"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/05/2024

Jurisprudência 2023 (162)


Confissão extrajudicial;
efeito

1. O sumário de STJ 14/9/2023 (6495/20.9T8BRG.G1.S1) é o seguinte:

I. Em aplicação da jurisprudência uniformizada pelo AUJ nº 7/2022, fica inviabilizada a revista na situação em que os valores indemnizatórios arbitrados pelo Tribunal da Relação correspondam a um favorecimento da posição do recorrente - reformatio in mellius - conquanto não exaurindo a pretensão recursiva.

II. É residual a margem de intervenção do Supremo Tribunal de Justiça na matéria de facto fixada pelas instâncias, destinando-se fundamentalmente a sindicar o modo de exercício pela Relação dos poderes previstos no artigo 662.º do CPC e, a observância das regras do direito probatório material, conforme prevenido no artigo 674º, nº3 do CPC.

III. A aquisição pelo Tribunal da Relação de factualidade plenamente provada em razão da confissão escrita de facto desfavorável a um dos litigantes, alterando a decisão de facto, inscreve-se no âmbito da oficiosidade da sua actuação e emerge das regras impositivas de direito probatório material.

IV. Assente que o acidente de viação se ficou a dever à culpa exclusiva do condutor da viatura automóvel segurada, a reapreciação da matéria de facto sobre as causas do embate impugnada pela recorrente redundaria em actividade manifestamente inútil, ao arrepio da economia e celeridade processuais.


2. Na fundamentação do acórdão -- que tem um voto de vencida -- afirma-se o seguinte:

"Constitui hoje jurisprudência firmada por este Supremo Tribunal, que no exercício dos poderes-deveres de reapreciação da decisão de facto impugnada, a Relação tem autonomia decisória, não se limitando à verificação da existência de erro notório por parte do tribunal a quo, mas implica uma reapreciação do julgado sobre os pontos impugnados, em termos de formação, por parte do tribunal de recurso, da sua própria convicção, em resultado do exame das provas produzidas e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir.

Decorre inequivocamente do preceituado no artigo 662º, nº 1, do CPC, que à Relação caberá, sob impulso da oficiosidade, reapreciar a decisão de facto advinda do tribunal a quo, sempre que no confronto da adequada aplicação das regras vinculativas do direito probatório material, se imponha a sua modificação.

Actuação ex officio que provém da regra geral da aplicação do direito, sem embargo da intervenção respeitar o objecto e efeito útil para o recurso interposto, e bem assim o eventual caso julgado parcelar.

Á luz desse enquadramento normativo, situamos, precisamente, o caso sub judicio, em que a Relação, suportada nos efeitos da prova plena por confissão da Ré no tocante à responsabilidade do condutor da viatura segurada pelo acidente, que considerou refletida na carta enviada ao Autor, concluiu estar afastada a pretendida discussão e prova sobre dinâmica factual do sinistro.

No âmbito daquela previsão legal, em que a Relação se limita a aplicar regras vinculativas extraídas do direito probatório material, designadamente quando o tribunal recorrido tenha desrespeitado a força plena de certo meio de prova, como refere Abrantes Geraldes , cabem, « (…) entre outros, quando tenha sido desatendida determinada declaração confessória, constante de documento ou resultante do processo (art. 358° do CC e arts. 454°, n° 1 e 463 do CPC)(…), optando por se atribuir prevalência à livre convicção formada a partir de elementos probatórios (v.g. testemunhas, documento particular sem valor confessório ou prova pericial).» [Quod abundantet, também não constitui motivo impeditivo o facto de o Autor que invocou a seu favor a confissão a Ré, não ter reclamado do despacho saneador que incluiu nos temas de prova matéria relativa às circunstâncias do acidente, visto que a decisão que viesse a ser proferida sobre a reclamação por excesso, apenas seria de impugnar com o recurso interposto da decisão final, atento o disposto no artigo 596º, nº 3, do Código de Processo Civil.]

O Tribunal da Relação não estava, pois, impedido de empreender oficiosamente a alteração da matéria de facto sob esse fundamento, agindo dentro dos limites das competências estabelecidas no artigo 662º, nº1 do CPC e, da economia e objecto da apelação da Ré. [Na sentença a motivação da convicção relativa à dinâmica do acidente não faz qualquer menção ao documento e ao seu conteúdo -cfr. pontos 1 a 13 dos factos provados- assentou sobretudo nos depoimentos das testemunhas.]

Mais do que isso, na situação em juízo, não se tratou de decisão surpresa ou excesso de pronúncia, como argumenta a recorrente .

É comummente aceite que a inibição da prolação de decisões-surpresa, sendo um princípio de actuação crítico para um processo justo, equitativo e igualitário, tem subjacente que os fundamentos usados pelo julgador não foram perspetivados pelas partes, e assumiram reflexo inovatório relevante no sentido da decisão .

Au contraire, no caso sub judicio, de acordo com o disposto no artigo 608º, nº2 do CPC, a Relação estava adstrita a apreciar o valor probatório da aludida declaração da Ré na constante da carta em apreço, apesar do tribunal a quo não lhe ter atribuído significado probatório. [---]

Olvida, por certo, a Ré que o Autor, à semelhança do alegado na petição inicial, reafirmou nas contra-alegações da apelação o propósito de beneficiar da confissão extrajudicial emergente da carta da Ré .

De outro lado, o Tribunal da Relação na perspectiva de poder vir a lançar mão da referida carta para decidir, deu às partes a oportunidade adversial de se pronunciarem sobre a matéria. [---]

Do que resulta, que desde o começo da instância que a invocada confissão da culpa do segurado na produção do acidente, constante da carta junta e confirmada a sua autoria, constituiu objecto de discussão nos respetivos articulados, e mereceu, aliás, extensa refutação pela Ré na contestação; as partes podiam então prever o desfecho e sentido decisório prosseguido pela Relação, enquanto uma das soluções jurídicas plausíveis, face ao direito aplicável. [In Manual de Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1985, pág. 537, nota 2.]

Em suma, a Relação ao conhecer do valor probatório da carta enquanto confissão extrajudicial de factos desfavoráveis à Ré, não incorreu em erro de julgamento, debruçando-se sobre matéria debatida nos articulados, não traduzindo apreciação de questão nova ou decisão surpresa, observado ainda o contraditório em sede recursiva.

Importa agora decidir se, tal como se concluiu no acórdão impugnado, a declaração da Ré constante da carta indicada, assumirá o valor probatório de confissão para os efeitos que se colocam em discussão, i.e, as circunstâncias factuais do sinistro.

Está em discussão a carta junta a fls. 18, cuja autoria reconhecida pela Ré foi vertida pela Relação no ponto 39º da matéria de facto provada- “ Por carta datada de ... .06.2020, dirigida ao autor, pela seguradora foi dito que…” concluímos que a responsabilidade pelo acidente de ... .04.2020 foi de quem conduzia o veículo que garantimos, por isso vamos pagar a reparação dos danos acusados no seu veículo…”.

Em facilidade de exposição, antecipamos, que se acompanha o acórdão recorrido, no sentido confessório da missiva endereçada ao Autor .

Do seu teor, à luz do sentido extraído pelo normal declaratário, comunicado o sinistro à Ré seguradora da viatura automóvel interveniente no embate que envolveu o velocípede conduzido pelo Autor, a Ré reconheceu a responsabilidade do seu segurado/condutor pelo acidente.

E, assumiu claramente o pagamento - regularização dos prejuízos advindos, o que concluiu e efetivou, após averiguação que por sua conta e para o efeito realizou, i.e, a Ré aceitou sem reserva ou condição a obrigação (contratual) de reparar os danos causados pelo condutor da viatura segurada ao lesado-Autor .

Neste contexto em concreto tal declaração, s.d.r., não pode deixar de valer como instrumento confessório extrajudicial de factualidade desfavorável, vertida em documento particular, dirigido à parte contrária, e à qual a lei atribui a força probatória plena.

Aproximando.

Nos termos do artigo 376º do Código Civil, o documento particular cuja autoria se encontre reconhecida faz prova plena “quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento” (n.º 1), implicando ainda que “os factos compreendidos na declaração se consideram provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante (...)” (n.º 2)).

