"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



29/06/2024

Bibliografia (1134)


-- Dei Vecchi, D. (Ed.) Susan Haack / Premio Internacional de Cultura Jurídica 2020 (Marcial Pons: Madrid 2024)

-- Fernandes, B., Os Pactos Sucessórios no Regulamento Europeu das Sucessões (Almedina: Coimbra 2024)

-- Menezes, J. R., Certificado Sucessório Europeu (Almedina: Coimbra 2024)

-- Varregoso Mesquita, L.-Leiras, D. (Eds.), Processos de Jurisdição Voluntária – Anotações aos artigos 989.º a 1081.º do Código de Processo Civil (Gestlegal: Coimbra 2024) [OA]


28/06/2024

"A usucapião é um facto aquisitivo de um direito real de gozo" -- qual das palavras não se percebe?


I. 1. Num paper hoje publicado no Blog, o Cons. Urbano Dias reconhece que, apesar de a usucapião ser um título de aquisição da propriedade, 

"[...] nada pode impedir que os RR., pretendendo obstar à procedência da acção intentada pelos AA., para além de negarem os factos por estes alegados (“o que o AA. dizem não é a verdade”), aleguem os factos, todos os factos, conducentes à aquisição por usucapião, que, a serem estes dados como provados, obriga o juiz a não dar como provados os que foram alegados na petição inicial pelos AA. e, em consequência, a julgar a acção improcedente".

Salvo o devido respeito, mesmo sem entrar em todos os seus pormenores desta afirmação, não se pode acompanhar a solução proposta.

2. Antes do mais, convém lembrar a noção de usucapião que consta do art. 1287.º CC: "A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião". É, por isso, bem claro que a usucapião é um facto aquisitivo de um direito real de gozo e, em especial, da propriedade, como, aliás, é comprovado pelo estabelecido no art. 1316.º CC.

Como qualquer facto aquisitivo (ou constitutivo), a usucapião só pode ser alegada pelo demandado através da dedução de um pedido reconvencional (art. 266.º, n.º 2, CPC (e, em especial, n.º 2, al. d)). É algo que não pode merecer nenhuma dúvida.

Por tudo isto, não se pode dizer que existam quaisquer incertezas sobre a caracterização da usucapião e sobre o modo de o demandado a fazer valer em juízo. Tudo é claro, indiscutível e coerente.

Perante estes dados, não se torna fácil criticar uma posição que se desvia do que é certo e irrefutável. O que está em causa não é uma questão de opinião e, portanto, uma questão em relação à qual se possam esgrimir argumentos a favor ou contra, mas antes uma posição que contraria premissas indiscutíveis fornecidas pelo ordenamento jurídico. É como pretender argumentar contra o entendimento de que a contradição entre a causa de pedir e o pedido não origina a ineptidão inicial ou que a falta de pronúncia sobre uma questão levantada pelas partes não origina a nulidade da sentença por omissão de pronúncia. Para além da incompatibilidade com os dados legais, os argumentos invocáveis não são muitos.

Ainda assim, não deixa de se fazer um esforço para demonstrar que a usucapião não pode cumprir outra função no processo (e, em especial, numa acção de reivindicação) que não a de facto aquisitivo de um direito real e, em particular, da propriedade. Para simplificar a exposição, recorre-se, de agora em diante, apenas à propriedade.

3. a) O disposto nos art. 1287.º e 1316.º CC é absolutamente claro: a usucapião é um título de aquisição da propriedade. Assim, a falar-se de um efeito impeditivo da usucapião (o que não tem qualquer apoio legal), isso só poderia suceder como reflexo do reconhecimento da propriedade com base na própria usucapião. Isto é, a insistir-se em falar de um efeito impeditivo (ou até, como já sucedeu na jurisprudência, de um efeito extintivo) da usucapião, isso só poderia decorrer do reconhecimento da propriedade do demandado através da usucapião. Sendo assim, a aceitar-se que é possível atribuir uma eficácia impeditiva à usucapião, isso só pode suceder como reflexo do reconhecimento da aquisição da propriedade pelo demandado, nunca como um efeito autónomo desta aquisição.

Este é um dos mais evidentes equívocos da orientação em apreciação. Efectivamente, a pretender atribuir-se à usucapião a produção de um efeito impeditivo, este efeito nunca pode ser um efeito autónomo do efeito aquisitivo da propriedade. Primeiro, o réu é reconhecido, com fundamento na usucapião, como proprietário; depois, com base neste efeito aquisitivo, fica assente que o título de aquisição alegado pelo autor reivindicante, mesmo que exista e seja reconhecido, não pode produzir nenhuns efeitos. Por exemplo: apesar de se reconhecer que o autor comprou o imóvel, não pode ser reconhecido como proprietário, porque o demandado adquiriu a propriedade desse imóvel por usucapião. Portanto, a usucapião nunca produz um autónomo efeito impeditivo; antes de produzir este alegado efeito impeditivo tem de produzir o necessário efeito aquisitivo. Daí que a usucapião ou vale no processo como facto aquisitivo da propriedade ou não pode cumprir nenhuma outra função no processo.

Contra esta crítica poder-se-ia objectar que o demandado, ao invocar a usucapião como facto impeditivo, está implicitamente a pedir que seja reconhecido como proprietário. Trata-se de uma objecção sem sentido. O reconhecimento da aquisição da propriedade através da usucapião tem de ser solicitado através da dedução de um pedido reconvencional (art. 266.º, n.º 2, al. d), CPC). Como é claro, este reconhecimento explícito não pode ser substituído por nenhum reconhecimento implícito, desde logo porque isso teria como consequência retirar qualquer sentido prático à imposição da dedução do pedido reconvencional.

b) Recorde-se que a usucapião também pode ser invocada pelo demandante como causa de pedir do seu pedido de reivindicação. Pergunta-se: alguma vez se aceitou que o demandante pode pedir apenas o reconhecimento de que se verificou a usucapião, de molde a "impedir" o reconhecimento do réu como proprietário, sem simultaneamente pedir o reconhecimento da aquisição da propriedade?

Não é preciso responder, mas interessa perceber porque não é possível ao demandante invocar a usucapião sem, ao mesmo tempo, pedir o efeito aquisitivo que dela decorre. A razão é muito simples: é porque a usucapião produz um único efeito, que é a aquisição da propriedade; sendo assim, esse feito ou é pedido ou não é pedido pelo demandante. O que não pode suceder é que seja pedido pelo demandante algo de diferente do efeito de aquisição da propriedade. A usucapião produz um efeito legal perfeitamente definido nos art. 1287.º e 1316.º CC, pelo que não está na disponibilidade dessa parte alterar esse efeito ou substituí-lo por qualquer outro.

Se é assim para o demandante, não se percebe como é que pode não ser assim para o demandado, ou seja, como é que o demandado pode invocar a usucapião sem, ao mesmo tempo, extrair dele o efeito de aquisição da propriedade (e sem o invocar através de um pedido reconvencional). Em última análise, seria o princípio da igualdade das partes que seria violado, dado que se permitiria ao réu o que -- aliás, com toda a justificação e de acordo com todos os parâmetros processuais -- não se permite ao autor.

c) A usucapião é um facto aquisitivo da propriedade, naturalmente uno e indivisível. Na sequência da invocação da usucapião só se pode invocar um efeito: a aquisição da propriedade. Isto tem de valer em qualquer processo e para qualquer das partes.

É por isso que permitir a invocação da usucapião como um facto impeditivo pelo demandado padece de vários equívocos, sendo os mais patentes o de se aceitar que a usucapião cumpra no processo uma função diferente da de facto aquisitivo e independente do reconhecimento do seu efeito aquisitivo, bem como o de se admitir que a usucapião possa ser invocada em juízo sem ser através da reconvenção.

4. Importa ainda recordar que o art. 1316.º CC enuncia, além da usucapião, outros títulos de aquisição da propriedade. Imagine-se que, em vez de o réu demandado na acção de reivindicação invocar a usucapião, esse demandado alega a aquisição da propriedade por contrato de compra e venda. Cabe perguntar: alguma vez se entendeu que esse demandado pode invocar essa aquisição contratual, não para ser reconhecido como proprietário, mas para obstar à procedência da acção de reivindicação?

