"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



31/05/2025

Bibliografia (1200)


-- Coloma Correa, R., Decidir hechos y argumentar con pruebas / materiales para una teoría de la prueba en los procesos judiciales, Marcial Pons, Madrid, 2025

30/05/2025

Jurisprudência 2024 (178)


Legitimidade processual;
aferição; substituição processual*


I. O sumário de RL 26/9/2024 (8273/24.7T8LSB.L1-2) é o seguinte:

1. Reportando-se a relação jurídica em litígio a um contrato de abertura de crédito celebrado entre a sociedade de que a Requerente é sócia e o Banco Requerido, a quem aquela vem imputar o incumprimento de tal contrato e a sua indevida resolução, a mesma carece de legitimidade ativa, por não ser parte naquele contrato que vem pretender manter vigente, sem que tenha o poder de negociar ou de intervir de alguma forma na sua execução.

2. A titularidade da relação material controvertida que constitui o objeto da presente providência, tal como configurado pela Requerente, não lhe pertence já que a mesma é uma pessoa jurídica distinta da sociedade contratante, a quem uma decisão proferida nos autos não pode vincular, por não participar no mesmo.

3. Não é qualquer interesse em demandar que confere legitimidade ativa a uma parte, exigindo o art.º 30.º n.º 1 do CPC que tal interesse seja direto, expresso na utilidade derivada da procedência da ação o que, desde logo exclui a legitimidade de quem se apresenta a demandar com um interesse apenas indireto ou reflexo, como acontece no caso com a Requerente enquanto avalista.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"IV. Razões de Direito

- da (i)legitimidade processual da Requerente

Alega a Recorrente que enquanto avalista tem interesse direto em demandar, de modo a evitar futuros prejuízos na sua esfera patrimonial, concluindo pela sua legitimidade ativa no presente procedimento.

É o art.º 30.º do CPC que nos dá o conceito de legitimidade, dispondo:

“1. O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer.
2. O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
3. Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.”

Na avaliação deste pressuposto processual diz-se na decisão recorrida, o que desde já se adianta, de forma acertada:

“Revertendo ao caso, verifica-se que, a própria requerente alega que o contrato de concessão de crédito foi celebrado com a sociedade “B”, UNIPESSOAL, LDA. e que foi a esta sociedade que o requerido disponibilizou o valor do crédito e consequentemente foi esta que não logrou cumprir as suas obrigações e viu ser rejeitado o pedido de prorrogação do período de carência e o contrato ser resolvido. A requerente, a título pessoal, limitou-se a prestar uma garantia de garantia de 25% da responsabilidade emergente do contrato através do aval que deu a uma livrança em branco subscrita pela “B”. Verifica-se, assim, que a titular da relação material controvertida, tal como configurada pela requerente, e única entidade com legitimidade para peticionar a intervenção do Tribunal sobre o contrato celebrado, é a sociedade “B” (ainda que representada pela requerente enquanto única sócia e gerente), que é parte no contrato. O facto de a requerente ser interveniente no contrato como avalista não lhe confere legitimidade para actuar como se se tratasse da mutuária, uma vez que tal facto não lhe diz directamente respeito. Nestes termos, conclui-se, que a requerente não é parte legítima na acção.”

Para avaliar a legitimidade processual das partes, nos termos previstos no art.º 30.º do CPC importa ter em conta a sua posição na relação material controvertida tal como a apresenta o A., aferindo-se a legitimidade perante o pedido e a causa de pedir invocados no requerimento inicial, sendo que o que se pretende é que na causa estejam os verdadeiros interessados diretos na questão que se discute.

Sobre a questão da legitimidade, ensinam-nos com toda a clareza Antunes Varela, J Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, pág. 129: “Ser parte legítima na ação é ter o poder de dirigir a pretensão deduzida em juízo ou a defesa contra ela oponível. A parte terá legitimidade como autor, se for ela quem juridicamente pode fazer valer a pretensão em face do demandado, admitindo que a pretensão existe; e terá legitimidade como réu, se for ela a pessoa que juridicamente pode opor-se à procedência da pretensão, por ser ela a pessoa cuja esfera jurídica é diretamente atingida pela providência requerida. Se assim não suceder, a decisão que o tribunal viesse a produzir, não poderia surtir o seu efeito útil, visto não poder vincular os verdadeiros sujeitos da relação material controvertida, ausentes da lide.”

A Requerente do procedimento cautelar será parte legítima se for a titular da relação jurídica que integra o objeto do litígio, enquanto titular do interesse relevante para efeitos de legitimidade, pois só se assim for pode dispor da relação jurídica de que pretende fazer valer-se no processo.

Não é qualquer interesse em demandar que confere legitimidade ativa a uma parte, exigindo o art.º 30.º n.º 1 do CPC que tal interesse seja direto, expresso na utilidade derivada da procedência da ação o que, desde logo exclui a legitimidade de quem se apresenta a demandar com um interesse apenas indireto ou reflexo, precisamente por não ser o titular da relação jurídica controvertida.

Revertendo para o caso em presença, verifica-se que a relação jurídica em litígio na qual a Requerente fundamenta os seus pedidos se reporta a um contrato de abertura de crédito celebrado entre a sociedade “B” e o Banco Requerido, imputando a Requerente ao Banco o incumprimento de tal contrato, por não ter prorrogado o período de carência de pagamento do capital mutuado e por ter resolvido o contrato.

Os pedidos por ela formulados no âmbito da presente providência reportam-se todos eles a esse mesmo contrato – pedindo o reconhecimento do direito à prorrogação do período de carência, a restituição de qualquer quantia cobrada a título de capital; pedindo que se declare que o contrato de abertura de crédito não está resolvido e que deve produzir os seus efeitos; pedindo que o Requerido seja condenado a cancelar o pedido de pagamento por conta da garantia à LISGARANTE, S.A.

Estamos perante um procedimento cautelar não especificado em que os pedidos formulados se dirigem ou fundamentam todos eles num contrato de financiamento bancário em que a Requerente, pessoa singular, não foi parte.

Ora, é manifesto que pertence à sociedade “B” a titularidade da relação material controvertida que constitui o objeto da presente providência, tal como configurado pela Requerente, sendo imputado ao Requerido o incumprimento do contrato com ela celebrado, que a Requerente vem pretender manter vigente, sem que tenha o poder de negociar tal contrato ou de intervir de alguma forma na sua execução.

A Requerente pessoa singular, perante o direito substantivo, não é a titular da relação material controvertida que serve de fundamento à pretensão que vem deduzir em juízo. O seu titular é a sociedade “B”, a quem uma decisão proferida nos autos não pode vincular num processo em que a mesma não participa.

Fundamenta ainda a Requerente a sua legitimidade no facto de ser avalista, afirmando ter por isso interesse na demanda.

Como expressamente prevê o art.º 30.º da LULL o pagamento de uma letra pode ser no todo ou em parte garantido por aval, admitindo-se por isso que esta garantia seja limitada a uma parte do valor do título, sendo o dador do aval responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada, de acordo com o estabelecido no art.º 32.º do mesmo diploma. A responsabilidade do avalista pelo pagamento do título é assim solidária com a do aceitante do título e não meramente subsidiária, não obstante trata-se de uma obrigação autónoma e independente.

No caso, não é a relação jurídica da garantia prestada pela Requerente através do aval que está em discussão na presente providência e que é controvertida. Ao tribunal não é pedido que tome qualquer decisão sobre o aval que a Requerente prestou, não tendo o tribunal de proceder a qualquer apreciação ou tomar posição sobre tal relação jurídica contratual, nem tão pouco a Requerente invoca qualquer direito sobre o Requerido ao abrigo de tal contrato de garantia que com ele celebrou.

