor da avaliação constituirá a base de partida das licitações

Jurisprudência que se mantém actual, por não ter sido introduzida alteração nesta matéria com a Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro.

Assim sendo, não se vislumbra como possa a recorrente ser prejudicada, pois que o valor base da licitação será sempre o da avaliação, avaliação que poderá requerer, caso discorde dos valores atribuídos na relação de bens (art.º 1114º do CPC).

A posterior licitação partirá desse valor, e, se o bem for licitado por valor superior, o acréscimo relevará para o valor a partilhar e concomitantemente, para o valor dos quinhões hereditários, cujo preenchimento e composição terá de ser efectuado em função dos valores das licitações, quanto aos bens que forem licitados, ou da avaliação relativamente aos que o não forem, como dispõe o art.º 1120º nº 3 do CPC.

Pelo exposto, não acompanhamos as conclusões da apelante, por o despacho em crise não colidir com o direito à igualdade das partes."

[MTS]


04/03/2025

Jurisprudência 2024 (118)


Processo de tutela da personalidade;
RGPD; direito ao esquecimento

1. O sumário de RC 21/5/2024 (5777/22.0T8CBR.C3) é o seguinte:

I – Constituem pressupostos do processo especial de tutela da personalidade, hoje previsto nos arts 857º a 880º CPC, a existência de ameaça à personalidade física e moral de pessoa física («ser humano», resultando, consequentemente, excluídas as pessoas colectivas), e a exigência de que essa ameaça seja ilícita e directa.

II – A circunstância do aqui Requerente, declarado falido há mais de vinte anos, ter sido reabilitado ao abrigo dos então arts 238º e 239º do CPEREF, porque o foi nos termos da al c) daquele art 238º, mantendo-se, por isso, devedor do aqui Banco Requerido, não lhe confere o “direito ao esquecimento” dessas dividas, como sucede, de algum modo, no CIRE, em função do instituto da exoneração do passivo restante, tanto mais que não está excluído que o Requerente, apesar de falido, não se pudesse ter apresentado à insolvência e ter beneficiado desse instituto.

III – Nos termos do art 17º/3 do Regulamento Geral (UE) n.º 2016/679, de 27 de Abril, do Parlamento Europeu e do Conselho, o direito ao esquecimento não prevalece, se, na ponderação de valores a que obriga, se vier a concluir que o prolongamento da conservação dos dados pessoais negativos em causa se revela necessário para o cumprimento de uma obrigação jurídica ou para o exercício de funções de interesse público.

IV – O banco Requerido, tal como os demais bancos, e como resulta do art 3º do DL 204/2008 de 14/10, está obrigado a fornecer à Central de Responsabilidades do BdP (CRC) elementos de informação respeitantes às responsabilidades efectivas ou potenciais decorrentes de operações de crédito concedido em Portugal, dever este a que reside um indiscutível interesse público.

V- Restrições como a recusa de abertura de conta bancária e a negação do recurso ao crédito para adquirir bens ou serviços ou a limitação na escolha do trabalho a desenvolver de acordo com as respectivas qualificações profissionais, contendem com um feixe alargado de direitos de índole pessoal que se mostram reconduzíveis à tipologia de direitos, liberdades e garantias, incidindo não apenas na capacidade civil, mas também no bom nome e reputação e nos direitos económicos, ligando-se à dignidade da pessoa humana e à própria liberdade individual.

VI – Não obstante, não é a acima referida conduta do Banco Requerido que afecta esses direitos, por isso não se podendo falar de ameaça direta, como é pressuposto do referido art 878º.

VII – Com o que, não há que ponderar se as referidas restrições à capacidade civil se devem ter por desproporcionais e excessivas relativamente à finalidade a atingir com a actuação do Requerido junto da CRC.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"IV – Vistas as conclusões das alegações e no seu confronto com a decisão recorrida, resulta para decidir no presente recurso, correspondendo ao seu objecto, saber se deve prevalecer o direito do Requerente ao esquecimento, na medida em que a razão de ser da reabilitação do falido se deva fazer equivaler ao reinício de vida sem as restrições anteriores, como sucede com a actual exoneração do passivo restante; e, em todo o caso, se a actuação do Banco Requerido junto da Central de Responsabilidades de Crédito (CRC) implica restrições à capacidade civil do Requerente que se devam ter por desproporcionais e excessivas relativamente à finalidade a atingir com aquela actuação, e se deva fazer prevalecer o direito constitucional à capacidade, relativamente ao infraconstitucional da "protecção bancária".

As questões em causa – e há que o não esquecer – colocam-se num processo especial de tutela de personalidade, hoje, no âmbito do CPC de 2013, conceptualizado como processo de jurisdição contenciosa, como resulta da sua inserção nos arts 878º a 880º do código actual, em confronto com o que sucedia no CPC anterior, em que a tutela processual dos direitos de personalidade era obtida no âmbito da jurisdição voluntária – arts 1474º e 1475º - alteração que, entre o mais, implica que o tribunal não possa, como antes, investigar livremente os factos que entenda necessários à boa decisão da causa «sem estar dependente, direta ou indirectamente, da alegação das partes – nº 2 do art 986º CPC» [Cfr Mª dos Prazeres Beleza, «O Processo especial de tutela da personalidade no CPC de 2013», onde se manifesta – p. 72 - no sentido de que a deslocação da tutela processual dos direitos de personalidade da jurisdição voluntária para a contenciosa «não terá sido a melhor opção, porque afasta a aplicação de regras que me parecem manifestamente adequadas à melhor tutela dos direitos em causa».]

Os pressupostos deste processo especial resultam do art 878º, configurando-os esta norma como a existência de ameaça à personalidade física e moral de pessoa física («ser humano», resultando, consequentemente, excluídas as pessoas colectivas), e a exigência de que essa ameaça seja ilícita e directa.

É, pois, necessária a verificação de um acto voluntário e ilícito, como já resultaria do art 70º/1 CC, advindo tal acto de conduta do Requerido, não se tornando, no entanto, necessário a existência de danos e de culpa, mas exigindo-se que a ofensa se apresente como directa.

O pedido de providência é dirigido contra o autor da ameaça ou ofensa, e as providências que se requeiram podem constituir-se como posteriores (atenuantes) ou anteriores (preventivas) relativamente à consumação da ofensa.