E, de harmonia com o disposto no artigo 352° do Código Civil, a confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária, e como dispõe o artigo 355°, n° 1 do mesmo código, a confissão pode ser judicial ou extrajudicial.

Por outro lado, sabido que, na aceção comum do termo “responsabilidade “ pelo acidente rodoviário, [isso] equivale à actuação do - condutor /interveniente que lhe deu causa - enquanto sequência dos factos naturalísticos, dinâmicos e causais do evento, [pelo que] supomos ocioso contrariar o sentido de declaração confessória no domínio dos “factos” desfavoráveis ao confidente-declarante.

Outro sentido, s.d.r., na normalidade social, não pode retirar-se da comunicação da Ré, afirmando inequivocamente “ ..concluímos que a responsabilidade pelo acidente de ... .04.2020 foi de quem conduzia o veículo que garantimos, por isso vamos pagar a reparação dos danos acusados no seu veículo…”

Vem a contendo citar os ensinamentos de Antunes Varela / Miguel Bezerra / Sampaio e Nora a propósito do instituto da confissão - «A meio termo entre a confissão do facto e a confissão do pedido se situam aqueles casos em que a parte reconhece o direito ou a relação jurídica invocada pela contraparte contra ela.» [---]

Objeta ainda a recorrente que na sua contestação impugnou a declaração constante da carta, motivada por erro de avaliação inicial do acidente, matéria que não foi incluída nos temas de prova, sem reclamação do Autor, pelo que não podia a Relação considerar verificados os efeitos de prova da confissão.

Cuidamos que não logrou por tal via infirmar o valor confessório da missiva dirigida ao Autor.

Perante a irretratabilidade da confissão, para atingir a sua eficácia o confidente terá de demonstrar que, além do facto confessado não corresponder à realidade, o confitente errou acerca dele ou que foi vítima de outra causa de falta ou de vício da vontade.

Sucede que a Ré, na contestação, limitou-se a “contrariar” a confissão sem fundamento operante, alegando que errou na análise dos elementos do acidente, e que após a citação, veio a reavaliar, concluindo que afinal o Autor também contribuiu para o embate, ao entrar inopinadamente na faixa exterior da rotunda onde foi embatido pelo veículo segurado.

Entre outras vantagens de meios materiais e humanos, o segurador dispõe na normalidade de peritos/técnicos aprestados a indagar e avaliar das causas e dinâmica dos acidentes em fase litigiosa, estando de resto legal adstrita, a apresentar com brevidade uma proposta de resolução do diferendo ou, declinar a responsabilidade contratual .

Observe-se, que a Ré não alegou qualquer facto superveniente à comunicação dirigida ao Autor, como seja o conhecimento de outra circunstância do acidente, ou até a prestação de informações erradas pelo segurado, simplesmente “reavaliou” a situação factual sob o seu juízo e critério, que envolvia a culpa do Autor na produção do embate.

Vale isto para concluir que a declaração produzida pela Ré na carta constitui o reconhecimento da assunção da responsabilidade pela ocorrência do acidente em nome do seu segurado.

Declaração de factualidade desfavorável à posição da confidente, realizada com os requisitos exigidos para que a confissão tenha eficácia probatória plena, na fase do processo judicial que a opõe ao Autor, apta a alicerçar a convicção probatória quanto à dinâmica do acidente, e da culpa exclusiva do condutor do veículo segurado.

O Tribunal da Relação exerceu, pois, em regularidade, os poderes de modificabilidade da decisão de facto que lhe estão acometidos e, em observância das regras do direito probatório material convocadas, conforme o preceituado nos artigos 662°, nº 1, 674º, n.º 3, do CPC; mantém-se, pois, o consignado na decisão de facto.

Por último, perante o enquadramento jurídico operado, assente que as causas do acidente de viação são imputáveis, em exclusivo, ao condutor da viatura segurada na Ré, a reapreciação pela Relação da matéria de facto impugnada sobre a dinâmica do sinistro redundaria em actividade manifestamente inútil, ao arrepio dos princípios de economia e celeridade processuais."

[MTS]


02/05/2024

Informação (304)

 
Aula de Jubilação
de M. Teixeira de Sousa


-- Intervenção de J. Costa Lopes

-- Intervenção de M. Teixeira de Sousa

Jurisprudência 2023 (161)


Revelia absoluta;
alegações do réu*


1. O sumário de RE 14/9/2023 (162/22.6T8SRP.E1) é o seguinte:

I. A omissão de despacho interlocutório a considerar confessados os factos articulados pelos Autores em consequência da revelia absoluta da Ré não configura nulidade processual à luz do disposto no art.º195º, nº1 do CPC;

II. Dado que a revelia absoluta supõe a ausência de constituição de mandatário judicial no decurso do prazo da contestação, não assiste ao réu, que esteja nessa situação, o direito de produzir alegações, não carecendo, por isso, de ser notificado para esse efeito, como resulta do disposto no art.º 249º, nº3 do CPC.

III. Quer à luz do Regime Jurídico dos Serviços de Pagamento (actualmente constante do DL n.º 91/2018, de 12 de Novembro), quer ao abrigo do disposto art.º 796º do Cód. Civil, a transferência de fundos pressupõe uma ordem do titular da conta de depósito, pelo que, não demonstrado este pressuposto, a responsabilidade pela quantia que sem autorização do mesmo seja levantada de tal conta recai sobre o banqueiro.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"5.2. Da (des)necessidade de notificação da ilustre mandatária constituída pela Ré para os efeitos do disposto no artigo 567.º n.º 2 do C.P.C. antes da prolação da sentença.

Como se vê da tramitação que enunciámos, só em 22.3.2023 é que a Ré fez juntar aos autos procuração a favor de ilustre mandatária, ou seja, quando há muito se mostrava ultrapassada a fase da discussão.

Com efeito, a mesma inicia-se com a notificação ao mandatário do autor para produzir alegações no prazo de 10 dias, o que, no caso, ocorreu em 12.1.2023 e terminou em 26.1.2023.

Dado que a revelia absoluta supõe a ausência de constituição de mandatário judicial no decurso do prazo da contestação, não assiste ao réu, que esteja nessa situação, o direito de produzir alegações, não carecendo, por isso, de ser notificado para esse efeito, como resulta do disposto no art.º 249º, nº3 do CPC. [Vide também neste sentido, A. Geraldes, Paulo Pimenta e L.F.Sousa in CPC, anotado, vo. I, 3ªed. pag.567.].

Por conseguinte, nenhuma nulidade foi, também neste conspecto, cometida."

*3. [Comentário] O decidido no acórdão mostra que, ao contrário do que, por vezes, se entende, o disposto no art. 567.º., n.º 2, CPC só é aplicável se o réu tiver juntado procuração a mandatário judicial no prazo da contestação.

MTS


30/04/2024

Jurisprudência 2023 (160)


Seguro de responsabilidade civil; pluralidade de lesados;
intervenção principal*


1. O sumário de RC 12/9/2023 (4872/22.0T8VIS-A.C1) é o seguinte:

O litisconsórcio é necessário quando a lei ou o contrato o impuserem ou quando resultar da própria natureza da relação jurídica, para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal. No plano ativo, não ocorre aquela necessidade numa ação de responsabilidade civil, apesar do mesmo sinistro ter provocado danos em diferentes pessoas. Cada um dos lesados pode intentar a ação sozinho sem os demais.

O disposto no art.142 da Lei do Contrato de Seguro, em caso de seguro facultativo, com a presença do responsável primário, não impõe um litisconsórcio necessário para os lesados.

A Ré Seguradora, responsável secundária, apenas pode provocar a intervenção dos demais lesados, com a justificação do rateio que a lei deseja, nos termos do art.316, nº 3, b), do Código de Processo Civil, ou seja, sendo caso de contitularidade do direito indemnizatório.

Não ocorre esta contitularidade nos direitos dos lesados.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Em certo dia, um cavalo da 1ª Ré abalroou várias pessoas, ferindo-as.

O Autor, uma dessas pessoas, intentou ação contra a detentora do animal e contra a seguradora desta, pedindo uma indemnização pelos danos que sofreu.

O seguro celebrado entre as Rés é facultativo e está limitado a 50.000,00€.

O litisconsórcio é necessário quando a lei ou o contrato o impuserem ou quando resultar da própria natureza da relação jurídica, para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal.