Antes a Requerente fundamenta os seus pedidos no alegado incumprimento de um contrato firmado entre a sociedade “B” e o Banco Requerido, centrando-se o litígio precisamente no relacionamento destas duas entidades na execução e cumprimento de tal contrato, sendo que os pedidos que formula são dirigidos tão só a essa relação contratual que não foi estabelecida com ela e em que a mesma enquanto pessoa singular não tem legitimidade para intervir.

O facto de se ter constituindo avalista no âmbito de uma livrança em branco entregue pela mutuária, como garantia do pagamento de uma parte do financiamento contratado, não lhe dá a possibilidade de intervir no contrato de que é garante, ainda que seja interessada no seu devido cumprimento, por ser avalista. Mas enquanto avalista, a mesma não tem legitimidade para pugnar pela manutenção de um contrato no qual não foi parte, com fundamento no seu alegado incumprimento pelo Banco R.

É certo que a Requerente apresenta-se como sócia gerente de tal sociedade, no entanto, como é sabido uma sociedade é uma pessoa jurídica com individualidade própria relativamente aos seus sócios e o contrato em questão, que constitui o objeto do litígio foi celebrado com a sociedade “B” e não com a Requerente, não tendo esta, enquanto pessoa singular, poder para dispor de tal relação contratual.

O litígio trazido ao tribunal centra-se no contrato celebrado entre a Sociedade “B” e o Banco Requerido, sendo uma relação contratual na qual a Requerente não pode imiscuir-se por não ter sido parte em tal contrato, pelo que o seu interesse no cumprimento do contrato, enquanto avalista é apenas indireto ou reflexo, o que não é suficiente para lhe conferir legitimidade para demandar o Requerido nos termos em que o faz.

Resta concluir que a Requerente, não dispõe de legitimidade ativa para demandar o Requerido nos termos em que o faz na presente providência, de acordo com o disposto no art.º 30.º n.º 1 a 3 do CPC por ter apenas um interesse indireto em demandar, que não é o interesse relevante para efeitos de legitimidade, por não ser a titular da relação material controvertida.

*3. [Comentário] A RL decidiu bem.

A ilegitimidade da Requerente resulta claramente do disposto no art. 30.º, n.º 3, CPC: tal como a relação jurídica controvertida é apresentada pela própria Requerente, esta parte não é titular dessa mesma relação; logo, a Requerente é parte ilegítima.

Dito de outra forma: a Requerente apresenta-se a substituir a sociedade que é titular da relação material controvertida; esta substituição processual não tem qualquer apoio legal; logo, a Requerente é parte ilegítima.

Qualquer destas explicações é mais adequada do que aquela que recorre ao critério do interesse que, equivocadamente, consta dos n.º 1 e 2 do art. 30.º CPC. Na verdade, não é fácil demonstrar que a Requerente não retira nenhuma utilidade da procedência do procedimento cautelar (e, em teoria, da consequente acção principal).

MTS

29/05/2025

Jurisprudência constitucional (239)


Apoio judiciário;
taxa de justiça; insuficiência económica


TC 15/5/2025 (392/2025) decidiu

[...] Julgar inconstitucional a norma resultante da conjugação dos artigos 8.º, 8.º-A, 8.º-B e Anexo da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, e 12.º e Anexo IV da Portaria n.º 1085-A/2004, de 31 de agosto, interpretados no sentido segundo o qual a insuficiência económica demonstrada pelo requerente do benefício do apoio judiciário não lhe permite obter o benefício da dispensa de pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, mas apenas o respetivo pagamento faseado, quando o rendimento mensal disponível é substancialmente equivalente ao valor da taxa de justiça inicial a suportar no processo e o valor da prestação mensal a suportar na modalidade de pagamento faseado tem como consequência uma diminuição do rendimento mensal líquido do beneficiário para um valor inferior ao da remuneração mínima mensal garantida, por violação do disposto no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa; [...].

 

Bibliografia (1199)


-- Michaels, R., Was ist fremdes Recht? – Rechtstheoretische Grundlagen des § 293 ZPO, in Michaels, R./Schmidt, J. P. (Eds.), Das Gutachten zum ausländischen Recht im Prozess des 21. Jahrhunderts, Mohr, Tübingen, 2025, 35 [OA]

-- Michaels, R./Schmidt, J. P., Die Hamburger Leitlinien zur Ermittlung und Anwendung ausländischen Rechts in deutschen Verfahren: Entstehung, Ziele, Inhalt, in Michaels, R./Schmidt, J. P. (Eds.), Das Gutachten zum ausländischen Recht im Prozess des 21. Jahrhunderts, Mohr, Tübingen, 2025, 235 [OA]

-- Wiedmann, D., Haben Gerichtsentscheidungen und Gutachten zum ausländischen Recht eine Präzedenzwirkung?, in Michaels, R./Schmidt, J. P. (Eds.), Das Gutachten zum ausländischen Recht im Prozess des 21. Jahrhunderts, Mohr, Tübingen, 2025, 187 [OA]


Jurisprudência 2024 (177)


Impugnação de justificação notarial;
natureza jurídica; ónus de alegação; ónus da prova*


1. O sumário de RG 19/9/2024 (2/20.0T8MDL.G1) é o seguinte:

I “[A] natureza do recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina outra importante limitação ao seu objeto decorrente do facto de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas.”

II - Não obstante a questão da legitimidade dos autores/recorridos constituir uma questão nova, porquanto não foi suscitada no tribunal a quo, é possível conhecê-la em via de recurso, uma vez que a legitimidade constitui exceção dilatória de conhecimento oficioso (arts. 577º, al. e) e 578º, do CPC).

III - Na tarefa de aferição do cumprimento do ónus imposto pelo art. 640º do CPC importa que os aspetos de natureza formal sejam analisados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, em conformidade com a filosofia subjacente ao atual direito processual civil de prevalência da dimensão material ou substancial sobre a dimensão meramente formal.

IV - Em princípio e como regra geral, os factos devem ser impugnados de forma individual, com referência aos concretos meios probatórios que sustentam a pretensão impugnatória, e não de forma conjunta ou em bloco.
Não obstante, tratando-se de factos intimamente relacionados, designadamente porque respeitam à mesma realidade, é de admitir a impugnação em bloco.

V - A ação de impugnação de justificação notarial é uma ação declarativa de simples apreciação negativa visto com ela se pretender a declaração da inexistência do direito justificado na escritura.

VI - Nesta ação, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"IV – Verificação dos pressupostos legais para que a escritura de justificação notarial seja declarada ineficaz e para que seja reconhecido que os autores são donos da totalidade do imóvel

Com a presente ação, os autores pretendem que se declare impugnado o facto justificado na escritura de justificação outorgada em 20 de novembro de 2017, por os réus não terem adquirido, por usucapião, a metade indivisa do prédio nela identificado e que se declare ineficaz e de nenhum efeito essa mesma escritura, por forma a que os réus não possam, através dela, registar quaisquer direitos sobre o prédio e se ordene o cancelamento de quaisquer registos operados com base na dita escritura (pedidos a), b) e c)).

Trata-se assim de uma ação de impugnação de justificação notarial.

A justificação notarial é um meio que permite ao adquirente que não disponha de documento para a prova do seu direito obter a primeira inscrição, ou, caso exista inscrição de aquisição, reconhecimento ou mera posse, um meio que permite suprir a falta de intervenção do respetivo titular (art. 116º, do Código do Registo Predial).

Nos termos dos arts. 89º a 91º, do Cód. do Notariado, a justificação pode ter como finalidade:

a) o estabelecimento do trato sucessivo;
b) o reatamento do trato sucessivo;
c) o estabelecimento de novo trato sucessivo.