Na situação dos autos, está em causa providência atenuante – a ofensa já se consumou e o seu decretamento visa, não a reparação dos eventuais danos já verificados, mas impedir que eles se agravem com a continuação das ofensas. [...]

Perante estes pressupostos, vejamos, na apreciação da 1ª questão acima evidenciada, se deve prevalecer o direito ao esquecimento sobre o interesse público do que o Requerente intitula de “protecção bancária”, e se, a circunstância da reabilitação do Requerente no âmbito do processo de falência se deve ter como condição suficiente para esse esquecimento.

Foi o caso Google Spain versus Mario Costeja González (estando, justamente, em causa uma antiga notícia relativa a uma dívida), que implicou, pela 1ª vez, a abordagem do direito ao esquecimento, então realizada pelo Tribunal de Justiça, com base na Directiva 95/46/CE, e veio a contribuir para a elaboração do Regulamento (UE) n.º 2016/679, de 27 de Abril, do Parlamento Europeu e do Conselho, em vigor desde 25 de Maio de 2018, que tem por objectivo a proteção das pessoas singulares no que diz respeito às regras inerentes ao tratamento de dados pessoais e sua livre circulação.

Para este Regulamento – cfr seu art 3º - entende-se por «dados pessoais», as informações que permitam identificar ou tornar identificável uma pessoa singular «como, por exemplo, um nome, um número de identificação, dados de localização, identificadores em linha ou um ou mais elementos específicos da identidade física, fisiológica, genética, mental, económica, cultural ou social dessa pessoa singular».

De acordo com o Considerando n.º 65 desse Regulamento, «Os titulares dos dados deverão ter direito a que os dados que lhes digam respeito sejam rectificados e o “direito a serem esquecidos” quando a conservação desses dados violar o presente regulamento ou o direito da União ou dos Estados-Membros aplicável ao responsável pelo tratamento». (…). Em especial, os titulares de dados deverão ter direito a que os seus dados pessoais sejam apagados e deixem de ser objeto de tratamento se deixarem de ser necessários para a finalidade para a qual foram recolhidos ou tratados, se os titulares dos dados retirarem o seu consentimento ou se opuserem ao tratamento de dados pessoais que lhes digam respeito ou se o tratamento dos seus dados pessoais não respeitar o disposto no presente regulamento».

Também a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, depois de no seu art 7º referir que toda pessoa possui o direito de ter assegurado o respeito por suas vidas privadas e que todas as pessoas têm o direito de aceder aos dados coligidos, refere no art 8º, sob a epígrafe, “Protecção de dados pessoais”, que «Todas as pessoas têm direito à protecção dos dados de carácter pessoal que lhes digam respeito» – nº 1- e que «Esses dados devem ser objecto de um tratamento legal, para fins específicos e com o consentimento da pessoa interessada ou com outro fundamento legítimo previsto por lei»-nº 2.

Já o art 12.º da Declaração Universal dos Direitos dos Homens preconiza que ninguém poderá sofrer quaisquer interferências no âmbito de suas vidas privadas, ou ataques à sua honra ou reputação.

A nossa CRP também revela preocupação com esta questão, como resulta do seu art 35º, onde garante, no nº 1, a todos os cidadãos o direito de acesso de seus dados informatizados, podendo os mesmos exigir a sua retificação e atualização, bem como o direito de conhecer a finalidade a que se destinam.

O direito ao esquecimento radica nos chamados “novos direitos fundamentais de personalidade”, cujo escopo principal é a proteção da intimidade e da privacidade, e consequentemente, a preservação da dignidade da pessoa humana. [Na subsequente exposição referente ao “direito ao esquecimento” acompanhar-se-á a tese de mestrado em Ciências Jurídico-Civis de Gisele Amaral, «Da Defesa da Personalidade e o Direito ao Esquecimento», disponível na internet.]

A ideia fundamental, é a de que os factos passados menos abonatórios que não possuam interesse público e actualidade e que possam acarretar danos à vida privada de terceiros devem ser esquecidos.

Do que já se vê que o direito ao esquecimento pressupõe uma ponderação de valores, colocando em confronto directo os direitos de personalidade que tutelam a intimidade, a honra, o bom nome, a imagem e a reputação, com o interesse público na divulgação dos factos que possam ferir esses direitos de personalidade, relacionando-se necessariamente, na actual era informática, com o sistema de protecção de dados, podendo implicar, quando prevalecente, a desindexação de informações a fim de se preservar a personalidade dos envolvidos.

A ideia não é, no entanto, e necessariamente, a da eliminação de todos os dados e referências de factos ocorridos no passado, apenas evitar a exposição desnecessária e prejudicial de acontecimentos que no presente não tenham já interesse público ou histórico, que não tenham o seu conteúdo atualizado ou ainda que prejudiquem a ressocialização e a regeneração daqueles que pretendem mudar de vida. Nas palavras de Diego Moura de Araújo, muito do direito ao esquecimento radica na possibilidade de ser dada «uma segunda chance àqueles que cometeram ou sofreram alguma falha em momento remoto e pretendem não mais serem estigmatizados por algo que possa denegrir suas imagens ou trazer recordações dolorosas muitas vezes já superadas pelo decurso do tempo».

É nessa linha que se insere o art 17º do já referido Regulamento Geral (UE) n.º 2016/679, de 27 de Abril, do Parlamento Europeu e do Conselho, que, no entanto, tem o cuidado de determinar no seu nº 3, que o direito ao esquecimento não prevalece se na ponderação de valores se revelar necessário o exercício da liberdade de expressão e de informação; se houver o cumprimento de uma obrigação legal; se houver motivos de interesse público no domínio da saúde pública, para fins de arquivo de interesse público, investigação científica, histórica ou fins estatísticos, bem como para efeitos de declaração exercício ou defesa de direitos em processo judicial.

