No caso em apreço, releva o segundo, ou seja, o regime da responsabilidade por erro judiciário, o qual consta, como acima referido, do artigo 13.º, do RRCEE. (…)
A lei exige que o pedido de indemnização se funde na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.
Recorrendo, de novo, à explicação de José Manuel Cardoso da Costa, colhida do Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-05-2023, p. nº 11359/20.3T8SNT.L1-2 acessível no site da dgsi.net, «sendo a função jurisdicional e as decisões em que ela se exprime o que são, então não há-de poder atribuir-se qualquer relevo a um alegado «erro» judiciário sem que ele seja reconhecido como tal pela competente instância jurisdicional de revisão. Sem tal reconhecimento, o «erro» (o puro «erro») só o será do ponto de vista ou no plano da análise crítico-doutrinária da decisão, não num plano jurídico-normativo: neste outro plano, o que subsiste é a definição do direito do caso, emitida por quem detém justamente o múnus e a legitimidade para tanto. É, pois, desde logo e fundamentalmente, uma razão dogmático-institucional, ligada à própria natureza da função judicial, que impõe a condição estabelecida pelo (…) n.º 2 do artigo 13.º - e exclui que a ocorrência e o eventual relevo do erro judiciário possam ser aferidos diretamente, e sem mais, em sede de responsabilidade e pelo tribunal competente para o apuramento desta».
Esta exigência de prévia revogação da decisão danosa não é uma solução líquida e isenta de críticas.
Com efeito, a doutrina e a jurisprudência têm reflectido sobre a conformidade constitucional deste pressuposto, desde logo porque existem casos em que não é admissível recurso pela circunstância de o valor da causa ser inferior à alçada do Tribunal – por exemplo, na jurisdição cível, o recurso da decisão do Tribunal de 1.ª instância está, em princípio e em primeiro lugar, dependente de o valor da causa ser superior à alçada desse Tribunal (artigos 629.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, e 42.º, n.º 2, e 44.º, n.º 1, da LOSJ).
Apesar destas dúvidas, o nosso Tribunal Constitucional já tomou posição quanto à conformidade constitucional da opção do legislador e nos acórdãos n.s 363/2015 e 844/2023 decidiu não julgar «inconstitucional a norma do artigo 13.º, n.º 2, do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, segundo o qual o pedido de indemnização fundado em responsabilidade por erro judiciário deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente».
Em ambas as decisões é feita referência a um acórdão do próprio Tribunal Constitucional, que embora seja anterior ao RRCEE abordou o artigo 22.º, da Constituição da República Portuguesa em termos que se mantêm actuais: o acórdão n.º 45/99.
Neste acórdão n.º 45/99 explica-se que «o artigo 22° da Constituição reconhece aos cidadãos o direito à reparação dos danos que lhes forem causados por ações ou omissões praticadas por titulares de órgãos do Estado e das demais entidades públicas, ou por seus funcionários ou agentes, no exercício das respetivas funções, reparação essa que deve ser integral e assumida solidariamente pela Administração. Mas o mesmo artigo 22° não estabelece os concretos mecanismos processuais através dos quais se há-de exercitar esse direito: ponto é que o legislador, ao fazê-lo, não crie entraves ou dificuldades dificilmente superáveis, nem encurte arbitrariamente o quantum indemnizatório.» Uma vez que não são estabelecidos os concretos mecanismos processuais mediante os quais este direito à reparação deve ser exercido, ao legislador ordinário assiste liberdade de conformação quanto ao modo de efectivar aquele direito. A exigência de que a decisão danosa tenha sido previamente revogada assenta, precisamente, nesta margem de liberdade.
Quanto a este Tribunal, sopesando o reconhecimento do direito fundamental à reparação de actos danosos, a natureza da função jurisdicional e que a acção de responsabilidade civil contraactos praticados naquele domínio já é uma forma de reacção secundária, dado que a primeira é a de recorrer da decisão danosa no âmbito do processo em que a mesma foi proferida, afigura-se que a disciplina constante do artigo 13.º, do RRCEE, não é arbitrária, nem desproporcional, inserindo-se numa margem de liberdade que se deve reconhecer ao legislador ordinário quanto ao desenho dos mecanismos para exercício do direito à reparação de actos danosos.
Tem-se, assim, que quanto a este Tribunal, na senda de posição já sufragada pelo nosso Tribunal Constitucional, o artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE, isto é, a exigência de prévia revogação da decisão danosa, não é inconstitucional.
De todo o modo, com a Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro, aditou-se o artigo 696.º-A ao Código de Processo Civil e foi dada nova redacção aos artigos 696.º, al. h), 697.º, 701.º e 701.º-A, do mesmo diploma, passando a prever-se expressamente a possibilidade de recurso de revisão no âmbito da acção em que foi proferida a decisão danosa, ao invés de o lesado ter que intentar especificamente uma acção de responsabilidade civil por danos decorrentes da função jurisdicional.
Com isto, fica ultrapassado na jurisdição cível o argumento de que nem todas as acções admitem recurso, o que, recorde-se, como se viu, não conduzia, pelo menos quanto a este Tribunal e à posição dos nossos Tribunais, à inconstitucionalidade do disposto no artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE.
Questão diferente e também suscitada pelo Autor é se esta exigência está, ou não, em conformidade com o direito da União Europeia.