Recorrendo às palavras do Acórdão do STJ, de 5.11.2019, Relatora Maria Clara Sottomayor (in www.dgsi.pt) “a escritura de justificação notarial é um instituto que contribui para a paz social e para a justiça, na medida em que, nos casos em que os interessados encontram dificuldades no registo, derivadas da falta ou insuficiência dos documentos normalmente necessários, e estão impossibilitados de demonstrar o seu direito e, consequentemente, de transmitir ou onerar os seus bens, a lei permite-lhes a prova da aquisição por usucapião. Criou, assim, a lei uma providência de natureza excecional, a justificação, destinada a possibilitar o estabelecimento do princípio do trato sucessivo (inscrição prévia e continuidade das inscrições), sempre que os interessados não disponham de títulos que comprovem os seus direitos.

No acórdão do Supremo Tribunal, de 25.06.2015, Relator Abrantes Geraldes (in www.dgsi.pt)  refere-se que a justificação notarial é um instrumento com “uma elevada dose de pragmatismo e de eficácia que confluem para o objectivo da regularização registral de prédios, através da obtenção de um instrumento formal sem as exigências, os custos e as demoras inerentes quer à acção de justificação judicial, quer à acção de simples apreciação positiva para reconhecimento do direito real por usucapião, meios processuais de natureza contenciosa.

Relativamente aos casos verdadeiramente patológicos, os efeitos negativos para os titulares inscritos, cujos interesses podem ser afectados pela justificação notarial, acabam por ser atenuados com a atribuição do direito de acção que lhes permite confrontar judicialmente o justificante e onerá-lo com a prova dos factos justificativos da usucapião, à semelhança do que ocorreria numa acção de reconhecimento do direito real pela mesma via.

A experiência demonstra, aliás, que o uso razoável daquele mecanismo facilita e simplifica a regularização tabular dos prédios num sistema como o nosso em que, essencialmente fora dos grandes meios urbanos, ainda não está generalizada a percepção das vantagens do cumprimento dos requisitos formais no que concerne aos negócios que têm por objecto prédios rústicos e urbanos (outorga de escritura pública e registo predial dos factos) ou em que, com elevada frequência, se verifica uma desconformidade entre os aspectos de ordem substancial ou material e os aspectos de ordem formal atinentes ao património imobiliário”.

A justificação notarial não constitui ela própria o ato translativo ou constitutivo do direito real. Tal direito, no caso de invocação da usucapião, decorre dos concretos atos materiais de posse, revestidos de determinadas caraterísticas e mantidos durante certo período temporal, que conduzem a essa forma originária de aquisição e que são invocados na escritura de justificação.

Esses atos podem ser impugnados judicialmente, nos termos do art. 101º do Código do Notariado, em ação de impugnação de justificação notarial, a qual é uma ação declarativa de simples apreciação negativa visto com ela se pretender a declaração da inexistência do direito justificado na escritura.

Assim, como decorre do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 1/08, de 4.12.2007 (in DR, SÉRIE I, de 2008-03-31) “Na acção de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos artigos 116.º, n.º1, do Código do Registo Predial e 89.º e 101.º do Código do Notariado, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7.º do Código do Registo Predial.”

Os réus na escritura de justificação declararam, para além situações relativas a outros prédios que para o caso não relevam, que adquiriram metade indivisa do prédio descrito e identificado na verba nº 2, no ano de 1989, na sequência de compra verbal efetuada aos referidos titulares inscritos, sendo que o titular inscrito é a EMP01..., Lda. como consta da descrição do imóvel feita na verba nº 2.

Declararam ainda que possuem o referido prédio há mais de 20 anos, posse que exerceram pacífica a publicamente, à frente e com conhecimento de toda a gente e sem a oposição de ninguém, com convicção de serem os legítimos proprietários, mantida e exercida em nome e interesse próprio, participando nas vantagens e encargos, praticando atos concretos em relação ao direito possuído, exercendo sobre ele todos os atos de posse, designadamente, cultivando o prédio, roçando o mato e ervas, colhendo os seus frutos, pagando as respetivas contribuições e impostos, agindo sempre por forma correspondente ao exercício pleno do direito de propriedade, posse que conduziu à aquisição por usucapião do prédio e que também invocam para efeitos de estabelecimento de novo trato sucessivo na conservatória e do competente registo em seu favor.

Dispõe o art. 1251º, do CC, que posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.
Como se lê no art. 1287º, do CC, a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida durante certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação: é o que se chama usucapião.

A usucapião constitui assim uma forma de aquisição originária do direito real por aquele que tem uma posse com determinadas caraterísticas, mantidas durante determinado lapso temporal.

E constitui um modo de aquisição originária porque o direito surge, ou melhor, constitui-se ex novo na ordem jurídica.

A usucapião é uma forma de constituição de direitos reais e não uma forma de transmissão e, por isso, os direitos que nela tenham a sua origem não sofrem em nada com os vícios de que possam eventualmente padecer os anteriores proprietários sobre a mesma coisa (Menezes Cordeiro; Direitos Reais; II; pág. 684).

A “aquisição por usucapião é uma constituição originária, que tem como sua fonte e génese a posse, geradora do direito, com título, sem título, contra um título de terceiro ou mesmo com um título afectado de nulidade substantiva” (Fernando Pereira Rodrigues, Usucapião. Constituição Originária De Direitos Através da Posse, Almedina, Coimbra, 2008, págs. 12-13).
Porque se trata de uma aquisição originária, o decurso do tempo necessário à sua conformação faz com que desapareçam todas as incidências que neste processo eventualmente possam ter surgido - a posse que interessa para efeitos de usucapião não é a posse causal, ou seja, a posse conforme com um direito que inquestionavelmente se tem e de que representa simples exteriorização; é a posse formal, correspondente a um direito que comprovadamente se não tem ou que poderá não se ter, mas cujos poderes se exercem como sendo um titular, posse vista com abstracção do direito possuído, algo com existência por si, susceptível de conduzir, pela via da usucapião, à aquisição do direito, caso não se seja, já, senhor dele (Galvão Telles, O Direito, 121.º - 652)” (Acórdão do STJ, de 9.2.2017, Relator Silva Gonçalves, in www.dgsi.pt).

Subjacente a esta orientação está a prevalência de interesses ligados à estabilidade e segurança jurídica que conduzem à consideração de que não faz sentido que, perante um longo período de tempo, se eternizem situações de incerteza pelo que se permite a realização das expectativas criadas à luz de uma prolongada configuração factual. Em suma, o sistema jurídico admite que certas situações de facto adquiram tutela jurídica e possam dar lugar ao reconhecimento de direitos em homenagem a interesses de natureza social e económica que acolhe como relevantes” (Luís Filipe Pires de Sousa, Acções Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, 1.ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2011, pág. 62).

Segundo o nosso direito substantivo, para que a aquisição originária de imóveis se verifique é necessário que se demonstre a prática efetiva de atos materiais correspondentes ao conteúdo do direito de que o adquirente se arroga, levados a cabo de forma continuada, pública e pacífica durante mais de 20 anos (arts. 1251º, 1261º, 1262º e 1263º do CC).

A circunstância de a posse ser ou não titulada e ser de boa ou má fé não se repercute na aquisição de imóveis por usucapião desde que a posse tenha sido exercida durante mais de 20 anos (arts. 1258º e ss e 1294º e ss do CC).

A posse capaz de conduzir à aquisição originária do direito correspondente deverá, assim, ser integrada por dois elementos, a saber: o corpus, elemento material que consiste no domínio de facto sobre a coisa, consubstanciado no exercício de poderes materiais sobre ela ou na possibilidade física desse exercício; e o animus, traduzido na intenção e convicção de exercer sobre a coisa, como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio de facto (Henrique Mesquita, in Direitos Reais, 1966, págs. 66 e 67).

O possuidor tem, pois, de provar a existência destes dois elementos. Porém, a prova do corpus faz presumir a existência do animus (art. 1252º, nº 2 do CC).