Novamente, não é preciso responder. Fica então sem se perceber o que há de especial na usucapião que justifica um tratamento diferenciado dos demais títulos de aquisição da propriedade. Ou será que se quer estender a solução que é proposta para a usucapião aos demais títulos de aquisição da propriedade e que, afinal, todos estes títulos podem valer apenas como factos impeditivos da procedência da acção de reivindicação? Será que se quer admitir que o demandado invoque a sua qualidade de sucessor, não para ser reconhecido como proprietário da coisa, mas antes para obstar ao reconhecimento do autor como proprietário?

5. Do exposto decorre que a invocação pelo demandado numa acção de reivindicação de um efeito impeditivo decorrente da usucapião não pode produzir nenhuns efeitos. Não só se invoca um efeito desconhecido da ordem jurídica (onde se consagra nesta ordem que a usucapião produz um efeito impeditivo?), como se alega a usucapião através de um meio processual que não é o adequado.

II. 1. Refere ainda o Cons. Urbano Dias

"[...] que, na prática, o que acontece, sobretudo, nos meios rurais, é os RR. contentarem-se apenas com a não prova do direito dos AA. (“eles bem diziam que o prédio era deles, mas não o provaram”)."

Não se discute a prática, mas, para além do que acima se referiu, não pode deixar de se chamar a atenção para os estranhos resultados a que ela conduz. Uma vez que a usucapião não é invocada como facto aquisitivo da propriedade, está excluído, sob pena de excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC), que o tribunal reconheça o réu como proprietário. Portanto, a consequência da referida solução é a de que a acção de reivindicação é considerada improcedente e, em concreto, a de que a coisa não é considerada nem como pertencendo ao autor, nem como pertencendo ao réu. Em termos mais simples, o resultado da acção (um "nem/nem") é a de transformar, entre as partes, a coisa numa res nulius.

O resultado é estranho e, como se referiu, a ordem jurídica fornece todos os elementos e faculta todos os instrumentos para o evitar. Basta que seja respeitado o efeito aquisitivo da usucapião e que, portanto, o demandado peça a sua produção através da dedução de um pedido reconvencional. Neste caso, o resultado da acção será, na enorme maioria das situações, o reconhecimento de uma das partes como proprietária da coisa (ou seja, em vez de um “nem/nem”, passa-se para um “ou/ou”). Não é preciso discutir qual é a solução que a ordem jurídica quer evitar e qual aquela que ela quer atingir (e para a qual, como se disse, fornece todos os elementos e faculta todos os instrumentos).

2. Visto por uma outra perspectiva, a conduta do réu que não reivindica a coisa para si, mas pretende impedir a procedência da acção de reivindicação, também é bastante discutível pelo ângulo da litigância de boa fé, dado que há boas razões para entender que esse réu está a fazer um uso reprovável dos meios processuais (art. 542.º, n.º 2, al. d), CPC). O réu alega um título de aquisição da propriedade, não para obter um resultado favorável para si, mas antes para obstar a um resultado favorável ao autor. Não é certamente impossível admitir que o demandado que assim actua em juízo litiga de má fé, porque, no fundo, utiliza a alegação de um facto aquisitivo para obter uma finalidade distinta de um efeito aquisitivo.

Importa lembrar que, quem invoca a usucapião, alega necessariamente que é proprietário da coisa (precisamente porque a adquiriu através da usucapião). Perante isto, como se pode admitir, nos parâmetros de boa fé das partes que devem orientar o processo civil, que quem é proprietário possa utilizar essa sua qualidade, não para obter o reconhecimento do seu direito, mas antes para obstar ao reconhecimento do autor como proprietário?

É, aliás, muito fácil demonstrar que a alegação pelo demandado de um efeito impeditivo da usucapião é auto-contraditória. O demandado invoca que é proprietário da coisa, porque a adquiriu por usucapião (a alegação da usucapião só pode ter este efeito), mas, ao mesmo tempo, “proíbe” o tribunal da acção de o reconhecer como proprietário.

III. Importa concluir este breve apontamento.

A solução agora criticada mostra, até pelas estranhas consequências a que conduz para as partes e para a ordem jurídica, que o que é equivocado é precisamente o ponto de partida: admitir-se que o réu pode transformar um facto aquisitivo num facto impeditivo e pode querer que a usucapião cumpra em juízo qualquer outra função que não a de aquisição da propriedade.

MTS


A usucapião: excepção versus reconvenção?

 
 
[Para aceder ao texto clicar em Urbano A. Lopes Dias]
 
 

Bibliografia (1133)


-- Gierl | Köhler | Kroiß | Wilsch (Eds.), Internationales Erbrecht / EuErbVO | IntErbRVG | DurchfVO | Länderberichte, 4.ª ed. (Nomos: Baden-Baden 2024)


Jurisprudência 2023 (202)


Facto positivo;
falta de prova; consequências


I. O sumário de RL 7/11/2023 (693/22.8T8PDL.L1-7) é o seguinte:

1. Da circunstância de se entender que não foi feita prova de um facto positivo – v.g., que traduz a existência de conluio – não se pode, num salto lógico, retirar que foi feita prova do facto do facto negativo contrário – v.g., negação da existência de conluio –, pois esta conclusão só poderia assentar na prova concludente deste facto contrário.

2. O autor pode servir-se do mesmo processo para instaurar uma ação de impugnação de justificação notarial e uma ação de reivindicação.

3. Na ação de impugnação de justificação notarial, tendo sido o réu quem na escritura pública respetiva afirmou os factos que levam à aquisição, por usucapião, do direito de propriedade, incumbe-lhe a prova de tais factos constitutivos do seu direito.

4. Cabe ao autor fazer a prova dos factos constitutivos do direito real de que se arroga na ação de reivindicação instaurada, no mesmo processo, com a ação de impugnação de justificação notarial.

5. É interessado na impugnação da justificação notarial o titular de qualquer relação cuja consistência, tanto jurídica como prática, seja afetada pelos efeitos jurídicos que decorrem do facto justificado.

6. Não é indiferente ao arrendatário (nem a quem se arroga essa qualidade) a justificação notarial por meio da qual um terceiro pretende o reconhecimento de um direito que o coloca como contraparte na relação locatícia, especialmente quando esse direito é invocado, pelo justificante ou por um subadquirente, na sustentação de uma pretensão de entrega formulada contra o arrendatário (ainda que sob a forma de uma notificação judicial avulsa).

7. A litigância de má-fé é do conhecimento oficioso do tribunal, quer nas instâncias, quer no Supremo Tribunal de Justiça, podendo este conhecimento incidir sobre uma conduta desenvolvida quando o processo estava pendente perante o tribunal a quo, ainda que este não tenha emitido pronúncia sobre a questão.


II. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A. Relatório [...]

A.B. Questões que ao tribunal cumpre solucionar

A única questão de facto a decidir é o acerto do julgamento da “parte final” do “ponto 27 da matéria de facto dada como assente” – adiante ponto 28 –, pretendendo o apelante que seja dado “como assente que a segunda ré tinha conhecimento do negócio ilícito”. [...]

B. Fundamentação

B.A. Factos provados [...]

28 – A ré M, por escritura de 2 de fevereiro de 2021, adquiriu ao réu LS o direito de propriedade plena sobre o imóvel constituído por casa alta com quintal, destinada a habitação, com a superfície coberta de noventa e um vírgula oitenta metros quadrados e descoberta com a área de cento e oitenta e oito vírgula vinte metros quadrados, sito na Rua da BN, n.º 58, na freguesia de Ponta Delgada (São Pedro) do concelho de Ponta Delgada, pagando o respetivo preço acordado, confiando, naturalmente, que o transmitente era seu legítimo proprietário e possuidor e que o negócio que estava a fazer era absolutamente lícito, sem ofensa de quaisquer putativos direitos ou interesses de quaisquer terceiros. [...]

4. Alteração da decisão de facto proferida

Ouvidos os registos áudio da prova produzida, não podemos deixar de alterar a decisão de facto impugnada. Se os depoimentos invocados e transcritos pelo apelante não permitem considerar provada a matéria pretendida pelo mesmo, em toda a sua extensão, também dos meios de prova invocados pelo tribunal a quo não se pode extrair a decisão vertida na sentença.

Resumidamente, o apelante fundamenta a sua impugnação nas regras da experiência e na circunstância de:

a) a testemunha MRR (mediadora imobiliária) conhecer os réus desde data anterior à outorga da escritura de justificação;

b) a testemunha MRR ter descrito “o primeiro réu LS como uma pessoa doente, fragilizado e vulnerável”;

c) terem decorrido quatro meses entre a escritura de justificação e a escritura de compra e venda outorgada pelos réus.

