"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))
29/06/2024
Bibliografia (1134)
28/06/2024
"A usucapião é um facto aquisitivo de um direito real de gozo" -- qual das palavras não se percebe?
I. 1. Num paper hoje publicado no Blog, o Cons. Urbano Dias
reconhece que, apesar de a usucapião ser um título de aquisição da
propriedade,
"[...] nada pode impedir que os RR., pretendendo obstar à procedência da acção intentada pelos AA., para além de negarem os factos por estes alegados (“o que o AA. dizem não é a verdade”), aleguem os factos, todos os factos, conducentes à aquisição por usucapião, que, a serem estes dados como provados, obriga o juiz a não dar como provados os que foram alegados na petição inicial pelos AA. e, em consequência, a julgar a acção improcedente".
Salvo o devido respeito, mesmo sem entrar em todos os seus pormenores desta afirmação, não se pode acompanhar a solução proposta.
2. Antes do mais, convém lembrar a noção de usucapião que consta do art. 1287.º CC: "A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião". É, por isso, bem claro que a usucapião é um facto aquisitivo de um direito real de gozo e, em especial, da propriedade, como, aliás, é comprovado pelo estabelecido no art. 1316.º CC.
Como qualquer facto aquisitivo (ou constitutivo), a usucapião só pode ser alegada pelo demandado através da dedução de um pedido reconvencional (art. 266.º, n.º 2, CPC (e, em especial, n.º 2, al. d)). É algo que não pode merecer nenhuma dúvida.
Por tudo isto, não se pode dizer que existam quaisquer incertezas sobre a caracterização da usucapião e sobre o modo de o demandado a fazer valer em juízo. Tudo é claro, indiscutível e coerente.
Perante estes dados, não se torna fácil criticar uma posição que se desvia do que é certo e irrefutável. O que está em causa não é uma questão de opinião e, portanto, uma questão em relação à qual se possam esgrimir argumentos a favor ou contra, mas antes uma posição que contraria premissas indiscutíveis fornecidas pelo ordenamento jurídico. É como pretender argumentar contra o entendimento de que a contradição entre a causa de pedir e o pedido não origina a ineptidão inicial ou que a falta de pronúncia sobre uma questão levantada pelas partes não origina a nulidade da sentença por omissão de pronúncia. Para além da incompatibilidade com os dados legais, os argumentos invocáveis não são muitos.
Ainda assim, não deixa de se fazer um esforço para demonstrar que a usucapião não pode cumprir outra função no processo (e, em especial, numa acção de reivindicação) que não a de facto aquisitivo de um direito real e, em particular, da propriedade. Para simplificar a exposição, recorre-se, de agora em diante, apenas à propriedade.
3. a) O disposto nos art. 1287.º e 1316.º CC é absolutamente claro: a usucapião é um título de aquisição da propriedade. Assim, a falar-se de um efeito impeditivo da usucapião (o que não tem qualquer apoio legal), isso só poderia suceder como reflexo do reconhecimento da propriedade com base na própria usucapião. Isto é, a insistir-se em falar de um efeito impeditivo (ou até, como já sucedeu na jurisprudência, de um efeito extintivo) da usucapião, isso só poderia decorrer do reconhecimento da propriedade do demandado através da usucapião. Sendo assim, a aceitar-se que é possível atribuir uma eficácia impeditiva à usucapião, isso só pode suceder como reflexo do reconhecimento da aquisição da propriedade pelo demandado, nunca como um efeito autónomo desta aquisição.
Este é um dos mais evidentes equívocos da orientação em apreciação. Efectivamente, a pretender atribuir-se à usucapião a produção de um efeito impeditivo, este efeito nunca pode ser um efeito autónomo do efeito aquisitivo da propriedade. Primeiro, o réu é reconhecido, com fundamento na usucapião, como proprietário; depois, com base neste efeito aquisitivo, fica assente que o título de aquisição alegado pelo autor reivindicante, mesmo que exista e seja reconhecido, não pode produzir nenhuns efeitos. Por exemplo: apesar de se reconhecer que o autor comprou o imóvel, não pode ser reconhecido como proprietário, porque o demandado adquiriu a propriedade desse imóvel por usucapião. Portanto, a usucapião nunca produz um autónomo efeito impeditivo; antes de produzir este alegado efeito impeditivo tem de produzir o necessário efeito aquisitivo. Daí que a usucapião ou vale no processo como facto aquisitivo da propriedade ou não pode cumprir nenhuma outra função no processo.