Invocada a usucapião, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse (art. 1288.º do CC), coincidindo a aquisição do direito de propriedade com o momento do início dessa mesma posse (art. 1317.º, al. c), do CC).

Ora, revertendo ao caso concreto, e tendo sido impugnada a justificação notarial, competia aos réus a prova da veracidade dos factos que declararam na escritura pública de justificação.

Porém, essa materialidade factual não se provou, como resulta da factualidade não provada D a J e da factualidade provada sob os nºs 12, 13 e 22.

Na verdade, não se provou um único facto que permita concluir que os réus têm a posse de metade indivisa do prédio desde há mais de 20 anos, de forma pública e pacífica e que, por isso, o adquiriram por usucapião.

Bem pelo contrário, provou-se que só após o óbito de FF, ocorrido em ../../2015, os réus começaram a cultivar o terreno e a arrogar-se dele serem proprietários (factos 1 e 16), sendo que os réus, desde que se começaram a relacionar com FF sempre souberam que a totalidade do prédio era pertença do mesmo (facto 22) e, enquanto FF foi vivo o réu nunca se arrogou proprietário do prédio (facto 27). Acresce que os réus apenas utilizaram e trataram o prédio em causa limpando-o, plantando oliveiras e colhendo os respetivos frutos, com a autorização do falecido FF enquanto este foi vivo (facto 38).

Assim, os atos materiais praticados pelos réus no imóvel durante a vida de FF, ou seja, até ../../2015, nunca o foram a título possessório, sendo unicamente atos praticados com autorização de FF.

Por conseguinte, conclui-se que os réus não cumpriram o ónus legal que sobre si impendia de provarem os factos constitutivos do direito justificado, pelo que deve ser declarado impugnado o facto justificado na escritura impugnada de 20 de novembro de 2017, deve ser declarada ineficaz e de nenhum efeito essa mesma escritura de justificação notarial e deve ser cancelado qualquer registo feito com base nessa escritura, tudo unicamente com referência ao prédio identificado na verba 2, sendo, por isso, de confirmar a decisão recorrida quanto os pontos iv), v) e vi)."

*3. [Comentário] Deixam-se apenas dois comentários (secundários, se assim se pode dizer):

-- Constitui um verdadeiro enigma como é que uma acção de impugnação de uma justificação notarial -- que é, claramente, uma acção na qual o impugnante exerce (passe o pleonasmo) um poder de impugnação -- pode ser qualificada como um acção de apreciação negativa; aliás, é curioso como a RG "foge" para a qualificação da acção de simples apreciação: "Com a presente ação, os autores pretendem que se declare impugnado o facto justificado na escritura de justificação "; como é óbvio, o autor não pretende a declaração da impugnação do facto justificado, mas antes a impugnação desse facto e as respectivas consequências (tal como, por exemplo, numa acção de impugnação de uma deliberação social, não se pretende a declaração da impugnação, mas antes a impugnação dessa deliberação); o mais correcto é, por isso, qualificar a acção de impugnação de justificação notarial como uma acção constitutiva (art. 10.º, n.º 3, al. c), CPC);

-- Mesmo que a acção de impugnação de uma justificação notarial pudesse ser qualificada como uma acção de simples apreciação negativa, ainda assim caberia discutir se a distribuição do ónus da prova (e, consequentemente, do ónus de alegação) tem de continuar a seguir o velho esquema das acções de jactância medievais (sobre o problema, Castro Mendes/Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil I (2022), 62 s.).

MTS

28/05/2025

Jurisprudência 2024 (176)


Penhora; substituição por caução;
princípio da proporcionalidade*


1. O sumário de RG 26/9/2024 (464/24.7T8VNF-B.G1) é o seguinte:

1 – A execução visa realizar coativamente a prestação não cumprida e, embora todos os bens do devedor suscetíveis de penhora respondam pela dívida exequenda, a penhora limita-se aos bens necessários ao pagamento da quantia exequenda e das despesas previsíveis da execução.

2 – Os atos praticados na execução devem ser os estritamente necessários e adequados a satisfazer a pretensão do credor e o pagamento das despesas do processo.

3 – Como princípio geral, desde logo emergente do disposto nos artigos 18º, nº 2, e 62º da CRP, na execução não devem ser impostos ao executado maiores encargos do que aqueles que se mostrem indispensáveis ao respetivo fim, isto é, a obtenção da satisfação do direito do credor e o pagamento das despesas da execução. Sendo a agressão do património do executado instrumental da apontada finalidade visada com a execução, se existir no processo uma garantia suficiente para satisfazer o crédito do exequente e pagar as despesas judiciais prováveis, não é lícito realizar uma penhora ou manter uma penhora já efetuada, por se traduzir num ato desnecessário.

4 – Estando penhorado um depósito bancário e tendo o executado deduzido oposição à execução por embargos e requerido a prestação de caução mediante garantia bancária com cláusula on first demand, julgada idónea e já prestada, a qual garante o pagamento da quantia exequenda e das despesas judiciais prováveis, deve ser deferida a pretensão de levantamento da penhora efetuada.

5 – Viola o princípio da proporcionalidade a manutenção na execução, em cumulação efetiva, de dois meios onerosos de satisfação do direito do credor e das despesas da execução, no caso a penhora de um depósito bancário e uma garantia bancária prestada como caução, quando qualquer um deles é suficiente para tutelar efetiva e completamente o direito do exequente. Nesse quadro, o levantamento da penhora, requerido pelo executado, mantendo-se a possibilidade de efetiva realização do direito por via da garantia bancária prestada, afigura-se conforme com o princípio da proporcionalidade.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"No âmbito do recurso apenas está questionada a decisão que indeferiu a pretensão de levantamento da penhora realizada na execução, que incidiu sobre um depósito bancário. Tudo o mais mostra-se definitivamente decidido.

A Executada deduziu oposição à execução mediante embargos e estes foram recebidos.

Segundo dispõe o artigo 733º, nº 1, al. a), do CPC, o recebimento dos embargos suspende o prosseguimento da execução se o embargante prestar caução.

No caso dos autos, a Executada requereu a prestação de caução e prestou-a mediante garantia bancária, a qual garante a quantia exequenda e as despesas judiciais prováveis em face do prosseguimento do processo.

Essa garantia bancária autónoma, conforme determinado pelo Tribunal de 1ª instância, é válida «até ao trânsito em julgado da decisão que julgue procedentes os embargos de executados deduzidos pela executada que correm no apenso A dos autos principais ou, em caso de serem julgados improcedentes ou parcialmente procedentes os embargos de executado deduzidos pela executada no apenso A, até que se prove no processo o cumprimento do pagamento da quantia exequenda». Mais, em conformidade com a aludida garantia, «a entidade garante procederá ao pagamento imediato da quantia exequenda, sem possibilidade de invocar qualquer oposição ou escusa, à exequente EMP01..., LDA. após notificação do tribunal para o efeito.»

Por conseguinte, neste momento, o pagamento da quantia exequenda e das despesas está assegurado por duas vias: pela penhora de um depósito bancário e pela garantia bancária com cláusula on first demand. Tanto o saldo bancário como a garantia bancária permitem satisfazer rápida e facilmente o interesse do credor. São, aliás, dois dos meios mais aptos e expeditos para conseguir tal desiderato.

Faz sentido que, com vista à suspensão da execução por virtude da dedução de oposição à execução mediante embargos, subsistam simultaneamente dois meios que asseguram eficazmente o pagamento da quantia exequenda e das despesas?

No nosso entender, a resposta é negativa: nenhum interesse relevante justifica essa duplicação de garantias para realizar o pagamento devido à Exequente.