Estas circunstâncias são manifestamente insuficientes para que se possa dar (positivamente) como provado que a ré M teve intervenção – designadamente, como instigadora – na decisão do réu de outorgar a escritura de justificação; não são sequer suficientes para que se possa considerar provado que, antes da outorga do contrato de compra e venda, conhecia a falsidade do que foi declarado nessa escritura. Mas a prova invocada pelo tribunal a quo também é insuficiente para que se possa concluir, com segurança, pela verificação do facto oposto. Na verdade, nenhuma prova concludente e credível foi produzida sobre esta factualidade – recorde-se que apenas se discute a parte final do ponto 28 –, sendo que os únicos depoimentos com ela relacionados – declarações de parte e testemunho de MRR – são, em geral, como bem assinalou o tribunal a quo, pouco firmes, coerentes e credíveis.

A este respeito, deteta-se uma aporia no silogismo apresentado pelo tribunal a quo. Ainda que se tenha por “transparente a razão da aquisição do prédio aqui em causa [pela ré M], para revenda”, e se tenha por seguro que “nada nos autos nos permit[e] concluir ou até indiciariamente sustentar que a compra foi feita com o intuito de diluir em terceiro a ‘marosca’”, nem por isso se poderá dar por positivamente provado que a ré atuou “confiando, naturalmente, que o transmitente era seu legítimo proprietário e possuidor e que o negócio que estava a fazer era absolutamente lícito, sem ofensa de quaisquer putativos direitos ou interesses de quaisquer terceiros”. Apenas se poderia dar por não provado exatamente o que o tribunal a quo referiu (embora empregando termos distintos): “a compra foi feita com o intuito de diluir em terceiro a ‘marosca’”. Da circunstância de se entender que não foi feita prova de um facto positivo – afirmação da existência de conluio – não se pode, num salto lógico, retirar que foi feita prova do facto do facto negativo contrário – negação da existência de conluio –, pois esta conclusão só poderia assentar na prova concludente deste facto contrário.

Em suma, pelas razões expostas, altera-se a decisão de facto, nela passando a constar, no ponto em análise:

28 – Em 2 de fevereiro de 2021, a ré M, por escritura pública, declarou adquirir ao réu LS, declarando este vender, além do mais, o prédio identificado em “DOIS” da escritura referida no ponto 1 – factos provados.

No leque de factos não provados passa a constar:

67 – Aquando da outorga da escritura pública referida no ponto 28 – factos provados –, a ré M confiava que o transmitente era legítimo proprietário e possuidor dos prédios adquiridos, e que o negócio que estava a fazer era absolutamente lícito, sem ofensa de quaisquer putativos direitos ou interesses de quaisquer terceiros."
 
 
*III. [Comentário] Apenas um comentário a latere.

É precisamente pela mesma lógica utilizada no acórdão que a improcedência de uma acção de apreciação negativa ("não declaração de que não") não pode equivaler à procedência de uma acção de apreciação positiva ("declaração de que sim").

MTS

 

27/06/2024

Jurisprudência 2023 (201)


Revisão de sentença estrangeira;
citação no Estado de origem


1. O sumário (?) de RL 23/11/2023 (2107/22.4YRLSB-2) é o seguinte:

Não cabe a este Tribunal na acção de revisão de decisão brasileira apreciar o mérito da decisão que, desconsiderando a personalidade jurídica da sociedade originariamente devedora, responsabilizou directamente os seus sócios, ora requeridos nesta acção. Antes do Código de Processo Civil brasileiro de 2015, a Justiça do Trabalho no Brasil permitia que a desconsideração fosse determinada de ofício pelo juiz. O fundamento era o de que o art. 878 da Consolidação das Leis de Trabalho (CLT) autorizaria isto, ao dispor que “a execução poderá ser promovida por qualquer interessado, ou ex officio pelo próprio Juiz ou Presidente ou Tribunal competente” [...] e, muito embora na doutrina tal fosse questionado, o Tribunal Superior do Trabalho consolidou seu entendimento pela possibilidade de desconsideração ex officio.

Sendo certo que os termos da citação certificada nos autos dos ora requeridos que passaram à condição de executados não contêm qualquer referência à possibilidade de dedução de embargos, resultando da lei processual brasileira que a citação no processo de execução tem duas fases distintas, uma em que, certificada a citação, o mandado é retido por 48 horas à espera que o devedor satisfaça a dívida ou ainda resista a ela embargando a execução nos termos do art.º 882 da CLT, ocorrendo a outra fase após o término do prazo das 48 horas sem que o devedor solva a obrigação ou nomeie bens à penhora, momento em que o oficial de justiça fará a penhora dos bens, altura em que o juízo será considerado garantido para se iniciar o prazo para iniciar os embargos à execução ou à penhora de acordo com o art.º 884 do CLT, prazo esse de cinco dias; não resultando minimamente indiciado que as garantias de defesa dos requeridos se mostrem diminuídas, nenhuma razão ocorre para que se não reveja e confirme a decisão estrangeira.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

II.4. Suscitavam os requeridos na oposição que não tiveram conhecimento da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade brasileira e, por isso, também não puderam deduzir embargos à execução instaurada. Verifica-se assim existir, uma clara preterição dos direitos essenciais de defesa dos ora Oponentes, nomeadamente do princípio do contraditório e da igualdade das partes, que constitui um dos direitos fundamentais da Constituição da Republica Portuguesa. Em Portugal também não seria possível legalmente fazer executar contra um sócio duma sociedade por quotas uma decisão condenatória proferida exclusivamente contra a sociedade, para pagamento duma dívida da sociedade a um trabalhador; assim, no presente caso, verifica-se também que o eventual reconhecimento da Decisão estrangeira em análise conduziria a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português; em face das certidões de citação, os requeridos reiteram o que já anteriormente mencionaram e sustentam que os requeridos não foram citados para, querendo, contestar, nem tão pouco, foram informados, sobre os prazos e meios legais de defesa [...]. Os requeridos foram privados do exercício do direito de defesa efetiva – postulado, como o da igualdade das partes, do direito a um processo equitativo, consagrado no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa. [...]

III.6. A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem considerado, de forma consistente, que a lei presume a verificação dos requisitos previstos nas alíneas b) a e) do referido artigo 980.º, dispensando o requerente de fazer a respetiva prova, cabendo ao requerido o ónus da prova de que tais requisitos não se verificam, a menos que o tribunal, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nessas alíneas, caso em que, nos termos previstos no artigo 984.º do CPC, deve negar oficiosamente a confirmação – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 22-04-2021 (Revista n.º 78/19.3YRLSB), de 21-02-2006 (Processo n.º 05B4168), de 12-07-2005 (Revista n.º 1880/05), todos publicados em www.dgsi.pt, e ainda os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 16-09-2015 (Revista n.º 85/14.2YRPRT.S19 e de 08-09-2009 (Revista n.º 57/09.9YFLSB), não publicados na DGSI, mas cujo sumário se encontra publicado em www.stj.pt. No caso dos autos, estando em causa o requisito previsto na al. e) do artigo 980.º, caberia, em princípio, ao réu, o ónus da prova de que não pôde exercer o seu contraditório, por irregularidade dos termos da citação, na acção de onde promana a sentença revidenda. Importa, para o efeito, começar por determinar o regime legal aplicável à situação dos autos de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, sendo que, nos termos do disposto no artigo 23.º, n.º 1, do Código Civil português, deve proceder-se à interpretação da lei estrangeira dentro do sistema a que pertence e de acordo com as regras interpretativas nele fixadas. Como se defendeu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26-02-2015 (Revista n.º 693/10.0TVPRT.C1.P1.S1), esta disposição legal “impõe que se faça apelo à jurisprudência e doutrina dominantes no país de origem, que se tenha, como ponto de partida, a correcção da interpretação usual no Estado estrangeiro e que se actue com sensatez e prudência, de modo a colmatar a inerente menor familiarização com a lei estrangeira, só devendo tal interpretação ser afastada quando puder ser tida como inexacta.” De acordo com o disposto no artigo 280.º do CPC brasileiro, “As citações e as intimações serão nulas quando feitas sem observância das prescrições legais.” Quais foram as prescrições legais que de acordo com o Direito Brasileiro foram omitidas nas citações? Salvo o devido respeito, o ónus de alegação e prova de tal incumbe aos requeridos, como se disse. [...]