Contra esta crítica poder-se-ia objectar que o demandado, ao invocar a usucapião como facto impeditivo, está implicitamente a pedir que seja reconhecido como proprietário. Trata-se de uma objecção sem sentido. O reconhecimento da aquisição da propriedade através da usucapião tem de ser solicitado através da dedução de um pedido reconvencional (art. 266.º, n.º 2, al. d), CPC). Como é claro, este reconhecimento explícito não pode ser substituído por nenhum reconhecimento implícito, desde logo porque isso teria como consequência retirar qualquer sentido prático à imposição da dedução do pedido reconvencional.
b) Recorde-se que a usucapião também pode ser invocada pelo demandante como causa de pedir do seu pedido de reivindicação. Pergunta-se: alguma vez se aceitou que o demandante pode pedir apenas o reconhecimento de que se verificou a usucapião, de molde a "impedir" o reconhecimento do réu como proprietário, sem simultaneamente pedir o reconhecimento da aquisição da propriedade?
Não é preciso responder, mas interessa perceber porque não é possível ao
demandante invocar a usucapião sem, ao mesmo tempo, pedir o efeito aquisitivo
que dela decorre. A razão é muito simples: é porque a usucapião produz um único
efeito, que é a aquisição da propriedade; sendo assim, esse feito ou é pedido
ou não é pedido pelo demandante. O que não pode suceder é que seja pedido pelo
demandante algo de diferente do efeito de aquisição da propriedade. A usucapião produz um efeito legal perfeitamente definido nos art. 1287.º e 1316.º CC, pelo que não está na disponibilidade dessa parte alterar esse efeito ou substituí-lo por qualquer outro.
Se é assim para o demandante, não se percebe como é que pode não ser assim
para o demandado, ou seja, como é que o demandado pode invocar a usucapião sem,
ao mesmo tempo, extrair dele o efeito de aquisição da propriedade (e sem o
invocar através de um pedido reconvencional). Em última análise, seria o princípio
da igualdade das partes que seria violado, dado que se permitiria ao réu o que -- aliás, com toda a justificação e de acordo com todos os parâmetros processuais -- não se permite ao autor.
c) A usucapião é um facto aquisitivo da propriedade, naturalmente uno e indivisível. Na sequência da invocação da usucapião só se pode invocar um efeito: a aquisição da propriedade. Isto tem de valer em qualquer processo e para qualquer das partes.
É por isso que permitir a invocação da usucapião como um facto impeditivo pelo demandado padece de vários equívocos, sendo os mais patentes o
de se aceitar que a usucapião cumpra no processo uma função diferente da de facto aquisitivo
e independente do reconhecimento do seu efeito aquisitivo, bem como o de
se admitir que a usucapião possa ser invocada em juízo sem ser através da
reconvenção.
4. Importa ainda recordar que o art. 1316.º CC enuncia, além da usucapião, outros títulos de aquisição da propriedade. Imagine-se que, em vez de o réu demandado na acção de reivindicação invocar a usucapião, esse demandado alega a aquisição da propriedade por contrato de compra e venda. Cabe perguntar: alguma vez se entendeu que esse demandado pode invocar essa aquisição contratual, não para ser reconhecido como proprietário, mas para obstar à procedência da acção de reivindicação?
Novamente, não é preciso responder. Fica então sem se perceber o que há de especial na usucapião que justifica um tratamento diferenciado dos demais títulos de aquisição da propriedade. Ou será que se quer estender a solução que é proposta para a usucapião aos demais títulos de aquisição da propriedade e que, afinal, todos estes títulos podem valer apenas como factos impeditivos da procedência da acção de reivindicação? Será que se quer admitir que o demandado invoque a sua qualidade de sucessor, não para ser reconhecido como proprietário da coisa, mas antes para obstar ao reconhecimento do autor como proprietário?
5. Do exposto decorre que a invocação pelo demandado numa acção de reivindicação de um efeito impeditivo decorrente da usucapião não pode produzir nenhuns efeitos. Não só se invoca um efeito desconhecido da ordem jurídica (onde se consagra nesta ordem que a usucapião produz um efeito impeditivo?), como se alega a usucapião através de um meio processual que não é o adequado.