No plano ativo, o dos lesados, não ocorre aquela necessidade numa ação de responsabilidade civil, apesar do sinistro ter provocado danos em diferentes pessoas.

Cada um dos lesados pode intentar a ação sozinho, sem os demais.

A ação regula a relação entre o lesado e o lesante, definindo o direito de indemnização do primeiro, direito (personalizado) que é diferenciado dos direitos indemnizatórios dos demais lesados.

A intervenção da seguradora é feita para definir a sua responsabilidade garantística, não diretamente para com os lesados, mas para com a sua segurada, até ao limite do capital seguro. Para além deste, continua a vigorar a responsabilidade primária do lesante, que pode ser condenado em valor superior.

O disposto no art.142 da Lei do Contrato de Seguro, em caso de seguro facultativo, não impõe um litisconsórcio necessário para os lesados.

A norma regula a posição da seguradora quando o segurado responder perante vários lesados.

A norma não regula a posição do responsável primário.

Como a responsabilidade (secundária) da seguradora está limitada, a lei impõe, quanto a ela, e definida a responsabilidade primária, um rateio proporcional.

Este deverá ser acautelado com a pessoa segurada.

A limitação do capital não existe para a 1ª Ré, a responsável primária.

Também não existe o risco de a seguradora ser chamada a pagar quantia superior à do capital seguro. Relativamente a este, a seguradora responde perante a segurada.

Para se estabelecer qual a proporção do capital seguro que cabe a cada um dos lesados não é necessário, previamente, nesta ação, apurar a totalidade dos danos sofridos pelos vários lesados.

A questão não respeita a esta ação, sendo respeitante à seguradora. 

A necessidade de rateio não influencia ou contraria a decisão relativa a cada lesado, ou seja, não é por força daquele que a indemnização de cada lesado é limitada ao capital seguro ou ao proporcional dele.

A condenação eventual da 2.ª Ré poderá ser feita com menção das eventuais limitações contratuais (o capital seguro, a franquia ou outras).

Quanto ao efeito útil normal da decisão, ele consegue-se com a regulação da responsabilidade primária do lesante perante o Autor, lesado, sem que a regulação relativa aos demais lesados interfira naquela.

A limitação de que beneficia a seguradora também não interfere naquelas regulações. Definidas as indemnizações dos lesados, o que pode ser feito de diferentes formas e processos, caberá à seguradora, no que respeita aos 50 mil euros, acautelar um eventual rateio no seu pagamento.

(O caso regulado no acórdão do STJ de 02/06/2016, no processo 3987/10, é relativo ao Fundo de Garantia Automóvel, único Réu, com responsabilidade limitada.)

Pelo exposto, não existe no caso um litisconsórcio necessário.

Sendo assim, a Ré Seguradora apenas pode provocar a intervenção dos demais lesados, com a justificação do rateio que a lei lhe impõe, nos termos do art.316, nº 3, b), do Código de Processo Civil, ou seja, em caso de contitularidade do direito indemnizatório.

No caso, apenas está em causa essa norma.

E, então, não vemos que exista esta contitularidade no direito indemnizatório.

O que existe, potencialmente, são diferentes direitos indemnizatórios pertencentes a diferentes titulares. Não há um direito pertencente a vários titulares.

Os direitos são exercidos contra o lesante sem limitações de capital.

O rateio e o capital seguro não impõem qualquer unificação aos direitos."


*3. [Comentário] a) Salvo o devido respeito, discorda-se do decidido no acórdão da RC.

b) O art. 142.º LCS (DL 72/2008, de 16/4) estabelece, no âmbito do seguro por responsabilidade civil, o seguinte

"1 - Se o segurado responder perante vários lesados e o valor total das indemnizações ultrapassar o capital seguro, as pretensões destes são proporcionalmente reduzidas até à concorrência desse capital.

2 - O segurador que, de boa fé e por desconhecimento de outras pretensões, efectuar o pagamento de indemnizações de valor superior ao que resultar do disposto no número anterior, fica liberado para com os outros lesados pelo que exceder o capital seguro."

No caso concreto, um cavalo provocou um acidente do qual resultaram vários lesados. Do que se refere no acórdão, percebe-se que a acção foi proposta contra o proprietário do cavalo e contra a companhia seguradora deste proprietário. Esta demandada requereu a intervenção principal provocada dos demais lesados no acidente. A RC confirmou a decisão da 1.ª instância de indeferimento da intervenção requerida.

c) Com a devida consideração, o acórdão padece de dois lapsos.

Um primeiro é o de concluir que, como não há nenhuma contitularidade do direito indemnizatório, não se justifica a intervenção dos outros lesados. A premissa é correcta, mas não o é a conclusão. Daquela premissa resulta efectivamente que não se pode verificar um litisconsórcio necessário entre os vários lesados, mas dela não resulta que não se verifique uma situação de coligação necessária.

A coligação é uma modalidade do litisconsórcio, dado que, além da pluralidade de partes activas ou passivas, há uma pluralidade de pedidos distribuídos por cada um dos autores ou réus (art. 36.º, n.º 1, CPC). Assim, ainda que pudesse ser discutível a aplicação do disposto no art. 316.º, n.º 3, al. b), CPC, era indiscutível a aplicação do n.º 1 do mesmo preceito.

d) Para além destas considerações, há um aspecto que devia ter sido considerado pela RC. É este: é indiscutível que a companhia de seguros só responde até ao limite do capital seguro; se não é admitida a intervenção dos demais lesados na presente acção, como é que a companhia de seguros pode opor aos lesados não intervenientes o pagamento que fez ao lesado que propôs a acção?

A dificuldade é patente. Dado que o caso julgado da decisão proferida na presente acção não é oponível aos outros lesados dela ausentes, qualquer destes lesados vai poder argumentar que tem direito à reparação total dos danos e que lhe é completamente indiferente o que a companhia de seguros pagou a qualquer outro dos lesados.

Tenha-se presente que o problema em análise no acórdão não tem apenas uma vertente interna entre o segurado e a companhia de seguros. O problema tem também, naturalmente, uma vertente externa, dado que também respeita à relação entre a companhia de seguros e cada um dos lesados.

Esta vertente externa é explícita no disposto no art. 142.º, n.º 2, LCS. No caso concreto, a companhia de seguros não desconhece a existência de outros lesados, pelo que nunca poderá invocar que, 
de boa fé e por desconhecimento de outras pretensões, efectuou o pagamento de indemnizações de valor superior ao que resultaria do rateio e, por isso, nunca poderá invocar que fica liberada para com os outros lesados pelo que exceder o capital seguro.

e) Em suma: a intervenção principal provocada dos demais lesados era essencial para que, no que respeita à responsabilidade da companhia de seguros, se pudesse verificar o rateio a que se refere o art. 142.º, n.º 1, LCS e era igualmente indispensável para que essa companhia pudesse obter uma decisão com força de caso julgado contra todos os lesados, possibilitando-lhe opor, nos termos do disposto no art. 142.º, n.º 2, LCS, a cada um desses lesados o que pagou a cada um dos outros.

MTS


Jurisprudência europeia (TJ) (304)


Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Regulamento (UE) 2015/848 — Processos de insolvência — Processo de insolvência principal na Alemanha e processo de insolvência secundário em Espanha — Impugnação da relação de bens e da lista de credores apresentadas pelo administrador da insolvência no processo de insolvência secundário — Classificação dos créditos dos trabalhadores — Data a ter em conta — Transferência de bens situados em Espanha para a Alemanha — Composição do património de um processo de insolvência secundário — Parâmetros temporais a tomar em consideração


TJ 18/4/2024 (C‑765/22, Luis Carlos et al./ Air Berlin, e C‑772/22, Victoriano et al. /Air Berlin et. al.) decidiu o seguinte:

1)      Os artigos 7.° e 35.° do Regulamento (UE) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, relativo aos processos de insolvência, em conjugação com o considerando 72 deste regulamento,

devem ser interpretados no sentido de que:

a lei do Estado de abertura do processo de insolvência secundário apenas se aplica à situação dos créditos constituídos após a abertura desse processo, e não à situação dos créditos constituídos entre a abertura do processo de insolvência principal e a abertura do processo de insolvência secundário.