O que significa que, «o prolongamento da conservação dos dados pessoais deverá ser efetuado de forma lícita quando tal se revele necessário para o exercício do direito de liberdade de expressão e informação, para o cumprimento de uma obrigação jurídica, para o exercício de funções de interesse público ou o exercício da autoridade pública de que está investido o responsável pelo tratamento, por razões de interesse público no domínio da saúde pública, para fins de arquivo de interesse público, para fins de investigação científica ou histórica ou para fins estatísticos, ou para efeitos de declaração, exercício ou defesa de um direito num processo judicial»

Do que resulta que o direito ao esquecimento não é absoluto, implicando sempre a ponderação dos interesses colidentes, colisão que implicando interesses iguais ou da mesma espécie deverá ser resolvido em função da aplicação dos critérios do art 335º CC.

Por outras palavras, estando em causa a ponderação entre normas de mesma hierarquia (do mesmo status constitucional) há que determinar até que ponto o grau de realização de um direito justifica o grau de sacrifício de outro.

Particularizemos em relação à situação dos autos.

O confronto será entre o referido direito ao esquecimento, e o consequente apagamento dos dados do Requerente referentes às dividas que mantém junto do Requerido decorrentes do processo de falência, e o interesse público que subjaz à obrigação atrás referida e resultante, no essencial, do art 3 º do DL 204/2008 de 14/10.

Como é sabido, a CRC (Central de Responsabilidades de Crédito), legalmente enquadrada pelo DL 204/2008 de 14/10, é um sistema de informação gerido pelo BdP, constituído por informação recebida das entidades participantes, nomeadamente instituições de crédito, sobre responsabilidades efectivas ou potenciais decorrentes de operações de crédito e por um conjunto de serviços relativos ao seu processamento e difusão.

E tem como objectivo apoiar as entidades participantes na avaliação do risco de concessão de crédito.

Para o efeito, estas entidades podem aceder à informação agregada das responsabilidades de crédito de cada cliente, ou potencial cliente (quando tenha ocorrido um pedido de concessão de crédito ou mediante autorização do mesmo) relativamente ao conjunto do sistema financeiro.

Mas o objectivo é mais vasto, pois que a informação sobre responsabilidades de crédito pode ser usada pelo BdP para efeitos de supervisão das instituições financeiras, análise da estabilidade do sistema financeiro, compilação de estatísticas e de realização de operações de politica monetária e de crédito intradiário.

Desde o momento em que estes objectivos só são conseguíveis em função do cumprimento do acima referido dever das entidades participantes, a informação destas contém um indiscutível interesse público legítimo, tendo de se considerar, absolutamente lícito.

Acresce que, como acima se viu, decorre do mencionado art 17º do Regulamento Geral (UE) n.º 2016/679, de 27 de Abril, do Parlamento Europeu e do Conselho, que o direito ao esquecimento não prevalece se na ponderação de valores necessária intervier o cumprimento de uma obrigação legal, mais a mais, de inegável interesse público.

O que significa que por esta via o A. não tem direito ao pretendido esquecimento, com o consequente apagamento dos seus dados pessoais no referente às dividas que mantém junto do Requerido depois do encerramento do processo de falência.

O que não muda, ainda que tenha existido sentença de reabilitação do Requerente enquanto falido – transitada em julgado em 21/6/2019 - ao abrigo dos então arts 238º e 239º do CPEREF, visto que a reabilitação que o mesmo obteve, o foi nos termos da al c) daquele art 238º - «pelo decurso de cinco anos sobre o trânsito em julgado da decisão que tiver apreciado as contas finais do liquidatário» - e não ao abrigo da al b) desse dispositivo - «depois do pagamento integral ou da remissão de todos os créditos que tenham sido reconhecidos» .

Entende o Requerente, não obstante, que, não tendo sido, enquanto falido, indiciado pela prática de infracções penais referidas no art 224º do então CPEREF – insolvência dolosa, negligente e favorecimento de credores - caso em que, segundo o art 239º/1, a reabilitação dependeria da extinção dos efeitos decorrentes dessa indiciação – e tendo beneficiado da referida sentença de reabilitação, com o que deixou de estar sujeito às limitações constantes do art 148º do CPEREF – inibição para o exercício do comércio, incluindo a possibilidade de ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa – tendo, por assim ser, recuperado todos os poderes de disposição e administração patrimonial, a sua posição, para o efeito que está em causa no pedido dos presentes autos, se deverá fazer equivaler à do insolvente que haja beneficiado da exoneração do passivo restante, devendo ser-lhe admitido um reinicio de vida sem as restrições resultantes das dividas decorrentes da falência.

Não se vê, no entanto, que possa estabelecer-se qualquer equivalência ou sequer paralelo entre as referidas posições.

È que a exoneração do passivo restante implica muito mais do que a reabilitação do falido, ficando dependente de um exigente procedimento por parte do insolvente durante um período, primeiro, previsto como de cinco anos, hoje, apenas de três, que o legislador entendeu adequado para «viabilizar uma razoável satisfação dos créditos sobre a insolvência» [«Colectânea de Estudos sobre a Insolvência – A exoneração do passivo restante na insolvência das pessoas singulares», Luís Carvalho Fernandes, p 300]. Quer dizer o fresh start que o instituto em causa permite não se alcança sem um sensível esforço do insolvente e sem uma satisfação ponderada dos créditos sobre a insolvência.

Trata-se de um instituto nascido da preocupação com que os legisladores passaram a percepcionar o sobre-endividamento enquanto causa de graves problemas sociais e simultaneamente, enquanto consequência, em grande medida, da “democratização” do crédito fomentada pelos actuais regimes político económicos do mundo ocidental e que constitui factor do crescimento em que assentam, entendendo, por isso, deverem passar a assumir a prevenção e a possível reabilitação económica do insolvente particular. [...]

Trata-se de um mecanismo que é sempre dependente do pedido expresso do insolvente, e implica a cessão, do que venha a considerar-se como o seu rendimento disponível, aos credores, por intermédio de um fiduciário, perdurando essa cessão durante o prazo (fixo) de cinco anos (agora três) subsequentes ao encerramento do processo de insolvência.

Implica por parte do insolvente o cumprimento de uma série de deveres destinados a assegurar a efectiva obtenção de rendimentos para a referida cessão aos credores – cfr art 239º/4 - de tal modo que, quando o mesmo incumpra, culposamente, ou com negligência grave os deveres estabelecidos para esse período de cessão, o juiz poderá declarar a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante. 