II. 1. Refere ainda o Cons. Urbano Dias
"[...] que, na prática, o que acontece,
sobretudo, nos meios rurais, é os RR. contentarem-se apenas com a não prova do
direito dos AA. (“eles bem diziam que o prédio era deles, mas não o
provaram”)."
Não se discute a prática, mas, para além do que acima se referiu, não pode deixar de se chamar a atenção para os estranhos resultados a que ela conduz. Uma vez que a usucapião não é invocada como facto aquisitivo da propriedade, está excluído, sob pena de excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC), que o tribunal reconheça o réu como proprietário. Portanto, a consequência da referida solução é a de que a acção de reivindicação é considerada improcedente e, em concreto, a de que a coisa não é considerada nem como pertencendo ao autor, nem como pertencendo ao réu. Em termos mais simples, o resultado da acção (um "nem/nem") é a de transformar, entre as partes, a coisa numa res nulius.
O resultado é estranho e, como se referiu, a ordem jurídica fornece todos os elementos e faculta todos os instrumentos para o evitar. Basta que seja respeitado o efeito aquisitivo da usucapião e que, portanto, o demandado peça a sua produção através da dedução de um pedido reconvencional. Neste caso, o resultado da acção será, na enorme maioria das situações, o reconhecimento de uma das partes como proprietária da coisa (ou seja, em vez de um “nem/nem”, passa-se para um “ou/ou”). Não é preciso discutir qual é a solução que a ordem jurídica quer evitar e qual aquela que ela quer atingir (e para a qual, como se disse, fornece todos os elementos e faculta todos os instrumentos).
2. Visto por uma outra perspectiva, a conduta do réu que não reivindica a
coisa para si, mas pretende impedir a procedência da acção de reivindicação, também
é bastante discutível pelo ângulo da litigância de boa fé, dado que há boas razões para entender que esse réu está a fazer um uso reprovável dos meios processuais (art. 542.º,
n.º 2, al. d), CPC). O réu alega um título de aquisição da propriedade, não
para obter um resultado favorável para si, mas antes para obstar a um resultado
favorável ao autor. Não é certamente impossível admitir que o demandado que
assim actua em juízo litiga de má fé, porque, no fundo, utiliza a alegação de um facto
aquisitivo para obter uma finalidade distinta de um efeito aquisitivo.
Importa lembrar que, quem invoca a usucapião, alega necessariamente que é proprietário da coisa (precisamente porque a adquiriu através da usucapião). Perante isto, como se pode admitir, nos parâmetros de boa fé das partes que devem orientar o processo civil, que quem é proprietário possa utilizar essa sua qualidade, não para obter o reconhecimento do seu direito, mas antes para obstar ao reconhecimento do autor como proprietário?
É, aliás, muito fácil demonstrar que a alegação pelo demandado de um efeito impeditivo da usucapião é auto-contraditória. O demandado invoca que é proprietário da coisa, porque a adquiriu por usucapião (a alegação da usucapião só pode ter este efeito), mas, ao mesmo tempo, “proíbe” o tribunal da acção de o reconhecer como proprietário.
III. Importa concluir este breve apontamento.
A solução agora criticada mostra, até pelas estranhas consequências a que conduz para as partes e para a ordem jurídica, que o que é equivocado é precisamente o ponto de partida: admitir-se que o réu pode transformar um facto aquisitivo num facto impeditivo e pode querer que a usucapião cumpra em juízo qualquer outra função que não a de aquisição da propriedade.
MTS
Bibliografia (1133)
Jurisprudência 2023 (202)
Ouvidos os registos áudio da prova produzida, não podemos deixar de alterar a decisão de facto impugnada. Se os depoimentos invocados e transcritos pelo apelante não permitem considerar provada a matéria pretendida pelo mesmo, em toda a sua extensão, também dos meios de prova invocados pelo tribunal a quo não se pode extrair a decisão vertida na sentença.
Resumidamente, o apelante fundamenta a sua impugnação nas regras da experiência e na circunstância de:
a) a testemunha MRR (mediadora imobiliária) conhecer os réus desde data anterior à outorga da escritura de justificação;b) a testemunha MRR ter descrito “o primeiro réu LS como uma pessoa doente, fragilizado e vulnerável”;c) terem decorrido quatro meses entre a escritura de justificação e a escritura de compra e venda outorgada pelos réus.