Em primeiro lugar, não sendo a obrigação voluntariamente cumprida, a ordem jurídica concede ao credor a possibilidade de obter judicialmente a satisfação efetiva do interesse patrimonial correspondente ao seu direito [---] A ação executiva é o meio que o Estado põe à disposição do credor para a realização coativa da prestação não cumprida. Como refere Miguel Teixeira de Sousa [Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, pág. 603.], «a acção executiva enquadra-se, assim, na efetividade da tutela jurisdicional e na garantia do acesso aos tribunais para a defesa dos direitos e interesses legítimos (artº 20º, nº 1, CRP).»

Mas a ação executiva não é mais do que um sucedâneo, em face da proibição da justiça privada (art. 1º do CPC), do cumprimento voluntário da obrigação por parte do devedor. Trata-se de obter por via judicial um resultado idêntico ao da realização da própria prestação que, segundo o título executivo, lhe é devida [Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 2ª edição, Coimbra Editora, pág. 14.].

A execução está por natureza limitada à satisfação do direito do credor a uma prestação. Embora todos os bens do devedor suscetíveis de penhora respondam pela dívida exequenda (art. 735º, nº 1, do CPC), a penhora limita-se aos bens necessários ao pagamento da quantia exequenda e das despesas previsíveis da execução (nº 3 do citado preceito). Suficiência e proporcionalidade são os dois conceitos fundamentais a que está subordinada toda a atividade desenvolvida no âmbito de uma execução.

Os atos praticados na execução devem ser «os estritamente adequados a satisfazer a pretensão do credor e as acessórias pretensões de custas. Tal decorrerá, sempre, dos artigos 18º nº 2 e 62º CRP.» [Rui Pinto, A Ação Executiva, AAFDL Editora, 2018, pág. 32.] É próprio de um Estado de Direito (art. 2º da CRP) que a realização judicial dos direitos se paute pelo princípio da proporcionalidade, pois, nos termos do artigo 18º, nº 2, da CRP, «a lei só pode restringir os direitos, liberdade e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.» Há sempre que ponderar e compatibilizar direitos e interesses antagónicos. Se o credor tem o direito à tutela jurisdicional para efetivação do direito à prestação (art. 20º, nº 1, da CRP), o devedor também tem o direito de exigir que na atuação do Estado seja respeitado o princípio da proporcionalidade.

Repare-se que os atos executivos têm por objeto situações jurídicas integrantes do património do devedor e, de harmonia com o disposto no artigo 62º da CRP, vigora o princípio da propriedade privada, que torna excecional qualquer oneração ou perda forçada das situações jurídicas ativas privadas.

Daí que na execução não devam ser impostos ao executado maiores encargos do que aqueles que se mostrem indispensáveis ao respetivo fim, isto é, a obtenção da satisfação do direito do credor. Mais, a agressão do património do executado é instrumental da apontada finalidade visada com a execução, pelo que se existir no processo uma garantia suficiente para satisfazer o crédito do exequente e pagar as despesas judiciais prováveis não é lícito realizar uma penhora ou manter uma penhora já efetuada, a qual é desnecessária. E, como princípio geral e de bom senso, o que é desnecessário não se realiza nem se mantém.

Por isso, é de difícil compatibilização com os aludidos princípios constitucionais a manutenção, em cumulação, de dois meios onerosos de satisfação do direito do credor, no caso a penhora de um depósito bancário e uma garantia bancária prestada como caução, quando qualquer um deles é suficiente para tutelar efetiva e completamente o direito do exequente.

Nesse quadro, o levantamento da penhora, mantendo-se a possibilidade de efetiva realização do direito por via da garantia bancária prestada, afigura-se como conforme com o princípio da proporcionalidade. Não é uma minudência, pois, traduz-se na observância de um princípio de raiz constitucional estruturante da ordem jurídica. 

É também um princípio que tem um valor normativo autónomo e que permite resolver dúvidas interpretativas e lacunas de normas concretas. «Ou seja, na dúvida normativa, devem prevalecer os valores legislativos ou rationes ínsitos ao princípio.» [Rui Pinto, ob. cit., pág. 32.]

Em segundo lugar, é inteiramente certo que a jurisprudência maioritária e alguma doutrina têm defendido que, prestada a caução, a penhora mantém-se, como bem atestam as citações constantes da decisão recorrida.

Porém, em nenhuma dessas decisões se efetuou a compatibilização do decidido com os princípios constitucionais que acima referimos.

Por outro lado, a solução que preconizamos, sobre a admissibilidade do levantamento da penhora no caso de a caução se mostrar plenamente apta a realizar o direito à prestação de que é titular o exequente, surge associada a uma outra questão, que é a relativa à ponderação da necessidade de caução para suspender a execução quando os bens penhorados já são suficientes para pagamento da quantia exequenda e despesas prováveis. No sentido aqui defendido, entre vários outros, o acórdão desta Relação de Guimarães, de 12.10.2005 (relator António Gonçalves), proferido no processo 1585/05-1 [---], da Relação do Porto de 19.03.2015 (Leonel Serôdio) – proc. 5150/10.2TBVNG-C.P1 e de 10.03.2022 (Judite Pires) – proc. 8778/21.1T8PRT-B.P1, da Relação de Lisboa de 23.03.2021 (Ana Resende) – proc. 5435/20.0T8LSB-B.L1-7, da Relação de Coimbra de 17.01.2017 (Fonte Ramos) – proc. 5211/15.1T8PBL-B.C e de 05.11.2019 (António Pires Robalo) – proc. 3141/18.4T8PBL-B.C1.

Segundo Alberto dos Reis, «a exigência legal que o embargante preste caução para alcançar a suspensão da execução, visa colocar o exequente a coberto dos riscos de demora no seguimento da acção executiva, obviando a que, por virtude de tal demora, o embargante-executado possa empreender manobras delapidatórias do seu património» [Processo de Execução, vol. II, pág. 304.]. Por isso, de harmonia com o mesmo autor, «desde que o exequente tem a segurança de que, se os embargos improcederem, encontrará à sua disposição valores que lhe assegurarão a realização do seu crédito, o seguimento da execução não tem razão de ser».

Pronunciando-se sobre a questão ora em apreciação, Anselmo de Castro referia: «Quanto a nós é impossível ver-se na caução outra função que não seja estritamente a de mera garantia da dívida exequenda (…) igualmente nos parece de admitir que as penhoras já efectuadas podem ser substituídas por caução, e levantar-se pela sua prestação. Será, se se quiser uma lacuna da lei, mas a solucionar necessariamente pelo modo indicado. Veja-se que uma das formas de prestação de caução é em dinheiro e o absurdo que seria não poder o executado fazer cessar a penhora por depósito da respectiva importância» [Acção Executiva Singular, Comum e Especial, 3ª edição, Coimbra Editora, págs. 324 e 325.]. Esta posição mereceu a adesão de Lebre de Freitas [Ob. cit., pág. 166.]: «De apoiar é também a posição de Anselmo de Castro (…) ao entender admissível, não obstante o silêncio da lei, a substituição da penhora já efetuada por caução, mediante aplicação analógica do que é expressamente previsto para as providências cautelares». Este último autor defendia, então, que o requerimento de suspensão da execução, mediante a prestação de caução, pode ter lugar a todo o tempo e não apenas com a petição inicial de embargos, não se justificando qualquer restrição temporal.

O referido entendimento tem agora acolhimento nos artigos 751º, nº 8, e 856º, nº 5 (aplicável à execução sumária, que é o caso dos autos) do CPC, onde se dispõe que «o executado que se oponha à execução pode, no ato da oposição, requerer a substituição da penhora por caução idónea que igualmente garanta os fins da execução

Esta norma corresponde ipsis verbis ao artigo 834º, nº 5, do anterior CPC [---] e foi introduzida pelo Decreto-Lei nº 38/2003, de 8 de março, passando posteriormente, no novo CPC, para o artigo 751º, nº 7. Com a Lei nº 117/2019, de 13/9, transitou para o nº 8 do artigo 751º.