2)      O artigo 3.°, n.° 2, e o artigo 34.° do Regulamento 2015/848,

devem ser interpretados no sentido de que:

a massa dos bens situados no Estado de abertura do processo de insolvência secundário é unicamente constituída pelos bens que se encontram no território desse Estado‑Membro no momento da abertura desse processo.

3)      O artigo 21.°, n.° 1, do Regulamento 2015/848

deve ser interpretado no sentido de que:

o administrador da insolvência do processo de insolvência principal pode transferir os bens do devedor para fora do território de um Estado‑Membro diferente do do processo de insolvência principal quando tem conhecimento da existência, por um lado, de créditos laborais detidos por credores locais no território desse outro Estado‑Membro, reconhecidos por decisões judiciais, e, por outro, de um arresto de bens decretado por um órgão jurisdicional competente em matéria de trabalho deste último Estado‑Membro.

4)      O artigo 21.°, n.° 2, do Regulamento 2015/848

deve ser interpretado no sentido de que:

o administrador da insolvência do processo de insolvência secundário pode intentar uma ação revogatória contra um ato praticado pelo administrador da insolvência do processo de insolvência principal.

29/04/2024

Jurisprudência 2023 (159)


Responsabilidade contratual;
legitimidade processual*


I. O sumário de RG 10/7/2023 (1488/22.4T8BRG.G1) é o seguinte:

1- Mediante o pressuposto processual de legitimidade exige-se que para que o juiz possa entrar na apreciação do mérito da relação jurídica material controvertida delineada subjetiva (quanto aos sujeitos) e objetivamente (quanto ao pedido e à causa de pedir) pelo autor na petição inicial, em regra, atenta essa relação jurídica delineada na petição inicial, autor e réu sejam as “partes exatas” dessa relação jurídica, isto é, que atentos os factos constitutivos do direito a que se arroga titula o autor na petição inicial e por ele aí alegados, de onde faz derivar/assentar o pedido, de acordo com a lei substantiva abstratamente aplicável a essa relação jurídica (independentemente de o autor vir ou não a fazer prova desses factos que alega), de acordo com as várias soluções jurídicas plausíveis que decorram dessa lei substantiva, o autor seja o titular do direito a que se arroga titular naquele articulado inicial e de onde faz derivar o pedido que nele aí formula, e o réu seja a pessoa que deverá opor-se à procedência do pedido por aquele formulado, por ser a pessoa cuja esfera jurídica será diretamente atingida pela procedência desse pedido.

2- Em ação intentada por condómino contra o vendedor de fração, em que o autor, com fundamento em incumprimento do contrato de compra e venda celebrado decorrente da fração que lhe foi vendida pelo réu apresentar defeitos ou desconformidades decorrentes de no interior dessa fração ocorrerem infiltrações de água provinda da parede exterior do edifício constituído em propriedade horizontal, pede a condenação do réu a reparar os estragos causados no interior da fração e a executar as obras na parede exterior do edifício (parte comum), de modo a eliminar a origem de tais infiltrações e, bem assim, a compensá-lo pelos danos não patrimoniais sofridos, autor e réu dispõem de, respetivamente, legitimidade ativa e passiva para essa ação.

3- É que, de acordo com uma corrente jurisprudencial, a circunstância da compra e venda ter por objeto uma fração autónoma integrada em edifício constituído em propriedade horizontal, não isenta o vendedor de responder perante o comprador, a título de responsabilidade contratual, com fundamento no instituto de venda de coisa defeituosa, designadamente, nos termos do art. 914º do CC, ainda que os vícios apresentados na fração ocorram ou tenham a sua origem ao nível das partes comuns do edifício constituído em propriedade horizontal, não podendo o vendedor invocar contra o comprador quaisquer limitações quanto às decisões ou à execução de obras nas partes comuns do edifício constituído em propriedade horizontal que decorram do regime da propriedade horizontal, por forma a eximir-se à sua responsabilidade contratual perante o comprador da fração.


II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O apelante [comprador] instaurou a presente ação contra a apelada [vendedora] pedindo que se procedesse ou mandasse proceder, à custa desta, no prazo de sessenta dias, à realização de obras necessárias e adequadas à eliminação integral dos defeitos discriminados na petição inicial: reparação do teto do quarto, e pintura do mesmo, cujo preço estima em € 585,00; se condenasse a apelada a reparar, a expensas suas, e no mesmo prazo, os isolamentos exteriores, por forma a evitar que continuem as infiltrações em períodos de chuva, cujo custo, na parte que respeita à fração do apelante estima em € 3.300,00; ou, caso a apelada não proceda às obras referidas, no referido prazo, se condenasse esta a pagar-lhe a quantia de € 3.885,00, acrescidos de IVA, para que possa contratar quem faça as mesmas e pagar o custo destas e, bem assim, que, em todo o caso, se condenasse a apelada a pagar-lhe a quantia de € 1.500,00, a título de compensação por danos não patrimoniais sofridos.

Como causa de pedir de tais pretensões alegou o apelante ter celebrado, em 29 de julho de 2019, com a apelada um contrato de compra e venda mediante o qual esta lhe vendeu uma fração autónoma sita num prédio constituído em propriedade horizontal, destinada à sua habitação e onde este, desde então, reside efetivamente, e o incumprimento desse contrato por parte da última, decorrente da fração vendida apresentar defeitos ou desconformidades na parede exterior poente do prédio constituído em propriedade horizontal, que determinam que ocorram infiltrações de água pluvial nas paredes e teto de um quarto da fração comprada, vícios esses que já se verificavam à data da celebração do contrato de compra e venda, mas que a apelada (vendedora e Ré) lhe ocultou, tornando a fração destituída das qualidades normais de uma fração destinada à habitação e causando-lhe prejuízos não patrimoniais, cuja compensação reclama. [...]

Imputa o apelante erro de direito ao assim decidido, asseverando que “o tribunal a quo, na sua decisão, ignorou a responsabilidade contratual da ré invocada pelo autor, resultante do não cumprimento do contrato de compra e venda de imóvel, bem como o pedido da condenação da Ré na reparação dos vícios do imóvel, ou no pagamento dos respetivo custos, assim como a indemnização por danos morais” e, bem assim, que “ não tivesse o Tribunal a quo ignorado o que se alega, verificaria o interesse direto do autor em demandar e o interesse direto da Ré em contradizer, decidindo em conformidade pela improcedência da alegada ilegitimidade passiva da Ré”.

Vejamos se assiste razão ao apelante para os erros de direito que assaca à decisão recorrida. [...]

Mediante o pressuposto processual da legitimidade exige-se que, para que o juiz possa entrar na apreciação do mérito da relação jurídica material controvertida que lhe é submetida pelo autor a apreciação e a decisão, julgando a ação procedente ou improcedente, que naquele concreto processo figurem como autor e como réu as “partes exatas” dessa relação jurídica controvertida submetida pelo autor ao tribunal. [...]

De acordo com os n.ºs 1 e 2 do art. 30º do CPC, o autor é parte legítima quando tenha interesse direto em demandar, o que se exprime pela utilidade derivada da procedência da ação; e o réu é parte legitima quando tenha interesse direto em contradizer, o que se exprime pelo prejuízo que da procedência da ação lhe advenha. E, nos termos do n.º 3, desse art. 30º, na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.

Significa isto que, de acordo com os comandos legais que se acabam de enunciar, para que o juiz se possa pronunciar sobre o mérito da causa, terá, em sede de pressuposto processual de legitimidade, que considerar, exclusivamente e em regra (“na falta de indicação da lei em contrário”), a relação jurídica material controvertida delineada pelo autor na petição inicial, atentos os elementos subjetivos (sujeitos) e objetivos (pedido e causa de pedir) nela delineados por aquele e, bem assim, terá, em seguida, de recorrer ao direito substantivo para verificar se, em abstrato (isto é, independentemente da prova dos factos descritos na petição inicial constitutivos do direito de que o autor aí se arroga titular e de onde faz derivar o pedido),  em função dessa relação jurídica material controvertida que delineou nesse articulado fundamentador da ação, o autor é efetivamente a pessoa a quem a lei substantiva reconhece o estatuto de parte legítima para discutir em juízo o direito a que aquele se arroga titular, atentos os factos constitutivos desse direito que alegou naquele articulado inicial (no pressuposto de os vir a provar), por ser o titular incontestado do direito em causa e, bem assim, se foi demandado como réu a pessoa que, de acordo com a lei substantiva, por referência a essa mesma relação jurídica delineada na petição inicial, detém essa qualidade jurídica, por ser a pessoa que tem interesse direto em contradizer, por ser aquele cuja esfera jurídica é diretamente atingida por essa pretensão caso esta seja deferida. [...]