III.10. A figura da desconsideração da personalidade jurídica tem, como finalidade jurídica imediata, a responsabilização direta dos sócios, alcançando aquele que se esconde atrás das vestes da sociedade e o seu patrimônio, tutelando, assim, os interesses dos credores sociais e o instituto é assim comum aos direitos português e brasileiro.

III.11. Não cabe a este Tribunal na acção de revisão apreciar o mérito da decisão que, desconsiderando a personalidade jurídica da sociedade originariamente devedora, responsabilizou directamente os seus sócios, nem se vê em que medida tal decisão possa ofender os princípios da ordem pública internacional do Estado Português. Na sequência da decisão do Tribunal de Trabalho brasileiro que, desconsiderando a personalidade jurídica da sociedade, estendeu a responsabilidade directamente aos sócios da sociedade, a lei brasileira impõe que os sócios que passaram a ser directamente responsabilizados tivessem que ser citados também para se opor àquela decisão? Se sim, em que termos? Antes do Código de Processo Civil brasileiro de 2015, a Justiça do Trabalho permitia que a desconsideração fosse determinada de ofício pelo juiz. O fundamento era o de que o art. 878 da CLT autorizaria isto, ao dispor que “a execução poderá ser promovida por qualquer interessado, ou ex officio pelo próprio Juiz ou Presidente ou Tribunal competente”. Havia quem defendesse que tal interpretação era altamente questionável, uma vez que o art. 878 da CLT deveria ser interpretado no sentido de que a iniciativa judicial de promover a execução somente se pode dar com relação a quem já figura no título executivo. Não obstante, o Tribunal Superior do Trabalho consolidou o seu entendimento pela possibilidade de desconsideração ex officio (Por exemplo: BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. 5ª Turma, AIRR. n.º 42040-79.1997.5.06.0011, j. 16.12.2009, Rel. Ministro Emmanoel Pereira. Trecho do voto do Relator: “(...) a execução, nesta Justiça especializada pode ser promovida de ofício pelo julgador, na forma do art. 878, caput, da Consolidação das Leis Trabalhistas vulgo CLT) [PARENTONI, Leonardo, O Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica no CPC 2015, pág. 141 [...]].

III.1[2]. No que concerne ao cumprimento dos princípios do contraditório e da igualdade das partes, há que ter em conta o que acima se deixa expresso no que toca aos termos em que a legislação e a jurisprudência dos Tribunais Brasileiros permitiam que a execução contra os sócios podia ser promovida ex officio pelo próprio Tribunal; verdade que os termos da citação certificada nos autos dos ora requeridos que passaram à condição de executados não contém qualquer referência à possibilidade de dedução de embargos, mas tal não significa que os citandos não pudessem deduzir embargos de execução, nem vem invocada norma do direito brasileiro que imponha que nas citações devam constar os mecanismos de defesa. Parte da jurisprudência brasileira entende que o executado (os ora requeridos) pode, na sequência da citação para a execução, arguir em embargos de executado a inexistência do processo por ausência de citação para o processo de conhecimento e prolação da sentença, ou recurso ordinário da sentença que serve de base à execução postulando o reconhecimento da inexistência de processo. Tudo indica que a citação no processo de execução tem duas fases distintas, uma em que certificada a citação o mandado é retido por 48 horas à espera que o devedor satisfaça a dívida ou ainda resista a ela embragando a execução nos termos do art.º 882 da CLT. A outra fase ocorre após o término do prazo das 48 horas sem que o devedor solva a obrigação ou nomeie bens à penhora, momento em que o oficial de justiça fará a penhora dos bens. Somente após o termo destas fases é que o juízo será considerado garantido para se iniciar o prazo para iniciar os embargos à execução ou à penhora de acordo com o art.º 884 do CLT, prazo esse de cinco dias. Para dedução destes embargos é condição que o executado garanta o valor dado à execução. O executado não diz que o fez ou razão pela qual o não fez, sequer invoca qualquer razão que permita considerar que, não o podendo fazer, os seus direitos de defesa resultaram diminuídos. [...]."

[MTS]

26/06/2024

Jurisprudência europeia (TJ) (307)


Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Responsabilidade parental — Regulamento (CE) n.° 2201/2003 — Artigos 10.° e 11.° — Competência em caso de deslocação ilícita de uma criança — Residência habitual da criança num Estado‑Membro antes da deslocação ilícita — Processo de regresso entre um país terceiro e um Estado‑Membro — Conceito de “pedido de regresso” — Convenção da Haia de 25 de outubro de 1980 sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças


TJ 20/6/2024 (C‑35/23, Pai/Mãe) decidiu o seguinte:

1)      O artigo 10.°, alínea b), i), do Regulamento (CE) n.° 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.° 1347/2000,

deve ser interpretado no sentido de que:

esta disposição não deixa de ser aplicável apenas pelo facto de ter sido solicitado a uma autoridade central de um país terceiro que executasse um processo de regresso de uma criança ao abrigo da Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, celebrada em Haia em 25 de outubro de 1980, e de esse processo ter falhado.

2)      O artigo 10.°, alínea b), i) do Regulamento n.° 2201/2003

deve ser interpretado no sentido de que:

não está abrangido pelo conceito de «pedido de regresso», na aceção desta disposição, nem um pedido destinado ao regresso da criança a um Estado‑Membro diferente do Estado‑Membro em que essa criança tinha a sua residência habitual imediatamente antes da sua deslocação ou retenção ilícitas, nem um pedido de guarda da referida criança instaurado nos órgãos jurisdicionais desse Estado‑Membro.

3)      O artigo 11.°, n.os 6 a 8, do Regulamento n.° 2201/2003

deve ser interpretado no sentido de que:

não se aplica aquando da execução de um processo de regresso de uma criança, ao abrigo da Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, celebrada em Haia em 25 de outubro de 1980, entre um país terceiro e um Estado‑Membro em cujo território essa criança se encontra na sequência de uma deslocação ou retenção ilícitas.


 

Bibliografia (1132)


-- Maria João Lourenço, Regime da Prova Pericial no Ordenamento Jurídico Português - Contributos para o seu aperfeiçoamento (Almedina: Coimbra 2024)


Jurisprudência 2023 (200)


Recurso de revista;
violação de caso julgado*

1. O sumário de STJ 16/11/2023 (1044/18.1T8VNF-A.G1.S1) é o seguinte:

I. No âmbito dos embargos de executado, nos termos do disposto no artigo 854.º do Código de Processo Civil, a admissibilidade de revista afere-se pelas regras relativas ao processo declarativo.

II. Nos recursos de revista que apenas são admissíveis por se fundarem em violação de caso julgado, é jurisprudência assente a restrição da intervenção do Supremo Tribunal de Justiça à verificação desse fundamento.

III. Invocando-se que a sentença proferida nos embargos de executado violou o caso julgado formado pela sentença proferida na acção declarativa, que constitui o título executivo, há que interpretar a primeira sentença, com o objectivo de determinar qual é o âmbito desse caso julgado.

IV. A interpretação de uma sentença obriga a considerar, além da sua parte decisória, a respectiva fundamentação o contexto, os antecedentes e outros elementos que se revelem pertinentes; para além disso, e porque se trata de um acto formal, aliás particularmente solene, cumpre garantir que o sentido apurado tem a devida tradução no texto.

V. Concluindo-se que não houve violação de caso julgado, o recurso não é admissível.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"4. Nos termos do disposto no artigo 854.º do Código de Processo Civil, a admissibilidade de revista, no âmbito dos embargos de executado, afere-se pelas regras relativas ao processo declarativo. No caso, a revista foi interposta nos termos gerais – n.º 1 do artigo 671.º do Código de Processo Civil –, dizendo-se ainda no requerimento de interposição de recurso ser um “recurso de revista que, além do mais, é excepcional (artigo 672.º, n.º 1, al.ª ado CPC), por se tratar de uma questão de direito com manifesta relevância jurídica”; todavia, nas alegações, os recorrentes invocam violação do caso julgado formado pela sentença de cuja execução agora se trata, sustentando que a sentença proferida nos embargos de executado, parcialmente confirmada pelo acórdão recorrido, o infringe.

Não sendo admissível nos termos gerais, uma vez que o valor de € 5 500,01 não excede manifestamente a alçada da Relação (n.º 1 do artigo 629,º do Código de Processo Civil), o presente recurso só será admissível se efectivamente ocorrer violação de caso julgado (artigo 854.º. e n.ºs 1 e 2, a) do artigo 629.º do Código de Processo Civil). Aqui, foi invocada a violação de caso julgado formal (cfr., expressamente, a concl . VIII das alegações de revista). [...]