Traduz-se, como o nome indica, da liberação definitiva do devedor quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência nos referidos cinco, hoje, três, anos, posteriores ao seu encerramento, nas condições fixadas no incidente (exceptuando-se o passivo que corresponda a créditos por alimentos, por indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor que hajam sido reclamadas nessa qualidade, dos créditos por multas, coimas e outras sanções pecuniárias por crimes ou contra ordenações e dos créditos tributários - cfr nº 2 do art 245º CIRE).

Do que se veio de dizer, fácil é concluir que a reabilitação do falido não corresponde à exoneração do passivo restante, nem em função do esforço que exige ao falido nem, apesar de tudo, na extinção, ainda que muito limitada, dos créditos sobre a insolvência a que conduz.

Consequentemente, não há paralelo possível entre os mecanismos em causa - as razões que presidem à consagração do fresh start na insolvência não são idênticas às que presidiam à reabilitação do falido no âmbito do CPEREF, ao contrário do que o apelante o refere nas conclusões p) e q) .

O mais que o Requerente/apelante poderia referir em abono da sua situação, seria a circunstância, óbvia, de não ter podido usar do mecanismo em causa por então o mesmo não existir, mas, na realidade, não se vê que ao mesmo não tivesse sido possível, após a entrada em vigor do CIRE, e decorridos que se mostrassem os 10 anos a que se reporta o art 238º al b) desse Código sobre a declaração da falência ou da reabilitação, apresentar-se à insolvência e requerer o beneficio da exoneração do passivo restante."

[MTS]

03/03/2025

Jurisprudência 2024 (117)


Depoimento de parte;
livre apreciação*


1. O sumário de RP 7/5/2024 (7755/22.0T8PRT.P1) é o seguinte:

I - O depoimento de parte é o meio de prova tendente à aquisição de prova por confissão. Ocorrendo a confissão sobre determinada factualidade, em audiência, é isso transposto para a acta, pela operação normalmente designada por “assentada”, em ordem a que assim se dote de força probatória plena essa confissão.

II - Qualquer das partes pode contribuir para o apuramento da verdade dos factos com as suas próprias declarações, mesmo quanto a factos que lhe sejam favoráveis. Se é certo que pode ser a parte a requerer esse meio de prova, o princípio do inquisitório permite ao tribunal avaliar essas mesmas declarações, ainda que produzidas em audiência por outro motivo que não o requerimento da própria parte, como é o caso de elas surgirem no contexto de um depoimento de parte.

III - O valor da prova de factos feita por declarações da parte a quem eles aproveitam é livremente determinado pelo juiz, mas o tribunal deve ser particularmente cauteloso nessa avaliação, dado o natural interesse do declarante. Porém, conceptualmente, esse meio de prova não está imbuído de uma qualquer menor valia, face a outras modalidades de prova não vinculada.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Não oferece dúvida a qualificação do contrato celebrado entre as partes – um típico contrato de seguro automóvel com cobertura de danos próprios, incluindo a cobertura de furto ou roubo - nem tão pouco o objecto da controvérsia que se mantém nesta fase do processo: a ocorrência, ou não, do furto do BMW do autor, desde o local onde ele alega tê-lo estacionado, no dia 10/10/2020, tal como descrito nos pontos 10 e 11 dos factos provados: nesse dia, entre as 21,00 e as 21,30, o autor estacionou o carro no Largo ..., porque foi jantar a um restaurante nas proximidades, e quando regressou ao local, entre a 1 horas/1 hora e 30 minutos, do dia 11/10/2020, o veículo havia sido subtraído desse local por desconhecidos e em circunstâncias desconhecidas.

Nos termos do contrato, a demonstração dessa factualidade consubstancia a concretização do risco contratual previsto, impondo à ré a indemnização do autor pelo valor do veículo, descontado de 15% por desvalorização, num total que também não é já questionado, de 10.428,01 euros (12.268,24 euros – 15%).

Entende, todavia, a ré que não se deve ter demonstrado que o autor estacionou o veículo como descreve, na data indicada, bem como que dali lho subtraíram. E, por isso, pretende que se deem por não provados os factos descritos nos referidos pontos 10º e 11º.

A impugnação da decisão sobre a matéria de facto está sujeita ao regime processual estabelecido no art. 640º do CPC, o qual, no caso, se mostra claramente respeitado, quer quanto à especificação dos factos a rever, ao sentido da revisão pretendida e aos meios de prova que conduzem a tal decisão.

Cumpre, pois apreciar tal impugnação.

É útil recordar que o tribunal justificou a sua convicção sobre a ocorrência do furto do BMW nos seguintes termos: “Por último e quanto ao desaparecimento do RI. Da conjugação do depoimento de parte do autor, com os depoimentos das testemunhas por este arroladas e o depoimento da testemunha BB, o perito averiguador, concluímos que o autor estacionou o RI no local alegado na petição inicial, no dia 10/10/2020, entre as 21h/21h30m, chegou sozinho e dirigiu-se sozinho ao restaurante B... onde jantou com os amigos que arrolou como testemunhas. Findo o jantar dirigiu-se ao RI para ir embora, na companhia do primo a quem ia dar boleia para casa, a testemunha CC, e de um outro amigo, e este já não estava no local. Após o que telefonou aos restantes amigos que vieram ter consigo, tendo sob conselho da testemunha DD, ido à esquadra da PSP, no ..., onde apresentou queixa. [...]

Ademais todos os factos alegados pela ré para infirmar o desaparecimento involuntário do RI não resultaram provados e/ou não conduzem à conclusão por esta pretendida.

Senão vejamos:

Não se pode afirmar que a temperatura exterior registada na memória da chave do RI que foi utilizada pela última vez no dia do seu desaparecimento, por volta das 21horas e 30 minutos não correspondesse à temperatura real, desde logo porque o documento apresentado pela ré para infirmar esse dado corresponde à temperatura sentida na estação meteorológica de ..., a qual dista mais de 10km do local onde o RI foi estacionado.

Efetivamente nenhuma das testemunhas indicadas pelo autor à seguradora e ouvidas em julgamento viram o RI, só tendo tomado conhecimento após.