Destarte e em suma, de acordo com o comando do n.º 3 do art. 30º do CPC, para se aferir do pressuposto processual de legitimidade passiva e ativa, tem que se atender, por norma – “salvo disposição da lei em contrário” -, exclusivamente à relação jurídica material controvertida tal como esta vem delineada, subjetiva e objetivamente, pelo autor na petição inicial e indagar se, no pressuposto dos factos que por aquele aí vêm alegados como sendo constitutivos do direito a que se arroga titular e de onde faz derivar o pedido, de acordo com a lei substantiva aplicável em abstrato, o autor é o titular do direito que pretende exercer na ação e de onde faz derivar/assentar o pedido, caso em que se concluirá pela respetiva legitimidade ativa; e, por outro lado, verificar se a pessoa por ele demandada, ou seja, contra quem formula a pretensão que pretende que o tribunal lhe reconheça (pedido), é de facto a pessoa que, de acordo com a lei substantiva aplicável em abstrato, é aquela contra essa pretensão deve ser dirigida por ser aquela cuja esfera jurídica é diretamente atingida em caso de deferimento dessa pretensão. [...]

Significa isto que o legislador nacional, na esteira do que já era o entendimento jurisprudencial dominante, mediante a consagração do n.º 3 do art. 30º CPC, em que ordena que se atenda, em princípio, à relação jurídica material controvertida tal como esta é delineada ou configurada pelo autor na petição inicial, pôs termo à discussão clássica entre Alberto dos Reis e Barbosa de Magalhães, optando pela tese deste último autor, ao estatuir que ao apuramento da exceção de legitimidade ativa e passiva apenas interessa, por regra, a relação jurídica material controvertida desenhada pelo autor na petição inicial, independentemente da prova dos factos que a integram [Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 1º, 4ª ed., Almedina, pág. 93. Paulo Pimenta, “Processo Civil Declarativo”, Almedina, 2014, págs. 69 e 70, onde se lê: “… a legitimidade consiste numa posição concreta da parte perante uma causa. Por isso, a legitimidade não é uma qualidade pessoal, antes uma qualidade posicional da parte face à ação, ao litígio que aí se discute. (…). Conforme resulta da redação que a Reforma de 1995/96 deu ao n.º 3 do art. 26º do CPC de 1961 – redação mantida agora no art. 30º -, foi adotada a teoria que faz corresponder a legitimidade das partes à titularidade da relação controvertida descrita pelo autor na petição inicial”.].

Assentes nas premissas que se acabam de enunciar, compulsada a petição inicial, as pretensões que o apelante nela formula contra a apelada consistem na condenação judicial desta a realizar, no prazo de sessenta dias, as obras necessárias e adequadas à eliminação dos defeitos discriminados na petição inicial, consistentes na reparação do teto do quarto, e pintura do mesmo, da fração que esta lhe vendeu em 29 de julho de 2019, por via das infiltrações de água pluvial que se introduzem nesse quarto, através da parede exterior poente do edifício constituído em propriedade horizontal onde se situa essa fração, bem como, a realizar as obras de isolamento dessa parede exterior do edifício constituído em propriedade horizontal, por forma a evitar que essas infiltrações se continuem a introduzir nesse quarto da fração, bem como, a condenar a apelada a pagar-lhe as quantias necessárias à execução dessas obras caso não as execute dentro desse prazo de sessenta dias e, bem assim, a pagar-lhe a quantia de 1.500,00 euros, a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos, fundam-se, de acordo com a facticidade alegada pelo apelante na petição inicial, no alegado incumprimento pela apelada, na qualidade de vendedora, do contrato de compra e venda celebrado em 29 de julho de 2019 com o apelante, mediante o qual vendeu ao último a dita fração, mais concretamente, no instituto da venda de coisa defeituosa, a que aludem os arts. 913º e ss. do CC e o regime jurídico do D.L. n.º 67/2003, de 08/04, na redação que lhe foi dada pelo D.L. n.º 84/2008, de 21/05, por ser o que se encontrava em vigor em 29/07/2019, data da celebração do contrato de compra e venda mediante o qual a apelada vendeu ao apelante a fração objeto dos autos, fundando-se, portanto, as pretensões (pedido) deduzidas nos autos pelo apelante no instituto da responsabilidade contratual.

Dúvidas também não subsistem [de] que a fração que o apelante alega ter comprado ao apelante se situa em prédio que refere expressamente, na petição inicial, encontrar-se constituído em regime de propriedade horizontal e que as infiltrações que o mesmo alega verificarem-se no quarto dessa fração provêm da parede exterior desse edifício constituído em regime de propriedade horizontal.

Conforme decorre do art. 1420º do CC, na propriedade horizontal concorrem dois direitos distintos, um de propriedade singular, na medida em que cada condómino é proprietário exclusivo da fração que lhe pertence, e um direito de compropriedade, o qual incidente sobre as partes comuns do edifício constituído em propriedade horizontal (n.º 1), sendo ambos esses direitos incindíveis, de modo que nenhum deles pode ser alienado separadamente, nem sendo lícito aos condóminos renunciar à parte comum como meio de se desonerarem das despesas necessárias à sua conservação ou fruição (n.º 2). [...]

O direito de compropriedade dos condóminos sobre as partes comuns do edifício constituído em propriedade horizontal no qual se situa a fração de que é proprietário exclusivo encontra-se sujeito ao regime jurídico da compropriedade enunciado nos arts. 1403º a 1413º do CC, com as especialidades próprias previstas nos arts. 1421º, 1424º, 1427º e 1430º a 1438º-A do CC. [...]

Entre as partes de edifício constituído em propriedade horizontal com natureza imperativamente comuns contam-se, além do mais, “as paredes mestras e todas as partes restantes do edifício que constituem a estrutura do prédio”, de que fazem parte as paredes exteriores do edifício constituído em propriedade horizontal, dado que essas paredes exteriores integram naturalmente a estrutura do edifício constituído em propriedade horizontal, ou seja, tal como decidido pela 1ª Instância, de acordo com a relação jurídica material controvertida delineada pelo apelante na petição inicial, a parede exterior do edifício de onde provêm as alegações infiltrações que se infiltraram, e continuarão a infiltrar-se enquanto essa parede exterior do edifício não for reparada, no quarto da fração que comprou à apelada é uma parte imperativamente comum.

Quanto às partes imperativamente comuns, onde, reafirma-se, se integra a parede exterior poente do prédio constituído em propriedade horizontal de onde, de acordo com a alegação do apelante, provêm as infiltrações de água pluvial que se introduzem no quarto que integra a fração comprada à apelada, nos termos do disposto no art. 1430º, n.º 1 do CC, a administração das partes comuns compete à assembleia de condóminos e a um administrador. [...]

Quanto às obras de conservação das partes comuns, cabe ao administrador realizar tais obras e diligenciar pelo respetivo pagamento (al. f) do art. 1436º), sem prejuízo de qualquer condómino poder realizar as reparações indispensáveis e urgentes nas partes comuns do prédio, na fala ou impedimento do administrador (art. 1427º do CC).

Deste modo, como bem ponderou a 1ª Instância, nas relações propter rem estabelecidas entre, por um lado, o condomínio e, por outro, os condóminos ou terceiros, é pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial segundo o qual as obras necessárias à fruição e conservação das partes comuns de prédio constituído em propriedade horizontal cabem ao condomínio, isto é, ao conjunto dos condóminos, os quais, conforme antedito, são comproprietários dessas partes comuns, pelo que, salvo disposição em contrário, têm de pagar as despesas inerentes à conservação dessas partes comuns e, bem assim, à respetiva fruição (v.g., despesas com a limpeza) na proporção do valor das suas frações (n.º 1 do art. 1423º), e cumpre ao administrador do condomínio, em representação deste, realizar essas obras (al. f) do art. 1436º), apenas podendo qualquer dos condóminos substituir-se ao administrador na execução de tais obras de conservação das  partes comuns, na falta ou impedimento do condomínio, e caso se trate de executar obras de reparações indispensáveis e urgentes (art. 1427º do CC).