Passar-se-á, portanto, a determinar se o acórdão recorrido violou o caso julgado formado pela sentença que aqui constitui título executivo, que baliza os termos da execução (n.º 5 do artigo 11.º do Código de Processo Civil), não sem antes esclarecer que, ainda que a revista seja admissível, o efeito do recurso é meramente devolutivo, porque a revista só tem efeito suspensivo nas questões relativas ao estado das pessoas (n.º 1 do artigo 676.º do Código de Processo Civil), e, ainda, que a violação de caso julgado é fundamento de revista “normal” (al. a) do n.º 2 do artigo 629.º do Código de Processo Civil); assim sendo, que não se põe sequer a questão de poder ser fundamento de revista excepcional (que, aliás, é um recurso de revista, que só tem de excepcional a sua admissibilidade).

5. O fundamento da exequibilidade de uma sentença condenatória, ou seja, “que condene(m) no cumprimento de uma obrigação” (artigos703.º, n.º 1, a) e 705.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil) reconduz-se à força probatória do caso julgado material. Averiguar qual é a extensão (objectiva, que é o que agora interessa) desse caso julgado é imprescindível para se poder determinar se uma decisão posterior o violou; o que implica a respectiva interpretação. Interpretar o conteúdo de uma sentença de mérito é pressuposto indispensável da determinação do âmbito do caso julgado material, naturalmente.

Mas essa averiguação é igualmente indispensável quando se tratar da força de caso julgado formal. O fundamento do caso julgado formal é a disciplina processual, que se manifesta agora na lógica da preclusão: o caso julgado formal é uma manifestação da preclusão. Por isso se diz habitualmente que o primeiro efeito da interposição de um recurso é, justamente, impedir o caso julgado formal da decisão de que se recorre.

Ora, quer numa perspectiva, quer noutra, saber se uma decisão judicial contradiz uma decisão já transitada, proferida no mesmo processo ou num processo anterior, implica naturalmente determinar o âmbito do que não pode ser contrariado – o que é o mesmo que dizer o âmbito do caso julgado –, sob pena de, no mínimo, ineficácia da segunda decisão (n.ºs 1 e 2 do artigo 625.º do Código de Processo Civil). Esta desconsideração da segunda decisão é a protecção última do caso julgado, a considerar quando falhou a barreira da excepção de caso julgado, formal ou material.

Sabe-se que, para o efeito, não basta considerar a parte decisória da sentença, cabendo tomar na devida conta a respectiva fundamentação (“é ponto assente na doutrina que os fundamentos da sentença podem e devem ser utilizados para fixar o sentido e alcance da decisão contida na parte final da sentença, coberta pelo caso julgado”, escrevem Antunes Varela, J. M. Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra, 1985, pág. 715, como se recorda no acórdão de 29 de Abril de 2010, www.dgsi.pt, proc. n 102/2001.L1.S1), o contexto, os antecedentes e outros elementos que se revelem pertinentes (acórdão de 8 de Junho de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 25.163/05.5YLSB.L1.S1). Para além disso, e porque se trata de um acto formal, aliás particularmente solene, cumpre garantir que o sentido tem a devida tradução no texto (cfr., com o devido desenvolvimento, o acórdão de 3 de Fevereiro de 2011, www.dgsi.pt, proc. nº 190-A/1999.E1.S1 e o acórdão de 25 de Junho de 2009, www.dgsi.pt, proc. nº 351/09.9YFLSB).

6. Resulta das alegações dos recorrentes que a violação do caso julgado formado pela sentença exequenda respeita a dois pontos:

– à extensão da parede, ou muro, a reparar – se a parede ou muro inicialmente construído (como se entendeu no acórdão recorrido, confirmando a sentença proferida nos embargos), se apenas a parte ainda erigida (como consideram os recorrentes),

– à forma da reparação, definida na mesma sentença e confirmada pelo acórdão recorrido como implicando “recurso a betão ciclópico (betão simples e pedras) de 30 a 40 cm de espessura ou outra técnica que se mostre adequada”.

No que agora releva, tendo em conta a procedência parcial da apelação, a sentença exequenda pronunciou-se nos seguintes termos, em grande parte transcritos no acórdão recorrido:

“Pediu ainda a A. que os RR. fossem condenados a fazer as obras que forem necessárias, no valado referido nesta acção, de forma a evitar desmoronamentos, nomeadamente, reparando a parede por eles construída na extrema nascente do seu prédio, junto à garagem do prédio referido em 1). Efectivamente, ficou provado que os RR. construíram, na extrema nascente do valado referido, junto à linha divisória dos prédios, uma parede composta por pedras de granito sobrepostas e elementos de betão, numa extensão de cerca de três metros. Também ficou provado que tal parede não apresentava constituição firme; igualmente se demonstrou que, por via disso, as terras e pedras que compõem o valado e essa mesma parede deslizaram, tendo ultrapassado, em alguns locais, a linha que divide os dois prédios. Face ao exposto, forçoso é considerar que a parte da referida parede que ainda se mantém erigida oferece perigo de ruir, nos termos previstos no art. 1350º do CC. Mais: face à natureza e à morfologia do local em causa, dessa ruína poderão resultar ainda mais danos que os já verificados. Assim, nos termos do mencionado preceito, impõe-se condenar os RR. a levar a cabo as providências necessárias para eliminar o perigo de derrocada da parte da parede ainda erigida. Assim, deverão os RR. ser condenados a reparar a referida parede. (…)”

Da leitura atenta do texto da parte decisória, à luz da respectiva fundamentação acabada de transcrever, bem como da consideração da finalidade tida em conta com a condenação, resulta que esta condenação teve como objecto a parede ou muro inicialmente construído (identificado no ponto 21 da matéria de facto considerada na sentença exequenda).

Assim resulta:

– do texto da condenação («Condeno os RR. AA e BB a reparar a parede referida em 21) e 22) dos “factos provados”»),

– da justificação para que a obrigação de reparar abranja toda a parede ou muro identificada em 21), pois se entendeu que a deficiente construção do muro provocou a derrocada já verificada e conduz ao perigo iminente de desmoronamento da parte “que se mantém erigida” : “Face ao exposto” (recorde-se, à razão do desmoronamento já verificado), “forçoso é considerar que a parte da referida parede que ainda se mantém erigida oferece perigo de ruir (…).”

– da finalidade tido com a condenação: evitar a derrocada da parte que ainda se mantém e de mais danos que dela poderão resultar: ““Face ao exposto, forçoso é considerar que a parte da referida parede que ainda se mantém erigida oferece perigo de ruir. Mais: face à natureza e à morfologia do local em causa, dessa ruína poderão resultar ainda mais danos que os já verificados”;

Note-se que o sentido assumido pelas instâncias, nos embargos de executado, corresponde ao sentido literal da condenação, que remete expressamente para «a parede referida em 21) e 22) dos ‘factos provados”». Está assim respeitada a natureza de acto formal da sentença. [...]

8. Não ocorrendo violação de caso julgado, o presente recurso não é admissível."


*3. [Comentário] Salvo o devido respeito, o STJ devia ter concluído pela improcedência do recurso. O recorrente alegou que a decisão recorrida violou o caso julgado; o STJ concluiu que essa violação não ocorreu; logo, o recurso ímprocedeu.


MTS


25/06/2024

Jurisprudência uniformizada (68)


Certificado multiusos;
documento autêntico


Ac. STJ 8/2024, de 25/6, uniformizou jurisprudência no seguinte sentido:

O atestado médico de incapacidade multiuso, emitido para pessoas com deficiência de acordo com o Decreto-Lei n.º 202/96, de 21 de Outubro, é um documento autêntico, que, de acordo com o artigo 371.º, n.º 1, em conjugação com o artigo 389.º, do Código Civil, faz prova plena dos factos praticados e percepcionados pela «junta médica» (autoridade pública) competente e prova sujeita à livre apreciação do julgador quanto aos factos correspondentes às respostas de avaliação médica e de determinação da percentagem de incapacidade da pessoa avaliada.

 

Jurisprudência 2023 (199)


Processo de inventário;
âmbito de aplicação*

I. O sumário de RE 23/11/2023 (1355/23.4T8FAR.E1) é o seguinte:

1 – A partilha deve ser feita por meio de inventário quando não haja acordos dos interessados directos na partilha, quando o Ministério Público entenda que o interesse do incapaz a quem a herança é deferida implica aceitação beneficiária ou quando algum dos herdeiros não possa, por motivo de ausência em parte incerta ou de incapacidade de facto permanente, intervir em partilha realizada por acordo.