Este assunto também já foi apreciado pela nossa jurisprudência e pelo Tribunal de Justiça, sendo que aí o que se tem configurado como efectivo problema a resolver não é se a disciplina do artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE respeita o direito da União Europeia, antes se o direito interno que foi aplicado no processo em que ocorreu o erro judiciário está em conformidade com o direito da União Europeia.
No âmbito de um reenvio prejudicial, no processo C‑160/14 - João Filipe Ferreira da Silva e Brito contra o Estado português, o Tribunal de Justiça após análise dos princípios da autoridade do caso julgado e da segurança jurídica como argumentos a favor da solução constante do artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE, decidiu que «O direito da União e, em especial, os princípios formulados pelo Tribunal de Justiça em matéria de responsabilidade do Estado por danos causados aos particulares em virtude de uma violação do direito da União cometida por um órgão jurisdicional que decide em última instância devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que exige como condição prévia a revogação da decisão danosa proferida por esse órgão jurisdicional, quando essa revogação se encontra, na prática, excluída».
Como explicam Alessandra Silveira e Sophie Perez Fernandes, a «regra do art. 13.º, n.º 2, do RRCEE não se aplica, pois, aos casos de violação do direito da União imputáveis ao Estado no exercício da função jurisdicional, por força do princípio do primado do direito da União» - Anotação aos acórdãos (TEDH) Ferreira Santos Pardal c. Portugal e (TJUE) Ferreira da Silva e Brito (ou do “grito do Ipiranga” dos lesados por violação do direito da União Europeia no exercício da função jurisdicional), página 7, disponível em
https://www.oa.pt...
A partir da decisão do Tribunal de Justiça João Filipe Ferreira da Silva e Brito contra o Estado Português, passou a vigorar um duplo regime, que varia consoante no processo em que a decisão danosa é tomada esteja em causa a violação de direito interno, ou de direito da União Europeia.
Foi neste contexto que surgiu a já acima referida Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro.
Com as alterações introduzidas ao Código de Processo Civil com esta, instituiu-se um
novo regime em que, pese embora se haja mantido a exigência da revogação prévia da decisão consagrada no artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE, se utilizou a «revogação da decisão que ocorre no juízo rescindente do recurso de revisão para cumprir a exigência do art. 13.º, n.º 2, Anx. L 67/2007; esta solução apresenta a significativa vantagem de, como a revisão deve ser interposta no tribunal que proferiu a decisão a rever (art. 697.º, n.º 1), evitar que – como aliás já sucedeu – decisões das Relações ou do STJ sejam discutidas, como fundamento de responsabilidade civil do Estado, nos tribunais de 1.ª instância» e ainda se consagrou a admissibilidade de «dedução do pedido de indemnização contra o Estado no juízo rescisório do recurso de revisão» - Miguel Teixeira de Sousa, As recentes alterações na legislação processual civil, Julgar Online, Dezembro de 2019, página 21 […]
Aplicando ao caso em apreço.
A presente acção configura uma acção de responsabilidade civil contra o Estado por danos decorrentes da função jurisdicional, pedindo o Autor que o Estado Português seja condenado a pagar-lhe indemnização pelos danos sofridos no âmbito do processo n.º 5100/19...., que correu termos no Juízo de Comércio de Coimbra.
A acção n.º 5100/19.... foi proposta pelo aqui Autor, pedindo este que lhe fosse reconhecido o seu direito de alienação potestativa dos valores mobiliários representativos do capital da sociedade F..., S.A. e que a aí Ré fosse condenada a pagar-lhe o justo valor por esses valores mobiliários.
A 22-02-2021 foi ali proferida sentença que condenou a aí Ré no pagamento do valor de € 90 364, decisão com a qual a Ré não se conformou e, por isso, recorreu. Nessa sequência, o Autor contra-alegou e pediu a ampliação do objecto do recurso.
A 12-10-2021 foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Coimbra, que confirmou a decisão da 1.ª instância.
Entende o ali e aqui Autor que deixou de receber os € 121 760,83 que considerava justo receber, tendo apenas recebido € 90 364, sofrendo um dano de € 31 396,83 – artigo 14.º da petição inicial.
Como decorre do acabado de explicar, a sentença da 1.ª instância foi confirmada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, não se verificando-se, portanto, o requisito exigido pelo artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE, de prévia revogação da decisão danosa.
Trata-se de uma exigência que, pelas razões acima explanadas, se mostra conforme à nossa Lei Fundamental.
Além de ser uma exigência que respeita a nossa Constituição, a mesma, no caso concreto, não vai contra o entendimento sufragado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, na medida em que na acção n.º 5100/19.... o pedido foi enquadrado à luz da lei interna, inexistindo referência ao direito da União Europeia. Assim sendo, uma vez que a causa em que a acção danosa alegadamente ocorreu não se prende com a (in)observância do direito da União Europeia, é de admitir a exigência feita pelo legislador ordinário português de prévia revogação da decisão danosa. Em suma, por não estar verificada a exigência de prévia revogação da decisão alegadamente danosa, conclui-se que falta um dos requisitos exigidos para responsabilização civil por danos decorrentes da função jurisdicional, o que permite concluir imediatamente pela improcedência da presente acção, ao abrigo do disposto no artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE. (…)
A final foi julgada verificada a excepção de ausência de prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente e, em consequência, a acção improcedeu, tendo o Réu Estado sido absolvido do pedido."
[MTS]