A partir do que se acaba de dizer, entendeu a 1ª Instância que, no caso de incumprimento contratual por parte de vendedor perante o comprador decorrente da fração objeto dessa compra e venda apresentar defeitos ou desconformidades, nunca poderia condenar o vendedor a reparar a fração quando essas desconformidades decorrem de vícios que provêm de parte comum do prédio constituído em propriedade horizontal, como é o caso dos autos, em que segundo a relação jurídica material controvertida delineada pelo apelante na petição inicial, a origem das infiltrações que se fazem sentir nas paredes e teto do quarto que integra a fração que lhe foi vendida pela apelada reside na parede exterior poente do edifício constituído em propriedade horizontal, isto porque, constituindo essa parede exterior do edifício parte comum deste, compete ao condomínio, representado pelo administrador, realizar as obras de conservação dessas partes comuns, pelo que nunca poderia condenar a apelada, vendedora dessa fração, por via do alegado incumprimento contratual em que incorreu, nos termos do instituto da venda de coisa defeituosa, a reparar essa parede exterior, eliminando  as invocadas desconformidades alegadamente ocorridas na parede exterior desse edifício, por onde se processam as infiltrações da água pluvial no interior da fração vendida pela apelada ao apelante, dada a natureza de parte comum dessa parede exterior do edifício.

Adianta a apelada nas alegações de recurso que além disso, o apelante não disporia de legitimidade ativa para lhe exigir a reparação de tais desconformidades ocorridas nessa parede exterior do edifício constituído em propriedade horizontal, por essa legitimidade ativa competir, ope legis, ao condomínio, representado pelo seu administrador, e não aos condóminos individualmente considerados, como é o caso do apelante a quem confirma ter vendido a fração objeto dos autos.

Note-se que a posição adotada pela 1ª Instância na decisão recorrida e a que vem propugnada pela apelada nas contra-alegações de recurso que se acabam de enunciar tem sido aquela que tem sido defendida por parte da jurisprudência nacional, que tem sustentado ser “o administrador do condomínio, enquanto representante deste, e não o condomínio que goza de legitimidade ativa para pedir judicialmente a eliminação dos defeitos do prédio verificados nas partes comuns, devidamente mandatado pela assembleia de condóminos” [Ac. R.C., de 01/02/2022, Proc. 2281/20.4T8LRA.A.C1, in base de dados da DGSI, onde constam os acórdãos que se venham a enunciar, sem menção em contrário.].

Contudo, já uma outra corrente, defende que sendo o condomínio absolutamente estranho ao contrato de compra e venda celebrado entre vendedor e condómino tendo por objeto fração sita em prédio constituído em propriedade horizontal que padeça de vícios ou desconformidades em partes comuns do prédio, é ao condómino comprador que assiste legitimidade ativa para instaurar ação contra o vendedor reclamando a reparação da fração objeto daquela compra e venda e das partes comuns do edifício, por forma a eliminar a fonte desses prejuízos na fração objeto da compra e venda e, bem assim, a indemnização do comprador pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em consequência desse incumprimento contratual, nos termos do art. 914º do CC, ainda que a fonte dessas desconformidades resida nas partes comuns do edifício.

Neste sentido expende-se no acórdão do STJ. de 24/09/2009 que os “Autores instauraram ação contra vendedor pedindo a condenação a pagar-lhe a quantia necessária para reparar a fração eliminando as infiltrações de água proveniente das chuvas que caem sobre a cobertura de prédio constituído em propriedade horizontal. Recorreu o réu invocando não lhe ser aplicável o regime da venda de coisas defeituosas afirmando mesmo que a ré não vendeu aos autores uma coisa defeituosa, sustentando que, sendo parte comum do edifício, a cobertura não constitui, nem poderá ter constituído, objeto da compra e venda celebrada entre as partes. Em seu entender, o que a ré vendeu foi uma fração autónoma de um prédio em regime de propriedade horizontal e, por arrasto, o seu direito de compropriedade sobre as partes comuns, incindivelmente ligado ao direito de propriedade sobre a fração autónoma. O ligado ao direito de propriedade sobre a fração autónoma. O que apresenta deficiência não é a fração autónoma alienada, mas sim uma parte comum, que não foi objeto (nem podia ser) do negócio celebrado entre as partes. Daqui retira que não é a responsabilidade contratual da ré, que não existe, mas a responsabilidade extracontratual dos demais condóminos que está em causa”.

A propósito do enunciado argumentário do aí recorrente, conclui o STJ “não ter qualquer fundamento tal alegação. A circunstância de a coisa vendida ser uma fração autónoma de um prédio urbano – a não a cobertura do prédio, ou parte dela – não isenta o vendedor de responder, perante o comprador, pelos vícios que a desvalorizam ou que impedem a sua utilização normal. Diferente seria se a fração tivesse sido alienada como fração carecida de reparação, por sofrer infiltrações na cobertura, ou seja, como fração por essa razão não apta a servir de habitação, em termos normais. Mas não foi este o caso (…). Não podem ser invocados pelo vendedor de uma fração quaisquer limitações que o regime da propriedade horizontal imponha às decisões que afetem as partes comuns, ou à execução de obras nas mesmas, para se exonerar, perante o comprador, da responsabilidade pela existência de defeitos na coisa vendida. A coisa vendida, em tal caso, é manifestamente constituída pelo incindível que foi alienado, não tendo cabimento a separação entre a fração autónoma e a quota nas partes comuns. Neste contexto, coisa sem defeito significa coisa apta a desempenhar a sua função; e é em função desse todo que a aptidão terá de ser aferida” [Ac. STJ., de 24/09/2009, Proc. 09B0368. Em igual sentido Acs. R.P., de 12/03/2013, Proc. 306/11.3TJVNF.P1; RE. de 18/12/2007, Proc. 2642/07-3; R.L., de 01/11/2008, Proc. 2552/2008-1, em que se lê: “A administração de prédio constituído em regime de propriedade horizontal tem poderes para reclamar do construtor/vendedor os defeitos existentes nas partes do prédio; mas já não tem legitimidade para reclamar em nome dos condóminos os defeitos que existam nas frações autónomas do prédio. O mesmo não sucede com os condóminos: estes, por serem comproprietários nas partes comuns do prédio, podem denunciar ao vendedor defeitos nessas partes e reclamar a eliminação dos mesmos (arts. 1420º, n.ºs 1 e 2, 1452º, n.º 1 e 1427º do CC”; R.L., de 02/06/2016, Proc. 3941/14.4T8SNT: “Numa ação intentada contra o construtor/vendedor do prédio, o proprietário de uma fração autónoma tem legitimidade ativa para exigir a reparação dos defeitos das partes comuns que estão na origem dos defeitos existentes na sua própria fração”; R.C., de 12/03/2019, Proc. 190/15.8T8CNT.C1.]

Decorre do que se vem dizendo que, em função desta corrente jurisprudencial, de acordo com a relação jurídica material controvertida delineada pelo apelante na petição inicial, em que funda as diversas pretensões que formula contra o apelante e que pretende lhe sejam reconhecidas pelo tribunal com base no incumprimento contratual em que sustenta encontrar-se constituída a apelante perante si decorrente da fração que lhe vendeu apresentar vícios ou desconformidades decorrentes da parede exterior poente do edifício constituído em propriedade horizontal onde se situa essa fração deixar infiltrar a água pluvial no interior dessa fração, causando estragos no teto e nas paredes de um quadro da mesma, o apelante dispõe de legitimidade ativa para demandar o vendedor solicitando a reparação desses vícios (quer os verificados no interior da  fração objeto da compra e venda, quer os verificados na parede poente exterior do edifício constituído em regime de propriedade horizontal) nos termos do art. 914º do CC, assim como esta, na qualidade de vendedora de tal fração, dispõe de legitimidade passiva para o efeito, não podendo invocar quaisquer limitações que o regime de propriedade horizontal imponha às decisões que afetem as partes comuns do edifício ou à execução de obras nas mesmas para se exonerar da sua responsabilidade contratual decorrente da existência de defeitos na coisa vendida, a qual é constituída por um todo incindível formado pela fração e pelas partes comuns do prédio constituído em propriedade horizontal onde aquela se integra.