Não ficou demonstrado que o Largo ... fosse um local com muito movimento durante a noite, sendo um local quase que “de passagem” obrigatória para acesso à baixa da cidade onde se localiza um maior número de restaurantes e de bares e as casas de habitação ali existentes não estão no ... mas nas suas imediações, sendo natural que as pessoas ali habitantes não tivessem conhecimento da existência de um furto, o mesmo sucedendo com os funcionários do restaurante e, ainda, que estes não se recordassem do autor, nem que o autor, constatando que o RI tinha desaparecido tivesse retornado ao restaurante, pois porque o que faria?; que auxílio poderia ser prestado ou interesse teria informar o restaurante do desaparecimento do veículo?

Não se pode afirmar, como o fez a ré, que a tecnologia CAS4 fosse um sistema “extremamente eficaz na prevenção de situações de furto”, primeiro porque uma simples busca na internet permita a aquisição de uma chave para um veículo igual ao RI (https://www.chaviarte.pt/comando-bmw-cas4-de-quatro-bot-es-433-mhz-serie-faab03tmcas4 fem.html); segundo é de conhecimento geral, como de há uns anos a esta parte os veículos BMW têm sido o alvo privilegiado de furtos, não só dos seus componentes como dos próprios veículos, existindo tecnologia disponível na internet de fácil acesso e custo pouco significativo que permitem que se aceda ao interior do veículo e que ele seja colocado em funcionamento. Ao contrário do que pretende a ré não existem veículos impossíveis de serem furtados a tecnologia dos veículos evoluiu mas em simultâneo evoluiu o meliante que se dedica ao furto de veículos automóveis, já não sendo aquele que parte o vidro, entra no veículo e o coloca funcionar através de uma ligação direta.

O autor desde que adquiriu o RI celebrou vários contratos de seguro, só que tal circunstância ainda que conjugada com todas as outras alegadas pela ré não permitem concluir pelo não desaparecimento involuntário do RI. A ser assim, até se poderia questionar se sendo esse o objetivo do autor porque celebraria o contrato de seguro com a ré quando anteriormente já tinha tido um seguro com a Tranquilidade, que é a marca comercial do Grupo A.... Por outro lado, dos seguros celebrados anteriormente só o celebrado com a E... não tinha cobertura contra furto e roubo.

A ré alegou, mas não provou que o autor estivesse efetivamente ligado ao ramo automóvel, é certo que o seu pai se dedica à venda de peças automóveis e pneus, que o autor anuncia na sua página de Facebook a venda de veículos, mas daí a se poder concluir, com toda a certeza, que o desaparecimento do RI foi propositado/planeador, não é possível. O autor explicou o motivo, apresentado uma explicação plausível e a ré apenas se limitou a levantar a suspeita, suspeita essa que até quase que se poderia traduzir como um preconceito em relação a todos os comerciantes de automóveis e artigos conexos.

Também a circunstância de, segundo a ré, o autor não ter publicitado nas redes sociais o desaparecimento do RI não levanta qualquer dúvida, desde logo porque se desconhece se todo o perfil do autor é público e por outro porque nem tudo o que acontece na vida das pessoas, principalmente os acontecimentos de cariz negativo são expostos ao mundo, ainda, que tais pessoas tenham uma postura de abrirem a todos a sua vida.

A ré não logrou demonstrar que o valor pelo qual o RI foi segurado tenha sido da autoria do autor (o que não se pode deixar de estranhar que tenha sido, como o afirmou a ré, desde logo pelo seu detalhe, indo até ao cêntimo, o que no homem comum não é habitual, tendendo sempre para o arredondamento), apenas se sabendo que a ré aceitou celebrar o contrato de seguro, com as coberturas contratadas, sem hesitação ou qualquer correção. Aceitando em segurar o RI pelo valor de 12.268,24 euros, ainda que em período anterior tenha estado seguro nos seus serviços por valor inferior. São tudo circunstâncias que a ré não podia ignorar e que poderiam conduzir a uma não aceitação da proposta de seguro ou à sua modificação, o que não aconteceu. Acresce, ainda, a ausência de demonstração do valor comercial do RI, porquanto os meios de prova apresentados reportam-se ao ano de 2022 e a veículos com uma quilometragem superior ao RI.

A tudo isto acresce um aspeto banal, mas com importância: se o autor tivesse provocado o desaparecimento do RI porque motivo, aparentemente sem levantar qualquer obstáculo, entregaria ambas as chaves do RI, não ignorando que as mesmas eram dotadas de memória? Não seria mais simples, apresentar apenas uma ou até declarar que as tinha perdido?

Por todos estes fundamentos se considerou como provada a factualidade descrita nos factos provados e não provada a incluída no ponto 2 dos factos não provados.”

A longa transcrição que antecede justifica-se, ainda mesmo antes de se analisarem os argumentos que sustentam a questão suscitada no recurso, para melhor se compreender o iter decisório do tribunal recorrido. Verifica-se, do excerto citado, que o tribunal considerou suficientemente satisfeito o ónus da prova que impendia sobre o autor, quanto à demonstração da subtracção do seu veículo, sem que tenha descurado a falência de toda a actividade destinada a contraprova desenvolvida pela ré.

Com efeito, o art. 346º do C. Civil dispõe que, à parte contrária da onerada com o ónus da prova, cabe tornar duvidosos os factos que aquela teria de provar. Porém, no caso em apreço, e sem que a ré o venha impugnar, todas iniciativas nesse sentido se frustraram em termos que, de alguma forma – como resulta da interpretação da argumentação do tribunal - tornaram, isso sim, plausível a tese do autor.

Importa, então, verificar se os meios de prova produzidos devem ter-se por suficientes para se considerarem provados os factos em questão.

Negando-o, afirma a apelante que nenhuma das testemunhas EE, agente da PSP, FF, directora-comercial, DD, empresário e GG, profissional de seguros, declarou ter visto o veículo estacionado no local em causa, o Largo .... Apenas CC o referiu, mas o seu depoimento foi desvalorizado pelo tribunal. E do depoimento de BB, perito averiguador, nada resulta.