2 – O recurso ao processo de inventário é inadmissível nas situações de único interessado, pois não há que partilhar o património hereditário, porquanto este será adjudicado, na totalidade, ao único de interessado.

3 – Em caso de redução inoficiosa de liberalidades, a norma que determina o recurso ao processo de inventário tem como pressuposto a obrigatoriedade de, no caso, ter de se seguir o processo de inventário, o que não acontece nos casos de herdeiro único, onde não se discuta a matéria da relacionação de bens hereditários para eventual liquidação da herança.

4 – É a acção declarativa comum, e não o processo de inventário, o meio processual adequado para o autor, único herdeiro legitimário do de cujus, pedir a redução ou revogação de liberalidades por inoficiosidade.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A partilha deve ser feita por meio de inventário quando não haja acordos dos interessados directos na partilha, quando o Ministério Público entenda que o interesse do incapaz a quem a herança é deferida implica aceitação beneficiária ou quando algum dos herdeiros não possa, por motivo de ausência em parte incerta ou de incapacidade de facto permanente, intervir em partilha realizada por acordo. Nestes dois últimos casos, a lei entende que um dos herdeiros é merecedor de uma tutela especial, que justifica um procedimento mais exigente [Isabel Menéres Campos Código Civil Anotado, Livro V (coordenação Cristina Araújo Dias), 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2022, pág. 131.]

O processo de inventário destina-se a pôr termo à comunhão hereditária ou, não carecendo de realizar-se partilha judicial, a relacionar os bens que constituem objecto de sucessão e a servir de base a eventual liquidação da herança.

O processo de inventário assume assim duas finalidades: (i) pôr termo à comunhão hereditária, com a consequente realização da partilha dos bens da herança ou (ii) a de relacionação de bens hereditários para eventual liquidação da herança.

O Autor é o único herdeiro de seus pais, o que exclui a necessidade de proceder a inventário com a finalidade de proceder à partilha dos bens destas heranças. E, na outra faceta, não está aqui em causa qualquer operação de liquidação da herança, o que afasta a necessidade de relacionação de bens em processo de inventário, sendo que esta é prosseguida com o objectivo de facilitar a limitação da responsabilidade pelas dívidas e encargos da herança, nos termos do regulado na al. b) do artigo 2103º [---] do Código Civil.

Os herdeiros legitimários e, para defesa da sua legítima, têm um meio de reagir contra as disposições de carácter gratuito que o autor da sucessão tenha realizado, entre vivos ou mortis causa, que ofendam a sua legítima: a redução por inoficiosidade [Cristina Araújo Dias, Código Civil Anotado, Livro V (coordenação Cristina Araújo Dias), 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2022, pág. 235.]

Dizem-se inoficiosas as liberalidades, entre vivos ou por morte, que ofendam a legítima dos herdeiros legitimários e esta matéria mostra-se regulada nos artigo 2168º [---] e seguintes do Código Civil, revelando aqui especial interesse a questão das liberalidades feitas em vida [---]. E, no plano adjectivo, o instituto está precipitado no artigo 1118º [---] do Código de Processo Civil.

Pires de Lima e Antunes Varela assinalam que a mancha da inoficiosidade tanto pode atingir, efectivamente, as liberalidades entre vivos (doações) e por morte (legados ou instituições de herdeiros), como as próprias despesas sujeitas a colação (artigos 2110º, nº2[12] e 2104º, nº2 [----]) [Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. VI, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, pág. 273.]

As liberalidades inoficiosas são redutíveis, a requerimento dos herdeiros legitimários ou dos seus sucessores, em tanto quanto for necessário para que a legítima seja preenchida e a mesma não opera automaticamente, exigindo-se assim o impulso processual dos afectados com a liberalidade.

Haverá uma redução, a concretizar nos termos estatuídos nos artigos 2172º e 2173º [---] – in casu, das feitas em vida –, das liberalidades excessivas que o autor da sucessão realizou e que atingem o preenchimento da legítima dos mesmos, podendo tal operação «converter-se em revogação, quando a mancha da inoficiosidade cubra a liberalidade afectada em toda a sua extensão» [Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. VI, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, pág. 273.].

Está apenas em causa a pedida declaração de inoficiosidade da doação que foi feita em benefício dos demandados, quer se considere o pedido de redução, quer se valide a pretensão de restituição do imóvel, dado que ambos têm subjacente o mesmo fundamento e idêntica causa de pedir.

Não estando este acórdão a sindicar as decisões das acções comuns precedentes importa referir que na operação de partilha existe um único interessado e, assim, por desnecessidade, não é válida aqui a asserção que «na herança de (…) não é apenas herdeiro o Autor, mas também o cônjuge da falecida (para além de ser meeiro), tendo sempre que ocorrer operações de partilha».

No inventário partilham-se bens, real e objectivamente considerados e ainda que houvesse de ser efectuada a cumulação de inventários, que exigisse a apreciação conjunta do acervo patrimonial a partilhar e sendo este comum aos dois inventários, existiria apenas um único interessado.

Efectivamente, nos termos anteriormente assinalados, o recurso ao processo de inventário é inadmissível nas situações de único interessado. Na realidade, se há apenas um interessado na herança, não há que partilhar o património hereditário, porquanto este será adjudicado, na totalidade, ao único de interessado [Isabel Menéres Campos Código Civil Anotado, Livro V (coordenação Cristina Araújo Dias), 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2022, pág. 132.], independentemente do número de pessoas falecidas de quem o sucessor seja herdeiro legitimário.

Assim, como se diz no acto decisório recorrido é a acção declarativa comum, e não o processo de inventário, o meio processual adequado para o autor, único herdeiro legitimário do de cujus, pedir a redução ou a revogação de liberalidades por inoficiosidade [Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14/01/2016, editado em www.dgsi.pt.] [Pronunciando-se sobre idêntico objecto o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/10/2006, publicitado em www.dgsi.pt, afirma que «este pedido (…) não se integra na finalidade para que foi estabelecido o processo de inventário, e daí que se tenha de seguir a forma de processo comum».].

Tal como ressalta da jurisprudência emitida pelo Supremo Tribunal de Justiça com a procedência da acção «os bens passam, sem mais, a integrar o património hereditário, assegurando às partes todas as garantias de defesa dos seus direitos, designadamente, a alegada avaliação do valor real dos bens, certo que as normas processuais que permitem aos donatários intervir no processo de inventário, em caso de inoficiosidade, não impõem a utilização do processo de inventário – a norma que determina o recurso ao processo de inventário (…) tem como pressuposto a obrigatoriedade de, no caso, ter de se seguir o processo de inventário» [Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/11/94, publicado na Colectânea de Jurisprudência C.J. - STJ - 1994-3-145, citado pelo acórdão do mesmo Tribunal de 24/10/2006 já referenciado na nota de rodapé anterior.].

Em suma, na acção comum existe a necessidade de alegação e prova dos factos constitutivos da causa de pedir, sendo que, no inventário, o pedido de redução por inoficiosidade surge como mero incidente processual, mas, neste caso, é pressuposto do recurso a este procedimento a existência de mais do que um interessado e a necessidade de realizar operações de partilha, o que aqui não se verifica.

E, assim, mesmo que tivesse de ser realizada a título incidental uma partilha hipotética ou virtual, o destinatário final de todos e quaisquer bens ou direitos, existentes à data da abertura da sucessão, seria sempre o Autor. Este é o beneficiário de todo o acervo patrimonial dos de cujus.

É certo que causa perplexidade, desencanto e surpresa a circunstância de o Autor ter sido forçado a recorrer sucessiva e alternadamente a instâncias diversas em ordem a concretizar um legítimo direito de discutir o seu direito de redução da inoficiosidade da doação e que as sucessivas decisões contraditórias têm sido um verdadeiro entrave ao acesso à Justiça e a uma tutela jurisdicional efectiva. Este é um claro exemplo de uma indesejada situação disfuncional e que briga com a obtenção de decisão em prazo razoável, mas que não pode continuar, sob pena do autor ser privado injustificadamente da tutela da sua pretensão.

No entanto, o despacho de indeferimento liminar sub judice está correctamente emitido e corresponde à solução jurídica acertada e daqui que não resta qualquer alternativa ao Tribunal da Relação de Évora senão confirmá-lo, julgando improcedente o recurso interposto."