Como se salienta no acórdão da Relação do Porto de 19.03.2015, proferido no processo 5150/10.2TBVNG-C.P1, embora o elemento literal do (agora) nº 8 do artigo 751º do CPC aponte no sentido de que o requerimento de substituição da penhora por caução idónea tem de ser formulada em simultâneo com o requerimento de oposição à execução, a referida norma «tem subjacentes os princípios da proporcionalidade e da adequação e foi criada principalmente no interesse do devedor, visando criar condições para que este quando questiona a obrigação exequenda, não seja onerado excessivamente com a penhora, permitindo a sua substituição por caução idónea.» Por isso, visando essa norma possibilitar ao executado substituir a penhora por caução idónea, esvaziava o seu conteúdo interpretá-la como impondo que o pedido de substituição tivesse de ser formulado em simultâneo com o requerimento de oposição à execução.

Mas o argumento essencial emerge da ratio do artigo 856º, nº 5, do CPC e da norma paralela do artigo 733º, nº 1, al. a), do CPC, que já atrás apontamos. A finalidade da prestação de caução para suspender a execução é assegurar que a demora da ação executiva não se refletirá negativamente na situação do exequente, ou seja, que no caso de os embargos improcederem terá à sua disposição valores que lhe assegurarão a realização do seu crédito.
Tendo a caução a natureza de garantia especial da obrigação (v. epígrafe do capítulo que antecede o artigo 623º do Código Civil), a caução a que se refere o artigo 856º, nº 5, do CPC garante o pagamento da dívida exequenda e das despesas judiciais prováveis.

Se a caução é idónea e garante o aludido pagamento, nenhuma justificação tem a manutenção de penhora com a mesma finalidade, uma vez que representaria uma desnecessária duplicação de garantias.

E o que é desnecessário e não tem justificação numa execução não pode manter-se."


*III. [Comentário] A RG decidiu bem.

Embora não seja muito relevante, cabe lembrar que em Castro Mendes/Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil II (2022), 691, se refere, a propósito do disposto nos art. 751.º, n.º 8, e 856.º, n.º 5, CPC, a "substituição da penhora por uma caução".

MTS

27/05/2025

Jurisprudência 2024 (175)


Registo predial;
excepção de caso julgado


1. O sumário de RC 24/9/2024 (667/23.1T8CLD.C1) é o seguinte:

I - Se a sentença decide com base em dois fundamentos: um primeiro e decisivo, e outro subsidiário, e se no recurso nada se diz quanto ao primeiro e apenas se esgrime quanto ao segundo, ela, por virtude do primeiro, intocado, fundamento, transitou em julgado, pelo que o recurso improcede.

II- Na exceção do caso julgado, para haver identidade sujeitos, basta que ela se verifique no atinente à sua qualidade jurídica, i. e., atentos os interesses que prosseguem e o estatuto e legitimidade que invocam; pelo que se duas conservadoras do registo predial, mesmo que de conservatórias diferentes, recusam um registo, ademais com fundamentação essencialmente igual, e tal recusa é confirmada em ação judicial pretérita, tal identidade ocorre.

III – As regras registrais valem por si próprias e visam uma finalidade específica, pelo que o registo de propriedade, com base num dado modo de aquisição, mesmo que original, como seja a usucapião, pode ser recusado por virtude de argumentos de índole registral, v. g., a violação do trato sucessivo.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"6.1.

Na sentença decidiu-se, de jure, nos seguintes termos:

«Vem, desde logo, o Ministério Público, na sua resposta ao recurso, arguido a violação de caso julgado em face do recurso de impugnação que correu termos sob o citado 174/22.....

Sustenta, para tanto, que, entre o presente recurso e o dito processo 174/22.... existe identidade de sujeitos (referindo, a esse particular, que pese embora estejam em causa Conservatórias diferentes sempre as mesmas assumem a mesma qualidade jurídica), de pedido e de causa de pedir.

Ao invés, sustenta o recorrente que, embora a causa de pedir seja idêntica em ambos os recursos, inexiste identidade de sujeitos, na medida em que, apesar de o requerente ser o mesmo, as Conservatórias, embora tenham a mesma qualidade jurídica, são dirigidas por Conservadores que são pessoas diferentes, com entendimentos e apreciações diferentes; inexiste identidade de pedido, na medida em que as requisições dos pedidos de registo são diferentes, sendo que, além do pedido de registo de aquisição dos dois prédios rústicos em nome do recorrente, a requisição apresentada na Conservatória ... continha ainda a alínea b) da sentença do Julgado de Paz, pedido este que foi omitido na requisição apresentada na Conservatória ....

Vejamos.

A excepção de caso julgado pressupõe a repetição de uma causa depois de a primeira já ter sido decidida por sentença que não admite recurso ordinário e visa evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (cf. o art. 580.º n.ºs 1 e 2 do novo CPC). Desta forma, a excepção de caso julgado impede que seja proferida uma decisão de mérito na acção posteriormente intentada, razão pela qual é qualificada de excepção dilatória [cf. o art. 577.º al. i) do novo CPC], com os efeitos estabelecidos no art. 576.º n.º2 do mesmo código.

O caso julgado que releva para efeitos da excepção em análise é o caso julgado material, no sentido em que transitada a sentença que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele quando se verifique a instauração de nova acção com a tríplice identidade quanto ao objecto [causa de pedir e pedido] e sujeitos processuais.

Ou seja, como decorre do art. 581.º do novo CPC, a repetição de uma causa pressupõe, além da identidade de sujeitos, que se esteja perante o mesmo pedido e a mesma causa de pedir, o que cumpre analisar.

Sobre a identidade dos sujeitos, dispõe o art. 581.º n.º 2 do novo CPC que esta tem lugar “quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica”, sendo pacífico na doutrina e na jurisprudência que aquilo que interessa para o efeito não é a identidade física dos sujeitos, mas sim a sua identidade em face de uma concreta relação material controvertida, existindo identidade ainda que, processualmente, os sujeitos daquela relação material, processualmente, estejam em posições diferentes.

No caso em apreço, cumpre apreciar da verificação de caso julgado, tendo por base os procedimentos iniciais de inscrição da aquisição dos dois prédios rústicos em nome do aqui recorrente. Ou seja, a Conservatória do Registo Predial, seja de ..., seja de ..., não tem a qualidade de parte, mas sim de entidade decisora, que funciona, no âmbito do procedimento administrativo em causa, como “primeira instância”, sendo irrelevante a identificação individual do Conservador em funções [tal como ocorre, aliás, com os tribunais judiciais].

Como tal, in casu, verifica-se a existência da identidade de sujeitos quanto ao aqui recorrente, que foi requerente de ambas as apresentações para registo de aquisição, sendo esta a única que releva.

Por sua vez o pedido é o meio de tutela jurisdicional pretendido pelo requerente, é o efeito jurídico que o requerente pretende obter com a propositura da acção. A causa de pedir, por seu turno, é o facto concreto que serve de fundamento ao direito invocado pelo requerente.

Descendo ao caso concreto, temos, assim, que, em ambas as apresentações, existe identidade, quer do pedido – inscrição dos prédios rústicos ...15 e ...16 em nome do recorrente -, e da causa de pedir – aquisição da propriedade sobre os referidos prédios declarada pela sentença proferida pelo Julgado de Paz ..., com fundamento na usucapião.

Ou seja, na medida em que o pedido de registo apresentado na Conservatória ... não introduz quaisquer factos novos em face da primeira decisão de recusa, proferida pela Conservatória ..., quiçá, não vem suprida a violação do trato sucessivo…, não vem suprida a sobreposição de artigos matriciais [ou seja, a criação ex novo de dois artigos/prédios tendo por base a desanexação de um artigo/prédio pré-existente], no caso dos autos torna-se evidente a existência de identidade de ambos os pedido de registo apresentados pelo recorrente e, bem assim, da causa de pedir subjacente aos mesmos.