Ora, versando a exceção de ilegitimidade ativa e passiva sobre um pressuposto processual que se traduz em saber se, em função da relação jurídica material controvertida delineada pelo apelante na petição inicial, estão presentes as partes certas na ação para que ao tribunal seja consentido entrar no conhecimento do mérito dessa relação jurídica, e carecendo o juízo para o efeito de ser feito tendo presente os elementos subjetivos (sujeitos) e objetivos (pedido e causa de pedir) delineados pelo autor (apelante) na petição inicial, verificando se, à luz do direito substantivo, em abstrato e de acordo com todas as teses jurídicas suscetíveis de serem aplicáveis a esse direito substantivo, o autor é o titular dos direitos de reparação e indemnização que reclama da pessoa por si demandada com fundamento em responsabilidade contratual (ré e apelada) e se esta, de acordo com esse direito substantivo e em função de todas as teses jurídicas suscetíveis de lhe serem aplicáveis, é a pessoa que se encontra constituída nessa responsabilidade contratual e sobre quem impende a obrigação de reparar e de indemnizar o primeiro (autor e apelante), é apodítico, perante as referidas posições jurisprudenciais distintas sobre a questão de fundo suscitada nos autos – a opção por uma ou por outra das soluções jurídicas supra identificadas quanto a essa questão contende com o mérito, ou seja, com a legitimidade substantiva -, que a apelada dispõe de legitimidade passiva para a presente ação, assim como o apelante dispõe de legitimidade ativa, impondo-se, por conseguinte, concluir pela procedência da presente apelação e, em consequência, revogar a decisão recorrida que julgou procedente a exceção dilatória de ilegitimidade passiva e absolveu a apelada da instância, julgando-se essa exceção dilatória de ilegitimidade passiva suscitada pela apelada improcedente e ordenando o prosseguimento dos autos."

*3. [Comentário] Adere-se, sem problemas, à orientação defendida no acórdão sobre a legitimidade processual.

Importa, no entanto, ter presente o que foi pedido na acção:

"AA, residente na Rua ..., ... ..., instaurou a presente ação declarativa, de condenação, com processo comum, contra N...  Investimentos Imobiliários, Lda., com sede na Rua ..., ..., ... ..., pedindo que se procedesse ou mandasse proceder, à custa da Ré, no prazo de sessenta dias, à realização de obras necessárias e adequadas à eliminação integral dos defeitos discriminados na petição inicial: reparação do teto do quarto e pintura do mesmo, cujo preço estima em € 585,00; se condenasse a Ré a reparar, a expensas suas, e no mesmo prazo, os isolamentos exteriores, por forma a evitar que continuem as infiltrações em períodos de chuva, cujo custo, na parte que respeita à fração do Autor estima em € 3.300,00; ou, caso a Ré não proceda às obras referidas nos n.ºs anteriores, no referido prazo, se condenasse esta a pagar-lhe a quantia de € 3.885,00, acrescidos de IVA, para que possa contratar quem faça as referidas obras e pagar o custo das mesmas.
Em todo o caso, se condenasse a Ré a pagar-lhe a quantia de € 1.500,00, a título de compensação por danos não patrimoniais sofridos."

Não estando em causa a legitimidade da Ré quanto à responsabilidade contratual e à indemnização dos danos não patrimoniais, é bastante discutível que essa legitimidade se verifique no que se refere à reparação de uma parte comum do prédio. O correcto teria sido que o Autor tivesse proposto a acção contra a vendedora e, ao mesmo tempo, contra o administrador do condomínio, na qualidade de substituto processual deste último (na melhor interpretação do incompreensível art. 1437.º, n.º 1, CC).

MTS

27/04/2024

Bibliografia (1023)


-- Musielak / Voit, Zivilprozessordnung: ZPO, 21.ª ed. (Vahlen: München 2024)

-- Schuschke / Walker / Kessen / Thole (Eds.), Kölner Kommentar Vollstreckung und Vorläufiger Rechtsschutz, 8.ª ed. (Carl Heymanns: Köln 2024)


26/04/2024

CPC online (20)


CPC online


-- Notas

-- Divulga-se a Versão (20) do CPC online;

-- A versão contém a primeira anotação aos art. 410.º a 422.º e actualiza a última versão divulgada.


-- Versão (20) do CPC online

-- MTS, CPC online, NP-Ab-IG; L 41/2013 (vs. 2024.04)

-- MTS, CPC online, Art. 1.º a 129.º (vs. 2024.04)

-- MTS, CPC online, Art. 130.º a 361.º (vs. 2024.04)

-- MTS, CPC online, Art. 362.º a 409.º (vs. 2024.04)

-- MTS, CPC online, Art. 410.º a 422.º (vs. 2024.04)

 

Jurisprudência 2023 (158)


Revisão de sentença estrangeira;
sentença arbitral; caso julgado*


1. O sumário de RP 29/6/2023 (1178/22.8T8OVR-A.P1) é o seguinte:

I - Decorre do art.º 980º, em conjugação com o art.º 983º nº 1, ambos do CPC, e do art.º 56º da LAV, que a revisão de sentenças estrangeiras é de índole formal, por contraposição a um juízo de mérito.

II - Porém, não se pode confundir o mérito da decisão revidenda com as questões suscitadas e apreciadas na decisão revisora, no âmbito das questões que ao Tribunal de revisão é lícito conhecer.

III - Quanto a estas, as questões suscitadas e apreciadas na decisão revisora no âmbito da sua competência (designadamente as elencadas no art.º 980º do CPC e no art.º 56º da LAV), ficam já sujeitas ao caso julgado e à autoridade de caso julgado.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"9.2. Do caso julgado formado pela sentença de revisão-confirmação de sentença estrangeira

Segundo os art.º 619º e 621º do CPC, «Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele (…)» e, «A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (…)».

Quando se trata de apurar da influência de uma decisão anterior num processo que lhe é posterior, trata-se do caso julgado material. Visa-se com ele obstar a que o tribunal possa vir a repetir ou contradizer a decisão anterior, invalidando a certeza e segurança jurídicas subjacentes às decisões dos tribunais.

E, como é sabido, ele pode ser visto ou influenciar a sorte da ação numa dupla dimensão, consoante os seus efeitos se repercutirem na esfera processual/adjetiva, ou na esfera substantiva.

No primeiro caso, estamos perante um efeito impeditivo ou negativo, o tribunal fica impedido de repetir ou contradizer a decisão anterior, e, daí, a sua operância como exceção dilatória (natureza simplesmente adjetiva): art.º 577º al. i) do CPC.

No segundo caso, está em causa o seu efeito positivo, dirigindo-se um comando ao tribunal, vinculando-o ao mesmo resultado (o de não repetir ou contradizer decisão anterior) com a autoridade de caso julgado, (natureza simultaneamente adjetiva e substantiva).

Em resumo, «Seja qual for o seu conteúdo, a sentença produz, no processo em que é proferida, o efeito de caso julgado formal, não podendo mais ser modificada (art. 672). Mas, quando constitui uma decisão de mérito (“decisão sobre a relação material controvertida”), a sentença produz também, fora do processo, o efeito de caso julgado material: a conformação das situações jurídicas substantivas por ela reconhecidas como constituídas impõe-se, com referência à data da sentença, nos planos substantivo e processual (...), distinguindo-se, neste, o efeito negativo da inadmissibilidade duma segunda acção (proibição de repetição: excepção de caso julgado) e o efeito positivo da constituição da decisão proferida em pressuposto indiscutível de outras decisões de mérito (proibição de contradição: autoridade do caso julgado).». [José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, 2ª edição, 2008, Coimbra Editora, pág. 713/714. No mesmo sentido, Miguel Teixeira de Sousa, "O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material", estudo publicado no Boletim do Ministério da Justiça (BMJ), nº 325, pág. 167.]