3. [Comentário] a) No Relatório do acórdão escreveu-se o seguinte:

"No presente inventário aberto por óbito de (…) e de (…) proposto por (…) contra (…) e (…), com incidente de inoficiosidade deduzido, o requerente veio interpor recurso da decisão de indeferimento liminar.

*
O requerente pretende a redução, por inoficiosidade, para preenchimento da legítima de herdeiro legitimário, por ofensa da legítima, de liberalidade (doação) efectuada pelos seus pais, (…) e (…), aos seus netos, filhos do aqui Autor.
 
Ou, a restituição do bem doado ao património hereditário, com todas as demais consequências legais dai decorrentes, no montante total de 206.449,35 € (duzentos e seis mil quatrocentos e quarenta e nove euros e trinta e cinco cêntimos), para que possa ser preenchida a parte destinada ao herdeiro legitimário. [...]

*
O requerente intentou acção declarativa, com processo comum, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Central Civil de Faro, Juiz 1, sob o Processo n.º 3772/22.8T8FAR, a qual por despacho proferido em 23/11/2022, viu ser-lhe tal pretensão liminarmente indeferida, julgando verificada a excepção dilatória de nulidade, por erro na forma do processo.

*
Face à decisão judicial proferida, após intentar providência cautelar de arresto, o Autor (…) intentou acção especial de inventário (competência exclusiva) onde deduziu o incidente de redução de liberalidade por inoficiosidade, a qual correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Local Civil de Faro, Juiz 1, sob o Processo n.º 3888/22.0T8FAR, a qual por despacho proferido em 16/01/2023, foi indeferido liminarmente, por manifesta improcedência do pedido, que deveria seguir a forma de processo comum.

*
Intentada de novo acção de processo comum, que correu termos junto do Tribunal Judicial da Comarca de Faro sob o processo 1186/23.1T8FAR, foi indeferida liminarmente a petição inicial apresentada, julgando-se verificada a excepção dilatória de nulidade, por erro na forma do processo.

*
Nos presentes na parte que assume pertinência para a justa composição do litígio, foi proferido despacho com o seguinte conteúdo: «não havendo mais do que um herdeiro legitimário, e interessando apenas a este a redução de liberalidades por inoficiosidade – pois não tem com quem mais partilhar os bens – não há operações de partilha a fazer, pelo que deverá ser indeferido o requerimento inicial para partilha de bens (processo de inventário) e bem assim o respectivo incidente.

Em face de todo o exposto, indefere-se liminarmente o requerimento apresentado».

b) O caso sobre o qual recaiu o acórdão da RE é um daqueles em que o processo não foi "pro-cesso", mas antes "re-cesso". Algum tempo depois, o autor voltou à "casa de partida".

A situação é anómala e constitui o que se pode designar por "conflito negativo de formas do processo". Resta esperar que, quando o Autor voltar a propor a acção sobre a forma de processo comum, o problema da forma do processo não se coloque de novo.

Se tal vier a suceder, a anomalia não é da responsabilidade do Autor e o sistema tem de lhe dar uma solução. Perante a falta de resposta desse sistema e perante a lacuna nele existente, sugere-se a aplicação analógica do disposto no art. 110.º, n.º 2, CPC: a forma de processo é determinada pelo Presidente da Relação a cuja circunscrição pertencem os tribunais em conflito quanto à forma do processo.

MTS


24/06/2024

Jurisprudência 2023 (198)


Decisão-surpresa;
efeitos*


1. O sumário de RG 16/11/2023 (1358/20.9T8VRL.G1) é o seguinte:

I- Os despachos que identificam o objecto do litígio e enunciam os temas da prova não formam caso julgado formal porque se destinam a prover ao andamento regular do processo, sem importarem uma decisão substancial que interfira, em termos definitivos, no conflito de interesses entre as partes, podendo o seu teor ser modificado no decurso da instrução da causa e mesmo em sede de recurso.

II- Porém, se a sentença se sustentou em matéria de facto não incluída nos temas da prova, não tendo as partes sido advertidas pelo tribunal a quo quanto a uma possível ampliação dos temas da prova enunciados por considerar – ao contrário do anteriormente anunciado – tal factualidade relevante para a boa decisão da causa, e não lhes concedendo a possibilidade de produzir a prova que entendessem relevante, a mesma constituirá decisão-surpresa, por violação do princípio do contraditório.

III- A violação das regras de direito probatório material é de conhecimento oficioso, devendo o Tribunal da Relação modificar a matéria de facto em conformidade com o respeito por essas normas, em substituição do Tribunal recorrido, desde que os autos forneçam todos os elementos necessários (cfr. art.ºs 662º, nº 1 e 665º nº 2 do NCPC).

IV- A prova da compropriedade está exclusivamente dependente do título, pelo que, o afastamento da “presunção” de igualdade das quotas, que decorre da previsão do nº 2 do art.º 1403 CC só poderá resultar dos elementos constantes do próprio título de aquisição e já não por elementos exteriores ao mesmo, sendo por isso inadmissível a produção de prova testemunhal, pericial ou qualquer outra para demonstração de que a comparticipação de um dos comproprietários na aquisição do imóvel foi superior à dos demais, porque, por exemplo suportou uma parte superior do preço do mesmo.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"3.2. Do mérito do recurso
3.2.2. Da decisão surpresa, por violação do princípio do contraditório

Sustenta, porém, e ainda a apelante que a sentença traduziu, para si, decisão-surpresa, porquanto o mérito da acção foi decidido com base em matéria não incluída nos temas da prova nem abrangida pelo identificado objecto do litígio.

A apelante qualifica o arguido vício como nulidade de procedimento, enquadrável no regime prescrito no art.º 195º, nº 1 do NCPC.

Com efeito, nesta sede, a recorrente sustenta que a decisão se sustentou em matéria de facto não incluída nos temas da prova e que sobre ela não houve a discussão que o processo judicial pressupõe, porquanto nenhuma das partes ofereceu ou produziu prova sobre essa factualidade, nem foram advertidas pelo tribunal a quo quanto a uma possível ampliação dos temas da prova previamente enunciados, concedendo-lhes a possibilidade de produzir a prova que entendessem relevante.

Neste contexto, o vício apontado à decisão recorrida emerge de actos ou omissões praticadas pelo juiz no decurso da audiência de julgamento, que configuram violação de deveres processuais e que influem na decisão final da causa.

Ou seja, tal vício assim circunscrito decorre da inobservância do contraditório no decurso da audiência de julgamento.

Note-se que o juiz não só pode, mas deve tomar em consideração todos os factos alegados pelas partes e que considere indispensáveis à boa decisão da causa (cfr. art.º 5º, nºs 1 e 2, do NCPC). Todavia, se, como no caso, alguns desses factos foram expressamente excluídos da enunciação dos temas de prova, a consideração posterior de tais factos na sentença implicava necessariamente a observância prévia do princípio do contraditório, plasmado no art.º 3º, nº 3, do NCPC.

Com efeito, o referido nº 3, do art.º 3º, veio ampliar o âmbito da regra do contraditório, tradicionalmente entendido como garantia de uma discussão dialética entre as partes ao longo do desenvolvimento do processo, trazendo para o nosso direito processual uma concepção mais alargada, visando-se prevenir as “decisões surpresa”.

Tal sentido amplo atribuído ao princípio do contraditório - que impõe que seja concedida às partes a possibilidade de, antes de ser proferida a decisão, se pronunciarem sobre questões suscitadas oficiosamente pelo juiz em termos inovatórios - já há muito vinha sendo afirmado pela jurisprudência constitucional, especialmente no processo penal, devido às garantias de defesa do arguido.

A referida concepção ampla do princípio do contraditório, também já há muito defendida por Lebre de Freitas (vide, Inconstitucionalidades do Código de Processo Civil, em Revista da Ordem dos Advogados, 1992, I, p. 35 a 38) para o processo civil, traduz um direito à fiscalização recíproca ao longo do processo visto como uma “garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, direta ou indireta, com o objeto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão” (cfr. Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, in Código de Processo Civil (anotado), vol. I, p. 8).

Como decorre do ora exposto, o princípio do contraditório materializa-se, pois, em todas as fases do processo – quer ao nível dos factos, quer ao da prova, quer ao do direito propriamente dito - tendo as partes, em todos estes níveis, direito a, de modo participante e activo, influenciar a decisão, tentando convencer, em cada momento e ao longo de todo o processo, o julgador do acerto da sua posição.