E, nesta medida, a apresentação de registo n.º...12, apresentada na Conservatória ..., consubstancia uma repetição da apresentação n.º539, apresentada e recusada [com decisão transitada em julgado] na Conservatória ....

Termos em que importa concluir que existe caso julgado relativamente ao pedido formulado através da apresentação n.º...12, que integra o objecto do presente recurso, procedendo, em consequência, a excepção de caso julgado arguida pelo Ministério Público.

A excepção de caso julgado constitui uma excepção dilatória que obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância - cf. os arts. 576.º n.º2.º, 577.º al. i) e 578.º, todos do novo CPC -, in casu, à manutenção da decisão impugnada.

Ainda assim, mesmo que assim, não se entendesse, sempre o presente recurso teria de improceder.

Efectivamente, tal como exarado na douta sentença proferido no processo 174/22...., que acompanhamos na íntegra, não obstante as decisões do Julgado de Paz terem o valor de sentença proferida por tribunal de 1.ª instância para efeitos do disposto no art. 205.º n.º2 da CRP, não podem substituir-se às demais autoridades, maxime, do Conservador na prática dos seus actos próprios, nem sobrepor-se à competência especifica do mesmo. Como tal, a decisão proferida pelo Julgado de Paz não pode ser entendida como uma ordem directa e concreta dirigida ao Conservador, para a qual os tribunais judiciais não têm legitimidade. Ou seja, compete ao Conservador, perante a decisão judicial que lhe é apresentada, verificar, além do mais, a identidade dos sujeitos e dos prédios e o respeito do trato sucessivo, de molde a praticar o acto próprio da sua competência [registo da aquisição] em conformidade com a lei – cf. o art. 68.º do Código de Registo Predial.

Ao invés, com o devido respeito, a inscrição do direito de propriedade invocado pelo recorrente nos termos decididos pelo Julgado de Paz ..., sem documentar e registar as desanexações que, alegadamente, terão dado origem às parcelas identificadas da referida sentença, e em violação dos arts. 34.º, 80.º e 116.º do Código de Registo Predial, daria necessariamente origem à sobreposição de descrições prediais e à criação de dois tratos sucessivos incompatíveis entre si.

Assim, transpondo para o caso em análise a douta sentença proferida no processo 174/22...., constatando, como constatou, a sra. Conservadora da Conservatória de ..., no exercício da qualificação, perante os documentos apresentados e as disposições legais aplicáveis, existirem razões de natureza registral e de quebra do trato sucessivo, que, aliás, também subscrevemos na íntegra, para recusar o pedido de registo concretamente formulado pelo recorrente, consideramos legal a decisão de recusa sub judice

Concluindo, bem andou a Sra. Conservadora, termos em que o presente recurso sempre seria julgado improcedente.»

6.2.

Verifica-se assim que na sentença o recurso foi indeferido e a decisão da Conservatória confirmada desde logo, em primeira mão e a título principal, por um motivo processual formal, qual seja a conclusão pela existência de caso julgado por reporte à sentença proferida no processo 174/22.....

E apenas se desatendeu o recurso por motivos substantivos, corroborando-se os argumentos aduzidos pela Conservatória e confirmados neste processo 174/22, a título meramente subsidiário e, quiçá, ad abundantiam. [...]

6.3.

Mas mesmo que o recorrente tivesse abordado o fundamento, primeiro e decisivo, do caso julgado pelos fundamentos já por ele aduzidos no processo, não teria razão.

A exceção do caso julgado, prevista no artº 580º do CPC pressupõe a repetição de uma causa; e esta repete-se quando exista a identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir.

Para que haja identidade de sujeitos basta que ele se verifique no atinente à sua qualidade jurídica, ie., e determinantemente, atentos os interesses que prosseguem e o estatuto e legitimidade que invocam.

Ou, por outras palavras, para este efeito, não releva o estrito conceito formal de parte, mas, na verdade, um conceito material de parte. Este apura-se pelo âmbito de eficácia material do objeto processual e não pela estrita e literal titularidade da instância.

Daqui decorre que são idênticos, v. g., o primitivo titular do direito que interveio na ação e as pessoas que, por sucessão, mortis causa ou entre vivos, - v. g. compra, doação, permuta, etc -, assumiram a posição jurídica daquele, quer a substituição se tenha operado no decurso da ação – artºs 262º e 263º do CPC -, quer se tenha verificado só após ter sido proferida a sentença.

E que não obsta à verificação de tal identidade a circunstância de nos dois processos as partes terem litigado na posição de réu e depois na de autor, ou vice versa – cfr. M. de Andrade: Noções Elementares, 1979, p. 310; A. Varela: Manual de Processo Civil, p.722; A. Neto: Breves Notas ao CPC, 2005, p.145 e Remédio Marques: Ação Declarativa à Luz do Código Revisto, 2007, p.452.

Já quanto ao pedido existe identidade do mesmo quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.

Assim o pedido tem a ver/conexiona-se/reporta-se ao objeto da ação como definido pelo autor, reside na pretensão por si formulada a qual se identifica através da providencia solicitada ao tribunal e através do direito a ser tutelado por esse meio.

Na verdade:

«A identidade de pedido …é avaliada em função da posição das partes quanto à relação material, podendo considerar-se que existe tal identidade sempre que ocorra coincidência na enunciação da forma de tutela jurisdicional – implícita ou explícita – pretendida pelo autor, no conteúdo e objeto do direito a tutelar e nos efeitos jurídicos pretendidos.

Ocorre identidade de pedidos se o autor, numa e noutra ação, pretende obter o mesmo efeito útil, isto é, compelir os réus ao cumprimento do contrato-promessa de compra e venda de parcela de terreno.» - AC STJ de 05.12.2017, p. 1565/15.8T8VFR-A.P1.S1

E há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico.

causa petendi é pois o facto com relevância jurídica, ie. à qual a lei atribui potenciais efeitos jurídicos, mas que, ele mesmo, deve assumir essência e contornos materiais concretos, do qual dimanarão aqueles efeitos jurídicos se a pretensão deduzida for atendida.

Há identidade de causas de pedir mesmo que os factos complementares sejam diversos.

Se os factos aditados aos factos alegados na outra ação são apenas complementares ou concretizadores de uma causa de pedir que estava suficientemente individualizada, a causa de pedir é idêntica.

Exemplo: se numa ação por acidente de viação se alega o facto danoso como tendo sido propositado e noutra ação como tendo sido inconsciente, há, ainda assim, identidade de causa de pedir.

E há identidade de causas de pedir mesmo que a qualificação jurídica seja diversa.

Assim, se o autor obteve a condenação do réu na restituição de quantia pecuniária cedida a título de mútuo fica também impedido de deduzir o mesmo pedido com fundamento nos mesmos factos, agora qualificados como contrato de mandato – cfr. Rui Pinto, in file:///C:/Users/Mj01096/Downloads/20181126-ARTIGO-JULGAR-Exce%C3%A7%C3%A3o-e-autoridade-do-caso-julgado-Rui-Pinto.pdf.

Por outro lado, importa ter presente que o caso julgado tem por objetivos defender o prestígio dos tribunais e a certeza e segurança jurídica, já que os mesmos seriam afetados por se decidir antagónica ou contraditoriamente a mesma situação concreta.

Porém, esta figura, em termos concretos da vida real, «apenas se destina a evitar uma contradição pratica de decisões e não já a sua colisão teórica ou lógica…só pretende obstar a decisões concretamente incompatíveis (que não possam executar-se ambas sem detrimento de alguma delas)…a que em novo processo o juiz possa estatuir de modo diverso sobre o direito, situação ou posição jurídica concreta definida por anterior decisão…» - M. Andrade, ob. cit, p. 317/8. [...]