A isso acresce que acresce que a declaração do próprio autor, nas circunstâncias em que foi prestado, não pode alicerçar a convicção do tribunal. Alega a ré: “O facto em causa, por alegado e favorável ao apelado, não podia ser provado pelo depoimento de parte deste, que visava apenas a sua confissão, não constando sequer da assentada que dele foi lavrada (cf. artº 454º/1 e 463º/1 do CPC e artº 352º do CC), sendo certo que aquele não prestou quaisquer declarações de parte”.

Não se pode, no entanto, concordar com esta tese da apelante, tendente a ignorar, por razões de ordem exclusivamente formal, a utilidade do meio de prova constituído pelas declarações do próprio autor.

É certo que o autor foi chamado a depor no âmbito do depoimento de parte requerido pela ré. Tal depoimento de parte é, como se sabe, o meio de prova tendente à aquisição de prova por confissão – art. 356º, nº 2 do C.Civil. Para além disso, ocorrendo a confissão sobre determinada factualidade, em audiência, é isso transposto para a acta, pela operação normalmente designada por “assentada”, em ordem a que assim se dote de força probatória plena essa confissão. É o que dispõe o art. 358º, nº 1 do C.Civil.

Ora, não sendo a matéria dos factos 10º e 11º desfavorável ao próprio autor, não poderia ela ser demonstrada por confissão – art. 352º do C.Civil.

Porém, como se sabe, a própria parte pode contribuir para o apuramento da verdade dos factos com as suas próprias declarações, mesmo quanto a factos que lhe sejam favoráveis. O art. 466º do CPC veio prevê-lo expressamente e, se é certo que pode ser a parte a requerer esse meio de prova, é não menos certo que o princípio do inquisitório, tal como consagrado no art. 411º do CPC, permite ao tribunal avaliar essas mesmas declarações, ainda que produzidas em audiência por outro motivo que não o requerimento da própria parte. Como acontece, por exemplo, no caso de elas surgirem no contexto de um depoimento de parte requerido pela parte contrária. Essa solução, congruente com o princípio do inquisitório, mostra-se, de resto, expressamente prevista no art. 413º.

É óbvio, todavia, que o valor da prova de factos feita por declarações da parte a quem eles aproveitam é livremente determinado pelo juiz (arts. 466º, nº 3 e 607º, nº 5 do CPC), tal como o é que o tribunal deve ser particularmente cauteloso nessa avaliação, dado o natural interesse do declarante. Como se refere no Ac. do TRC de 05-11-2019, proc. nº 2012/15.0T8CBR.C1 “O princípio da livre apreciação da prova nunca atribui ao juiz “o poder arbitrário de julgar os factos sem prova ou contra as provas”, ou seja, a livre apreciação da prova não pode confundir-se “com uma qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios”, sendo “antes uma conscienciosa ponderação desses elementos e das circunstâncias que os envolvem”.

Porém, conceptualmente, esse meio de prova não está imbuído de uma qualquer menor valia, face a outras modalidades de prova não vinculada, tal como se salienta no sumário desse mesmo acórdão: “A prova por declarações deve merecer a mesma credibilidade das demais provas legalmente admissíveis e deverá ser valorada conforme se estabelece no art. 466.° n.º 3 do NCPC, isto é, deverá ser apreciada livremente pelo tribunal.”

Temos, pois, rejeitando a tese da apelante, que as declarações do autor quanto à matéria em questão, nas concretas circunstâncias em que foram prestadas, transcendendo a função do depoimento de parte, mas passíveis de aproveitamento pelo tribunal, constituem um meio de prova válido e eficaz para a comprovação do furto do automóvel, mas descritas circunstâncias de tempo e lugar.

No caso, essas declarações mostram-se em si mesmas credíveis, dado o contexto em que é descrito o estacionamento do carro, a razão que o determinou, a razoabilidade de toda a dinâmica factual descrita. E isso tanto mais quanto se constate um contexto fáctico da situação onde seja natural a impossibilidade de produção de outra prova que não as declarações do próprio autor, como acontece no caso em apreço em que este descreve que chegou ao local onde estacionou o carro sem a companhia de outrem.

A isso acresce um facto externo ao próprio autor e que é congruente com a sua descrição: a entrega dos dois exemplares de chaves do veículo ao perito averiguador da ré e os elementos que eles proporcionaram (documentos juntos com a contestação da ré) designadamente a chave que revelava a sua última utilização em 10/10/2020, às 21,37h. Ou seja: quando o autor declara ter chegado e estacionado, jamais tendo voltado a ver o carro.

Por outro lado,, sendo certo que testemunhas como FF ou DD não viram que o autor tivesse estacionado o carro nas circunstâncias que descreveu, também o é que toda a dinâmica da combinação para o jantar e do ocorrido após o jantar, com a constatação do desaparecimento do carro, foram descritas em termos perfeitamente serenos, coerentes e credíveis, revelando a credibilidade de toda a narração do autor. FF e DD, que então eram namorados, narraram como chegaram ao restaurante, jantaram com o autor e outros, dali saíram e partiram, depois de se despedirem do autor e do seu primo CC, e como logo foram contactados pelo autor a contar como o carro desaparecera. E, bem assim, como acorreram ao local e desencadearam as acções seguintes: contacto para saber se o carro fora rebocado e queixa na PSP.

Em suma, conjugando todos os meios de prova referidos, inexiste qualquer razão para descrer da versão do autor sobre os factos ocorridos, designadamente os constantes dos itens 10º e 11º, coerentes com todos os demais narrados congruentemente por ele e pelas referidas testemunhas, quanto ao encontro no referido restaurante, partida dali, percepção do desaparecimento do veículo do local onde fora estacionado e onde FF e DD regressaram para acompanharem o autor nas referidas circunstâncias."

*3. [Comentário] Adere-se, sem reservas, à orientação defendida no acórdão.

O depoimento de parte é livremente apreciado pelo tribunal (art. 466.º, n.º 3, CPC). Livre apreciação significa, em geral, ponderação do valor probatório a atribuir ao meio de prova em função de todos os factores relevantes. Seria estranho que, em função destes factores, o depoimento de parte nunca fosse susceptível de merecer um valor probatório igual ao de outros meios de prova. 