Estas circunstâncias são manifestamente insuficientes para que se possa dar (positivamente) como provado que a ré M teve intervenção – designadamente, como instigadora – na decisão do réu de outorgar a escritura de justificação; não são sequer suficientes para que se possa considerar provado que, antes da outorga do contrato de compra e venda, conhecia a falsidade do que foi declarado nessa escritura. Mas a prova invocada pelo tribunal a quo também é insuficiente para que se possa concluir, com segurança, pela verificação do facto oposto. Na verdade, nenhuma prova concludente e credível foi produzida sobre esta factualidade – recorde-se que apenas se discute a parte final do ponto 28 –, sendo que os únicos depoimentos com ela relacionados – declarações de parte e testemunho de MRR – são, em geral, como bem assinalou o tribunal a quo, pouco firmes, coerentes e credíveis.
A este respeito, deteta-se uma aporia no silogismo apresentado pelo tribunal a quo. Ainda que se tenha por “transparente a razão da aquisição do prédio aqui em causa [pela ré M], para revenda”, e se tenha por seguro que “nada nos autos nos permit[e] concluir ou até indiciariamente sustentar que a compra foi feita com o intuito de diluir em terceiro a ‘marosca’”, nem por isso se poderá dar por positivamente provado que a ré atuou “confiando, naturalmente, que o transmitente era seu legítimo proprietário e possuidor e que o negócio que estava a fazer era absolutamente lícito, sem ofensa de quaisquer putativos direitos ou interesses de quaisquer terceiros”. Apenas se poderia dar por não provado exatamente o que o tribunal a quo referiu (embora empregando termos distintos): “a compra foi feita com o intuito de diluir em terceiro a ‘marosca’”. Da circunstância de se entender que não foi feita prova de um facto positivo – afirmação da existência de conluio – não se pode, num salto lógico, retirar que foi feita prova do facto do facto negativo contrário – negação da existência de conluio –, pois esta conclusão só poderia assentar na prova concludente deste facto contrário.
Em suma, pelas razões expostas, altera-se a decisão de facto, nela passando a constar, no ponto em análise:
28 – Em 2 de fevereiro de 2021, a ré M, por escritura pública, declarou adquirir ao réu LS, declarando este vender, além do mais, o prédio identificado em “DOIS” da escritura referida no ponto 1 – factos provados.
No leque de factos não provados passa a constar:
67 – Aquando da outorga da escritura pública referida no ponto 28 – factos provados –, a ré M confiava que o transmitente era legítimo proprietário e possuidor dos prédios adquiridos, e que o negócio que estava a fazer era absolutamente lícito, sem ofensa de quaisquer putativos direitos ou interesses de quaisquer terceiros."
É precisamente pela mesma lógica utilizada no acórdão que a improcedência de uma acção de apreciação negativa ("não declaração de que não") não pode equivaler à procedência de uma acção de apreciação positiva ("declaração de que sim").
MTS
27/06/2024
Jurisprudência 2023 (201)
[MTS]
26/06/2024
Jurisprudência europeia (TJ) (307)
1) O artigo 10.°, alínea b), i), do Regulamento (CE) n.° 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.° 1347/2000,
deve ser interpretado no sentido de que:
esta disposição não deixa de ser aplicável apenas pelo facto de ter sido solicitado a uma autoridade central de um país terceiro que executasse um processo de regresso de uma criança ao abrigo da Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, celebrada em Haia em 25 de outubro de 1980, e de esse processo ter falhado.
2) O artigo 10.°, alínea b), i) do Regulamento n.° 2201/2003
deve ser interpretado no sentido de que:
não está abrangido pelo conceito de «pedido de regresso», na aceção desta disposição, nem um pedido destinado ao regresso da criança a um Estado‑Membro diferente do Estado‑Membro em que essa criança tinha a sua residência habitual imediatamente antes da sua deslocação ou retenção ilícitas, nem um pedido de guarda da referida criança instaurado nos órgãos jurisdicionais desse Estado‑Membro.