Ora no caso sub judice é meridianamente evidente que existe, entre a presente ação e os autos 174 supra aludidos, desde logo identidade de pedido: o pedido de registo dos imóveis rústicos ...15 e ...16.

E existe identidade de causa de pedir.

Pois que o facto alicerçante fundamentador é o mesmo: aquisição da propriedade sobre os referidos prédios declarada pela sentença proferida pelo Julgado de Paz ..., com fundamento na usucapião.

E tudo isto foi alegado sucessivamente nas ... e de ....

Já quanto à identidade de sujeitos ela outrossim se verifica, pois que as Conservatórias e os Tribunais são os mesmos na sua qualidade jurídica, já que exercem as mesmas competências funcionais.

Inclusive, esta identidade sai reforçada, pois que as duas Conservatórias e o Tribunal, na ação 174, aduziram, na sua essencialidade relevante, os mesmos argumentos para indeferir o registo.

E o facto de apenas existir uma discrepância geográfica entre as conservatórias, natural e quase obviamente, irreleva."

[MTS]



26/05/2025

A ampliação da matéria de facto e as custas




[Para aceder ao texto clicar em Salvador da Costa]


Jurisprudência 2024 (174)


Processo de inventário;
redução por inoficiosidade; litispendência


1. O sumário de RP 26/9/2024 (3733/22.7T8PNF.P1) é o seguinte:

A inoficiosidade de legado ou doação é uma questão que deve ser suscitada e julgada no processo de inventário por estar incluída nas finalidades deste, pelo que estando pendente esse processo o interessado não pode instaurar uma acção com processo comum contra o legatário ou donatário pedindo a declaração judicial da inoficiosidade daquela disposição.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Como vimos a questão que urge decidir consiste em saber se na pendência de um processo de inventário o herdeiro pode instaurar uma acção declarativa comum para discutir, de forma autónoma em relação ao inventário, a inoficiosidade das disposições mortis causa realizadas pelo inventariado.

Salvo melhor opinião, a resposta é claramente negativa, embora não propriamente pelo fundamento usado na decisão recorrida da falta de interesse em agir do autor.

O interesse em agir afere-se pela utilidade do meio processual para assegurar a tutela eficaz do direito subjectivo. Desde que o meio processual usado pelo autor tenha utilidade jurídica para tutelar eficazmente o direito subjectivo o autor tem interesse em agir. Questão diferente é a de saber se o meio processual que usa é o adequado ou aquele que a lei processual consagrou para essa finalidade específica.

O autor tem claro interesse jurídico em discutir a inoficiosidade da disposição mortis causa do seu falecido pai uma vez que, na qualidade de filho do inventariando, é herdeiro legitimário e a sua legítima será afectada pelo excesso da disposição. Esse interesse em agir não significa, contudo, que ele possa instaurar a acção que entender para discutir essa inoficiosidade.

O seu interesse tem de ser exercido através da acção que a lei processual prevê para esse fim, não por só ter interesse em agir dessa forma, mas porque no nosso sistema jurídico-processual civil vigora o princípio da legalidade das formas de processo (artigo 546.º do Código de Processo Civil), nos termos do qual o autor não goza do direito potestativo de escolher a forma de processo para formular a sua pretensão e é obrigado a recorrer à forma de processo que a lei prevê para esse caso.

O Código de Processo Civil consagra no título XVI a forma do processo especial de inventário (artigos 1082.º e seguintes). Entre as suas disposições conta-se a secção V intitulada precisamente «incidente de inoficiosidade».

O artigo 1118.º estabelece a este propósito que qualquer herdeiro legitimário pode requerer, no confronto do donatário ou legatário visado, até à abertura das licitações, a redução das doações ou legados que considere viciadas por inoficiosidade. Nesse requerimento, o interessado deve fundamentar a sua pretensão e especificar os valores dos bens da herança e dos bens doados ou legados, que justificam a redução pretendida. De seguida, são ouvidos, os restantes herdeiros legitimários e o donatário ou legatário requerido. Para apreciar o incidente o juiz pode proceder, mesmo oficiosamente, à avaliação dos bens, se a mesma já não tiver sido realizada no processo. A norma termina dizendo que a decisão incide sobre a existência ou inexistência de inoficiosidade e sobre a restituição dos bens, no todo ou em parte, ao património hereditário.

O subsequente artigo 1119.º estabelece sobre as consequências da inoficiosidade, prescrevendo que quando se reconheça que a doação ou o legado são inoficiosos, o requerido é condenado a repor, em substância, a parte que afectar a legítima, embora possa escolher, de entre os bens doados ou legados, os necessários para preencher o valor que tenha direito a receber. A seguir a norma dispõe sobre os casos em que há lugar a licitação e quem pode intervir na mesma para definir o que há a restituir e como se faz a restituição.

Resulta daqui, portanto, que o processo de inventário também tem por finalidade especial a verificação da inoficiosidade de legados ou doações realizados pelo inventariado, possuindo regras processuais a definir o tempo, o modo e as consequências da decisão desta questão, as quais, aliás, contendem e condicionam os actos processuais a praticar no processo de inventário após a verificação da inoficiosidade.

Acresce que nos termos do artigo 91.º do Código de Processo Civil o tribunal competente para a acção é igualmente competente para conhecer de todos os incidentes que nela se levantem e que contendam com o direito objecto da acção.

Por fim, nos termos do artigo 1092.º do mesmo diploma, se, na pendência do inventário, forem suscitadas questões prejudiciais de que dependa a definição de direitos de interessados directos na partilha o juiz só pode remeter as partes para os meios comuns caso a natureza das questões ou a complexidade da matéria de facto que lhes está subjacente justificar que elas não devam ser incidentalmente decididas. Por outras palavras, a remessa das partes para os meios comuns só ocorre se tal for decido pelo juiz do processo de inventário depois de a questão ter sido suscitada, decisão que depende de um circunstancialismo específico relacionado com a complexidade.

Daqui resulta, pois, que estando pendente processo de inventário a questão da inoficiosidade de legado ou doação feita pelo inventariado tem de ser suscitada no processo de inventário ao abrigo do disposto no artigo 1118.º do Código de Processo Civil e, em princípio, aí terá de ser decidida, sem prejuízo dos casos em que, por decisão judicial, os interessados sejam remetidos para os meios comuns.

Ao escolher a forma do processo comum para suscitar a decisão judicial desta questão à margem do processo de inventário pendente, o autor incorreu em erro na forma de processo e, em simultâneo, criou uma situação de litispendência, uma vez que já se encontra pendente processo (o processo de inventário) em cuja finalidade está compreendida a suscitação e decisão da questão aqui formulada de modo autónomo.

Refira-se que não se coloca a hipótese de suspender a instância porque o vício é impeditivo da instauração da acção e a suspensão da instância por causa prejudicial pressupõe que ambas as causas sejam admissíveis e que haja entre elas apenas uma relação de dependência. Acresce que a questão não é prejudicial do inventário, é antes uma das questões essenciais do inventário (ainda que de dedução eventual: ela só se coloca se os interessados a suscitarem) na medida em que contende com a definição dos direitos dos herdeiros e esse é um dos passos necessários à justa partilha dos bens.

No sentido que aqui se professa, cf. Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro, in O Novo Regime dos Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Almedina, 2020, pág. 123, e Acórdão da Relação de Guimarães de 17-02-2022, proc. n.º 1242/20.8T8VCT.G1, in www.dgsi.pt.

Em conclusão, a decisão recorrida de absolver a ré da instância é correcta, ainda que por fundamento diferente, e deve ser confirmada. Improcede o recurso."

[MTS]