Aliás, se no art. 466.º CPC se consagra o depoimento de parte como meio de prova, é porque este meio é susceptível de ter um valor probatório igual ao de qualquer outro meio de prova. Seria inconsequente consagrar um meio de prova que não pudesse ser valorado como qualquer outro meio de prova.

MTS


28/02/2025

Jurisprudência constitucional (234)


Recurso ordinário;
ónus do recorrente

-- TC 18/2/2025 (148/2025) decidiu

[...] Não julgar inconstitucional o artigo 640.°, n.º 1, do Código de Processo Civil, quando interpretado no sentido de que ao recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto se impõe o ónus suplementar de, no tocante à especificação dos pontos de facto que considera mal julgados, referenciar cada um com o correspondente meio de prova que se indica para o evidenciar [...].

 

Jurisprudência 2024 (116)


Citação edital;
dupla conforme


1. O sumário de STJ 29/5/2024 (9192/18.1T8LSB-A.L1.S1) é o seguinte:

A fundamentação do acórdão que confirma, por unanimidade, a sentença do tribunal de 1ª instância, apenas tem fundamentação essencialmente diferente, para efeitos do disposto no artigo 671º n.º 3 do CPC, quando a fundamentação da Relação tenha assentado, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam fundamentado e justificado a sentença da 1ª instância, sendo irrelevantes para esse efeito, discrepâncias marginais e secundárias e o reforço argumentativo levado a cabo pela Relação para fundamentar a mesma solução alcançada na sentença apelada.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A questão a decidir [na reclamação apresentada para a conferência] é apenas a de saber se a fundamentação do acórdão recorrido é (ou não) essencialmente diferente da sentença confirmada, sem voto de vencido.

I) O despacho reclamado, na sua parte decisória, apresenta o seguinte teor:

"Considerando ser entendimento pacífico que a fundamentação do acórdão que confirma, por unanimidade, a sentença do tribunal de 1ª instância, apenas tem fundamentação essencialmente diferente, quando a fundamentação da Relação tenha assentado, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam fundamentado e justificado a sentença da 1ª instância, sendo irrelevantes para esse efeito, discrepâncias marginais e secundárias e o mero reforço argumentativo levado a cabo pela Relação para fundamentar a mesma solução alcançada na sentença apelada, entende-se que, no caso presente, se verifica a dupla conforme ( cf. neste sentido, a título exemplificativo, o recente acórdão do STJ de 10.04.2024, processo n.º 476/10.9TJCBR-AE.C1-A.S1, relator Luís Espírito Santo e os vários nele citados).

Na verdade, as decisões da 1ª e 2ª instância, decidiram a questão da regularidade ou não da citação do Embargante, para os termos da ação declarativa onde foi proferida a sentença exequenda, especificamente se na ação declarativa se fez uso indevido da citação edital, tendo ambas decidido, em síntese, que da factualidade julgada provada que foram observadas as diligências previstas no artigo 236º do CPC e consequentemente não ter sido ilegalmente ordenada a citação edital, e ainda que a citação edital respeitou as formalidades legais, nos termos dos artigos 240º e 241º do CPC. concretamente na afixação do edital na porta da residência conhecida do Embargante.

A circunstância do acórdão recorrido ter aprofundado a fundamentação e aditado argumentos não considerados na sentença da 1ª instância, designadamente rebatendo a argumentação do Apelante quanto a ter havido incumprimento do artigo 240 n.º 2 do CPC, na fixação do edital, por alegadamente ser errada a identificação da residência do Embargante, tendo argumentado que, “em sentido comum, uma fração autónoma situada no «5º Esq.» ou no «5º E» de um prédio são a mesma e única fração autónoma” Diferente seria se, por absurdo, existissem de facto duas frações autónomas no mesmo prédio e andar, uma com a indicação de «Esq.» outra com a indicação de «E». Não é o caso, nem tal foi alegado,” não afasta estar-se perante fundamentação essencialmente coincidente nas duas instâncias.

Há, pois, dupla conforme (artigo 671 nº 3, do CPC) e tendo sido o acórdão proferido, sem voto de vencido, não é admissível, revista ordinária.

No entanto, verificando-se os requisitos gerais de admissibilidade da presente revista, quais sejam, a legitimidade de quem recorre (artigo 631º do CPC), ser a decisão proferida recorrível (artigos 671º n.º 1 e 854º do CPC ), ter sido o recurso interposto dentro do prazo legalmente estabelecido para o efeito (artigo 638º do CPC), ser admissível em função do valor da causa e da sucumbência (artigo 629º nº 1 do CPC), os autos serão remetidos à Formação, para apreciação da admissibilidade da revista excecional, como requer o Recorrente, nos termos e para os efeitos do artigo 672º nº 3 do CPC.”

II -O acórdão recorrido manteve a factualidade julgada provada na 1ª instância.

A fundamentação de direito da sentença da 1ª instância é a seguinte (extratos relevantes):

“A presente oposição tem como fundamento o disposto na alínea d) do art. 729.º do Código de Processo Civil, na redacção anterior à Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro, isto é, a “falta ou nulidade da citação para a acção declarativa quando o réu não tenha intervindo no processo.” (…)

A omissão dos deveres de informação e entrega estabelecidos no art. 227.º do Código de Processo Civil, determina, em regra, a nulidade da citação, nos termos do art. 191.º, n.º 1 do mesmo código. (….)

Há, pois, nulidade da citação quando – apesar do conhecimento ou, pelo menos, da cognoscibilidade do acto pelo citando que actue com a diligência devida – não foram integralmente respeitadas, na sua realização, as formalidades prescritas na lei, designadamente, as estabelecidas no art. 227.º do Código de Processo Civil. (…)

Nos termos do n.º 1 do art. 188.º do Código de Processo Civil, há falta de citação: (…)

c) Quando se tenha empregado indevidamente a citação edital;

Como se sustenta no acórdão da RL de 02.07.2013, proferido no âmbito do processo n.º 9838/08.0YYLSB.L1-A, “As causas de falta de citação, na prática, reconduzem-se a um único fundamento, isto é, à demonstração que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do ato, por facto que não lhe seja imputável, impendendo, sobre o citando o ónus de o invocar e demonstrar.”.

Como se viu, o uso indevido da citação edital integra umas das situações que a lei comina como falta de citação (art. 188.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil).