Por outro lado, constitui jurisprudência assente que, «Nos limites objectivos do caso julgado material incluem-se todas as questões e excepções suscitadas e solucionadas, ainda que implicitamente, na sentença, que funcionam como pressupostos necessários e fundamentadores da decisão final.» [Acórdão do STJ de 05.05.2005(nº do Documento: SJ200505050006027). No mesmo sentido, e do mesmo STJ, acs. de 09.07.998 (Proc. 620/98), de 24.02.2002 (Proc. 671/02), de 15.01.2004 (Proc. 3992/03), de 25.11.2004 (Proc. 3703/04), e de 25.11.2004 (Proc. 04B3703), todos disponíveis em www.dgsi.ptsítio a ter em conta nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem.]

No mesmo sentido, Miguel Teixeira de Sousa [In “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, LEX, Lisboa, 2.ª Edição, pág. 578-579.], «toda a decisão é a conclusão de certos pressupostos (de facto ou de direito) o respectivo caso julgado encontra-se sempre referenciado a certos fundamentos. Assim, reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha com esse valor, por si mesma e independentemente dos respectivos fundamentos. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão.»

No caso, trata-se da execução de uma sentença arbitral estrangeira.

Nos termos do nº 7 do art.º 42º da Lei de Arbitragem Voluntária (LAV), o caso julgado arbitral é equiparado ao formado por sentença judicial, A sentença arbitral de que não caiba recurso e que já não seja suscetível de alteração no termos do artigo 45.º tem o mesmo carácter obrigatório entre as partes que a sentença de um tribunal estadual transitada em julgado e a mesma força executiva que a sentença de um tribunal estadual.

Esta interpretação já foi sancionada pelo Tribunal Constitucional, «A expressa referência constitucional aos tribunais arbitrais impede que seja questionada a sua legitimidade, pelo menos no que toca aos tribunais arbitrais voluntários (e o artigo 1522º insere-se nas disposições que conformam este tipo de tribunais). Consequentemente, não pode também ser questionada a força de caso julgado atribuída às respectivas decisões.» [Acórdão nº 506/96, de 21/03/1996.]

Sobre a execução das sentenças arbitrais, a LAV contém também regras específicas: art.º 47º e 48º.

O mesmo acontece sobre o procedimento de revisão e reconhecimento de sentenças arbitrais estrangeiras, com vista a obter a sua executoriedade em Portugal: art.º 55º a 68º.

A fim de obter a executoriedade, a Exequente/Embargada suscitou o reconhecimento de decisão arbitral, que decorreu neste Tribunal da Relação sob o nº 20/21.1YRPRT. E a decisão nele proferida foi «decretando o reconhecimento, para efeitos de posterior execução, da sentença arbitral proferida a 11.03.2020 pelo Árbitro Único do Instituto de Arbitragem da Câmara de Comércio de Estocolmo – Suécia».

É certo que, como decorre do art.º 980º, em conjugação com o art.º 983º nº 1, ambos do CPC, e art.º 56º da LAV, ao Tribunal revisor apenas compete exercer uma sindicância de carácter formal e não proceder a um reexame de mérito da decisão revidenda, seja pela apreciação dos factos sujeitos a julgamento, seja pelas regras de direito material que foram aplicadas aos factos. A revisão de sentenças estrangeiras é, pois, de índole formal, por contraposição a um juízo de mérito.

Porém, não se pode confundir o mérito da decisão revidenda com as questões suscitadas e apreciadas na decisão revisora, no âmbito das questões que ao Tribunal de revisão é lícito conhecer, designadamente as elencadas no art.º 980º do CPC e no art.º 56º da LAV. [Como refere António Sampaio Caramelo, citando Louis Christophe Delanoy, in “O Reconhecimento e Execução de Sentenças Estrangeiras”, 2016, pág. 128-129: «Ao contrário, em sede de controlo da sentença, o juiz não se pronuncia sobre o litígio primário que foi objecto da sentença arbitral, mas apenas averigua a existência nesta de certas condições de regularidade que permitem a sua equiparação à sentença de um tribunal estadual; é exclusivamente sobre este litígio secundário que versa a apreciação do juiz de controlo.»]

Estas, as questões suscitadas e apreciadas na decisão revisora, naturalmente que já ficam sujeitas ao caso julgado e à autoridade de caso julgado.

Ora, como decorre da análise do processo nº 20/21.1YRPRT, transitado em julgado, o acórdão aí proferido não integrou uma decisão de preceito, no sentido de se ter bastado com a apreciação dos items referidos no art.º 980º do CPC de forma acrítica ou meramente formal.

É que, aí citada a ora Executada/Embargante, teve ela uma posição ativa e substancial nesse processo. Assim, para além da suspensão dos autos, ela deduziu oposição, na qual suscitou as seguintes questões: (i) a sentença arbitral não reúne as condições legais para ser reconhecida, em particular em face do preceituado no artigo 980º, do CPC; (ii) não resultar dos autos a menção ao trânsito em julgado da decisão revivenda; (iii) a sentença estrangeira provém de tribunal cuja competência foi provocada em fraude à lei; (iv) a falta de jurisdição do tribunal arbitral, por falta de um prévio e válido compromisso arbitral entre as partes; (v) não ter sido regularmente citada no processo arbitral, colocando em crise os seus direitos essenciais de defesa, designadamente do contraditório e da igualdade das partes; (vi) o pagamento da quantia peticionada.

Nesse processo foi ainda produzida prova complementar e produzidas alegações.

E no acórdão conheceu-se e decidiu-se as seguintes questões:

i. a sentença arbitral proferida transitou em julgado.

ii. sobre a competência do tribunal arbitral sueco ter sido provocada em “fraude à lei” ─ «não existe qualquer violação do âmbito da competência internacional exclusiva dos tribunais portugueses, concorrendo a competência destes últimos com a competência internacional de qualquer outro Estado e face ao caracter plurilocalizado do litígio».

iii. Sobre a falta de jurisdição do tribunal arbitral sueco por mor da inexistência de um prévio e válido compromisso arbitral (forma escrita e assinatura por ambas as partes) ─ «ao contrário do sustentado pela Ré, nas sobreditas circunstâncias, nenhum óbice existe quanto à questão da forma escrita da convenção de arbitragem (cláusula compromissória) e, ainda, quanto à sua subscrição/aceitação, ainda que o documento que incorpora os termos e condições e a dita convenção não se mostre assinado por qualquer uma das partes. Improcede, pois, também este outro fundamento de oposição ao reconhecimento invocado pela Ré.»

iv. Sobre a falta e regularidade da citação, direitos essenciais de defesa, o princípio do contraditório e da igualdade das partes ─ «Ora, perante esta resenha da evolução do processo arbitral – que não foi minimamente posto em causa por alguma prova produzida ou oferecida pela Ré -, não se alcançam os fundamentos para a afirmação da Ré quanto à alegada violação do princípio do contraditório e da igualdade de armas processuais. De facto, em termos singelos e face às evidências antes expostas, dir-se-á que ao cumprimento do contraditório e da igualdade de armas basta-se a lei pela circunstância de ser concedida às partes, em termos efectivos, a possibilidade de exercerem os seus direitos ou faculdades processuais em pé de igualdade uma com a outra; se a própria parte, apesar de informada dos trâmites processuais e da possibilidade de exercer as faculdades que lhe são proporcionadas pela lei processual, como sucedeu com a aqui Ré, as não pretende usar, naturalmente, que inexiste qualquer violação daqueles princípios fundamentais, mas antes uma opção deliberada da parte, que, em tais circunstâncias, só lhe pode ser imputada. De facto, o que ressuma da intervenção da Ré no processo arbitral (e que a mesma acaba por reproduzir também neste processo) é a sua petição de princípio quanto à invalidade ou inexistência de uma convenção de arbitragem escrita e vinculativa, petição esta que, como já vimos, se mostra infundada.»

v. Também se decidiu sobre o respeito pelos princípios fundamentais da ordem pública internacional, que se consideraram verificados.

Visto isto, temos de concluir que as questões em causa no processo de revisão e reconhecimento de sentença arbitral estrangeira ficaram cobertas pela autoridade de caso julgado. Daí que não possam voltar a ser apreciadas em sede de embargos de executado.

Nessa medida, estando o Tribunal sujeito a essa autoridade de caso julgado, não pode dizer-se que se incorreu em violação do dever de gestão processual ou do princípio da cooperação. Ao contrário, eles são a sua concretização e impunham-se-lhe."

[MTS]