Com este princípio quis-se impedir que as partes pudessem ser surpreendidas, no despacho saneador ou na decisão final, com soluções inesperadas, por não discutidas no processo, as quais, no regime anterior, eram permitidas.

Pretendeu-se, pois, proibir as decisões-surpresa, embora sem retirar a liberdade e independência que o juiz tem, em termos absolutos, de subsumir, seleccionar, qualificar, interpretar e aplicar as normas jurídicas que bem entender, aplicando o direito aos factos de modo totalmente autónomo.

Apenas são proibidas as decisões baseadas em fundamento que não tenha sido previamente analisado pelas partes e com o qual elas não pudessem contar. A surpresa que se visa evitar não se prende com o conteúdo, com o sentido, da decisão em si mas com a circunstância de se decidir uma questão não prevista. Visa-se evitar a surpresa de se decidir uma questão com que se não estava a contar.

Tal solução legal confere ao juiz possibilidade de uma maior ponderação e contribui para uma maior eficácia e satisfação das partes ao verem, com o seu contributo, mais rapidamente resolvidos os seus interesses em litígio.

Assim, o exercício do contraditório é, sempre, justificável e desejável se puder gerar o efeito que com ele se pretende – permitir que a pronúncia das partes possa influenciar a decisão do Tribunal.

Na estruturação de um processo justo o tribunal deve prevenir e, na medida do possível, obviar a que os pleiteantes sejam surpreendidos com decisões para as quais as suas exposições, factuais e jurídicas, não foram tomadas em consideração (cfr. ac. da RC de 13.11.2012, processo nº 572/11.4TBCND.C1, in www.dgsi.pt).

Em obediência ao princípio do contraditório e salvo em casos de manifesta desnecessidade devidamente justificada, o juiz não deve proferir nenhuma decisão, ainda que interlocutória, sobre qualquer questão, processual ou substantiva, de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que previamente tenha sido conferida às partes, especialmente àquela contra quem é ela dirigida, a efectiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar.

No caso que nos ocupa, como já fomos adiantando, afigura-se-nos que existia o dever de audição prévia das partes relativamente à apreciação da factualidade em causa na sentença, na medida em tendo a mesma sido expressamente afastada da enunciação dos temas de prova, as partes não podiam contar que a mesma viesse a ser apreciada e tomada em consideração na sentença entretanto proferida.

Tal comportamento processual não só não observa o princípio do contraditório, mas também e de certa forma coloca em causa o imperativo da segurança jurídica. 

Com efeito e como muito bem se sumaria no ac. da RP de 23.06.2021 (relatado por Nelson Fernandes e acessível in www.dgsi.pt): “I - O processo judicial surge como um imperativo de segurança jurídica, ligado a duas exigências, assim a determinabilidade da lei e a previsibilidade do direito. II - O processo justo e equitativo é também aquele cuja regulação prevê que a sequência de atos que formam o processo esteja pré-determinada ao pormenor pelo legislador, em termos de ser possível assegurar com previsibilidade que as partes são titulares de poderes, deveres, ónus e faculdades processuais e que o processo é destinado a finalizar certo tipo de decisão final. III - A garantia do processo equitativo comporta, também, uma dimensão de segurança e previsibilidade dos comportamentos processuais, tutelando adequadamente a possibilidade de conhecimento das normas com base nas quais são praticados os atos e formalidades processuais, assim como as expectativas em que as partes fazem assentar a sua estratégia processual, sendo assim um processo equitativo também um processo previsível. IV - O processo equitativo, como “justo processo”, supondo que os sujeitos do processo usem os direitos e cumpram os seus deveres processuais com lealdade, em vista da realização da justiça e da obtenção de uma decisão justa, determina também, por correlação ou contraponto, que o juiz que dirige o processo não pratique atos no exercício dos poderes processuais de ordenação que possam criar a aparência confiante de condições legais do exercício de direitos, com a posterior e não esperada projeção de efeitos processualmente desfavoráveis para os interessados que depositaram confiança no rigor e na regularidade legal de tais atos.”.

Por conseguinte, e não obstante considerarmos que os despachos de fixação do objecto do litígio e de enunciação dos temas não formam caso julgado, a verdade é que tendo o tribunal a quo evidenciado através da posição assumida nesses despachos que não iria apreciar a factualidade em causa, gerou nas partes confiança e expectativa nesse sentido. 

Não tendo o julgador que presidiu ao julgamento - em contrário do anunciado anteriormente - advertido as partes que considerava tal factualidade importante para a boa decisão da causa e que a iria tomar em consideração na sentença, não se pode deixar de concluir pela efectiva violação do princípio do contraditório, com influência na decisão da causa.

Assim, a não observância do contraditório, no sentido de não se ter concedido às partes ao menos a possibilidade de se pronunciarem sobre a ampliação dos temas de prova, na medida em que influi no exame ou decisão da causa, constitui uma nulidade processual, nos termos do art.º 195º, do NCPC.

Ora, as nulidades enquadráveis na aludida norma têm de ser arguidas pela parte interessada, sob pena de ficarem sanadas, conforme decorre do preceituado nos art.ºs 197º e 199º, do NCPC.

Todavia, estando a decisão surpresa coberta por decisão judicial, como acontece na situação em apreço (a mesma só se revelou com a prolação da sentença recorrida), é entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência que nada obsta a que a mesma seja invocada e conhecida em sede de recurso [vide, neste sentido, na doutrina: Alberto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo, p. 507; Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, p. 183; Antunes Varela, in Manual de Processo Civil, 2ª edição, , p. 393; e Anselmo de Castro, in Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, p. 134; e na jurisprudência: o ac. do STJ de 5.07.2022 (relatado por Ricardo Costa), o ac. da RL de 11.07.2019 (relatado por Ana Azeredo Coelho); o ac. da RC de 3.05.2021 (relatado por Moreira do Carmo); o ac. da RP de 13.09.2022 (relatado por Ana Lucinda Cabral);  o ac. da RE de 9.02.2023 (relatado por Paula do Paço) e o ac. desta Relação de Guimarães de 21.05.2015 (relatado por Ana Cristina Duarte), todos consultáveis in www.dgsi.pt].

Atento todo o exposto, dúvidas não restam que assiste razão à apelante neste particular, julgando-se verificada a nulidade, ainda que parcial, da sentença recorrida, por violação do princípio do contraditório.

Importa averiguar agora das consequências de tal nulidade.

Prescreve o art.º 195º, nº 2, do NCPC o seguinte: “Quando um acto tenha de ser anulado, anulam-se também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente; a nulidade de uma parte do acto não prejudica as outras partes que dela sejam independentes.”. E ascescenta o nº 3, da mesma norma que “Se o vício de que o acto sofre impedir a produção de determinado efeito, não se têm como necessariamente prejudicados os efeitos para cuja produção o acto se mostre idóneo.”.

Este sistema remete-nos, pois, para uma análise casuística, susceptível de só invalidar o acto que não possa, de todo ser aproveitado (vide, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, p. 235). 

No caso, afigura-se-nos que a verificação da nulidade acima assinalada não implica a devolução dos autos à 1ª instância para cumprimento do contraditório omitido, mas antes que se desconsidere e elimine a factualidade indevidamente inserida no elenco dos factos provados (assim, Paulo Faria e Ana Luísa Loureiro, in Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, p. 606 e ac. da RP de 21.02.2022, relatado por Eugénia Cunha e acessível in www.dgsi.pt) e ainda que se conheça do restante objecto da apelação, conforme prevê e permite o art.º 665º, nº 1, do NCPC, o que passaremos a fazer de seguida."

3. [Comentário] Ao arrepio do entendimento que se tornou prevalecente, a RG qualifica a decisão-surpresa como uma nulidade processual (art. 195.º, n.º 1). Salvo o devido respeito, a RG esqueceu-se de que não tem competência para apreciar as nulidades processuais, já que estas devem ser reclamadas perante o próprio tribunal que as cometeu (art. 196.º CPC). Assim, o próprio acórdão da RG é nulo por excesso de pronúncia, porque conhece de uma matéria para a qual não tem competência decisória (art. 615.º, n.º 1, al. d), e 666.º, n.º 1, CPC) (para maiores desenvolvimentos clicar aqui).

A decisão tomada pela RG também peca por ser demasiado formal, porque sem cuidar da importância dos factos considerados pela 1.ª instância para a "justa composição do litígio", pura e simplesmente desconsidera esses factos.

MTS