E compreende-se que assim seja, dado que a “citação edital é um meio precário e contingente de chamar o réu a juízo para se defender” (Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. II, p.422). Sendo um meio menos garantístico de interpelação judicial do que a citação pessoal, foi intenção do legislador reduzir o mais possível a sua utilização, dada a elevada probabilidade de o réu não vir a ter conhecimento da citação, ou não ter conhecimento dela em tempo útil.

Daí que previamente à opção pela citação edital, se tenham de observar as diligências previstas no art. 236.º do Código de Processo Civil. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, p. 226) indicam algumas das situações em que ocorre uso indevido da citação edital: a) (…)d) Citação determinada sem que tenham sido efectuadas as diligências previstas no art. 236.º Acrescentam aqueles autores que “quando a citação edital tenha sido determinada pela verificação judicial de uma situação formal de ausência ou de incerteza justificada a partir dos elementos que foram recolhidos, não parece que possa considerar-se que tenha sido indevidamente seguida a citação edital. Quando o autor tenha prestado todas as informações por si detidas e quando o tribunal tenha cumprido todos os preceitos formais exigíveis perante o circunstancialismo concreto e, apesar disso, seja induzido a adquirir a errada convicção sobre a efetiva ausência ou incerteza dos citandos, não deve afirmar-se a nulidade correspondente à falta de citação.” (ob. e loc. cit.) (…)

Prescreve o art. 236.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Ausência do citando em parte incerta”, que: (…)

Conforme decorre do n.º 1, in fine do citado preceito, a obtenção de informação acerca do paradeiro do citando através de diligências a realizar pelas autoridades policiais, apenas deve ocorrer quando o juiz o considere absolutamente indispensável para decidir da citação edital (o mesmo regime já resultava do art. 244.º, n.º 1 do Código de Processo Civil de 1961).

E compreende-se tal restrição ao auxílio das autoridades policiais para obtenção de informação acerca do paradeiro do citando, dada a delicadeza desse género de intervenção, por estarmos no âmbito de direitos, liberdades e garantias constitucionalmente protegidos. Com efeito, tal intervenção só deve ocorrer quando o juiz o considere absolutamente indispensável, dependendo tal ponderação, portanto, de um juízo de absoluta necessidade de intervenção policial, perante as circunstâncias do caso concreto.

A realização de diligências junto da entidade policial depende da formulação de um juízo prévio de absoluta indispensabilidade, tendo em vista decidir se é caso de ordenar ou não a realização da citação edital.

Desta forma, não parece que a lei permita o pedido de auxílio às autoridades policiais de forma arbitrária, dado que tais entidades não têm no seu escopo a realização de investigações em que apenas se discutem interesses privados.

Quer isto dizer que se o juiz concluir pela desnecessidade do recurso às autoridades policiais para decidir da citação edital, tal como aconteceu no caso em apreço, essa decisão não pode acarretar a nulidade do acto.

Por outro lado, compulsados os autos declarativos, verifica-se que a citação edital respeitou integralmente a tramitação prevista no art. 236.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, porquanto, para além de se terem realizado as pesquisas nas bases de dados a que alude o citado preceito, a afixação dos editais decorreu com observância da tramitação prevista nos artigos 240.º e 241.º do mesmo código, pelo que não se verifica qualquer irregularidade na tramitação da citação edital.

No que concerne aos resultados obtidos nas bases de dados, ponderou-se no ac. da RE de 06.10.2016 (www.dgsi.pt), “Se nas autoridades e serviços indicados no art.º 236.º, n.º 1, Cód. Proc. Civil, não existe morada actualizada do réu, porque este nunca a actualizou nos diversos serviços, não é necessária a obtenção de informações junto da autoridade policial para se realizar a citação edital.”

Na verdade, repare-se que na data em que se procederam às pesquisas nas bases de dados do tribunal (em 2015), em três delas ainda constava como morada o réu a “Rua ...”, quando o próprio executado admite que residiu naquela morada até 1999.

Perante o exposto, não se pode concluir pela irregularidade da citação edital concretizada nos autos declarativos, o que determina a improcedência da presente oposição à execução, determinando-se o prosseguimento da execução.”

Por outro lado, a fundamentação do acórdão recorrido é, no essencial, a seguinte:

“Não vemos razão para discordar do acerto da decisão recorrida; senão, vejamos: ( …)

Invoca, em primeiro lugar, o embargante que no âmbito dos autos de acção declarativa, não foi ordenada a citação por funcionário judicial na sede da entidade patronal do réu, “P..., Lda”.

27. O embargante trabalha na firma “P..., Lda”, sita na Quinta de ..., desde 1993 até à presente data.

Apurou-se, a este respeito, que:

7. Na base de dados da Segurança Social foi ainda apurada que a entidade patronal do réu, “P..., Lda”, tem a sua sede na “Quinta de ...”.

14. Por requerimento datado de 18.11.2015, o autor Fundo de Garantia Automóvel requereu que se procedesse à citação do réu, na sociedade “P..., Lda, sita na Quinta ...”.

15. Em 23.11.2015 a secção de processos remeteu carta registada com aviso de recepção para citação do réu AA, para a morada sita em “P..., Lda, sita na Quinta ...”, carta que veio devolvida com a indicação de "Não reclamado".

16. Por requerimento datado de 15.12.2015, o autor Fundo de Garantia Automóvel requereu que se procedesse à citação do réu, na sociedade “P..., Lda, sita na Quinta ...”.

17. Em 16.12.2015 a secção de processos remeteu carta registada com aviso de recepção para citação do réu AA, para a morada sita em “P..., Lda, sita na Quinta ...”, carta que veio devolvida com a indicação de "Objecto não reclamado".

Do exposto, resulta que, apesar de se terem obtido duas moradas para a entidade patronal do executado, as cartas enviadas com vista à citação postal no local de trabalho, vieram ambas devolvidas, com a indicação de «objecto não reclamado».

Acresce que a morada constante da base de dados da Segurança Social não corresponde à morada que agora se apurou ser a do seu local de trabalho (os números de polícia são distintos), pelo que a diligência de citação por funcionário judicial ou agente de execução, sempre seria infrutífera.

Improcede, pois, esta argumentação."

[MTS]