3) O artigo 11.°, n.os 6 a 8, do Regulamento n.° 2201/2003
deve ser interpretado no sentido de que:
não se aplica aquando da execução de um processo de regresso de uma criança, ao abrigo da Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, celebrada em Haia em 25 de outubro de 1980, entre um país terceiro e um Estado‑Membro em cujo território essa criança se encontra na sequência de uma deslocação ou retenção ilícitas.
Bibliografia (1132)
Jurisprudência 2023 (200)
1. O sumário de STJ 16/11/2023 (1044/18.1T8VNF-A.G1.S1) é o seguinte:
II. Nos recursos de revista que apenas são admissíveis por se fundarem em violação de caso julgado, é jurisprudência assente a restrição da intervenção do Supremo Tribunal de Justiça à verificação desse fundamento.
III. Invocando-se que a sentença proferida nos embargos de executado violou o caso julgado formado pela sentença proferida na acção declarativa, que constitui o título executivo, há que interpretar a primeira sentença, com o objectivo de determinar qual é o âmbito desse caso julgado.
IV. A interpretação de uma sentença obriga a considerar, além da sua parte decisória, a respectiva fundamentação o contexto, os antecedentes e outros elementos que se revelem pertinentes; para além disso, e porque se trata de um acto formal, aliás particularmente solene, cumpre garantir que o sentido apurado tem a devida tradução no texto.
Não sendo admissível nos termos gerais, uma vez que o valor de € 5 500,01 não excede manifestamente a alçada da Relação (n.º 1 do artigo 629,º do Código de Processo Civil), o presente recurso só será admissível se efectivamente ocorrer violação de caso julgado (artigo 854.º. e n.ºs 1 e 2, a) do artigo 629.º do Código de Processo Civil). Aqui, foi invocada a violação de caso julgado formal (cfr., expressamente, a concl . VIII das alegações de revista). [...]
Passar-se-á, portanto, a determinar se o acórdão recorrido violou o caso julgado formado pela sentença que aqui constitui título executivo, que baliza os termos da execução (n.º 5 do artigo 11.º do Código de Processo Civil), não sem antes esclarecer que, ainda que a revista seja admissível, o efeito do recurso é meramente devolutivo, porque a revista só tem efeito suspensivo nas questões relativas ao estado das pessoas (n.º 1 do artigo 676.º do Código de Processo Civil), e, ainda, que a violação de caso julgado é fundamento de revista “normal” (al. a) do n.º 2 do artigo 629.º do Código de Processo Civil); assim sendo, que não se põe sequer a questão de poder ser fundamento de revista excepcional (que, aliás, é um recurso de revista, que só tem de excepcional a sua admissibilidade).
5. O fundamento da exequibilidade de uma sentença condenatória, ou seja, “que condene(m) no cumprimento de uma obrigação” (artigos703.º, n.º 1, a) e 705.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil) reconduz-se à força probatória do caso julgado material. Averiguar qual é a extensão (objectiva, que é o que agora interessa) desse caso julgado é imprescindível para se poder determinar se uma decisão posterior o violou; o que implica a respectiva interpretação. Interpretar o conteúdo de uma sentença de mérito é pressuposto indispensável da determinação do âmbito do caso julgado material, naturalmente.
Mas essa averiguação é igualmente indispensável quando se tratar da força de caso julgado formal. O fundamento do caso julgado formal é a disciplina processual, que se manifesta agora na lógica da preclusão: o caso julgado formal é uma manifestação da preclusão. Por isso se diz habitualmente que o primeiro efeito da interposição de um recurso é, justamente, impedir o caso julgado formal da decisão de que se recorre.
Ora, quer numa perspectiva, quer noutra, saber se uma decisão judicial contradiz uma decisão já transitada, proferida no mesmo processo ou num processo anterior, implica naturalmente determinar o âmbito do que não pode ser contrariado – o que é o mesmo que dizer o âmbito do caso julgado –, sob pena de, no mínimo, ineficácia da segunda decisão (n.ºs 1 e 2 do artigo 625.º do Código de Processo Civil). Esta desconsideração da segunda decisão é a protecção última do caso julgado, a considerar quando falhou a barreira da excepção de caso julgado, formal ou material.
Sabe-se que, para o efeito, não basta considerar a parte decisória da sentença, cabendo tomar na devida conta a respectiva fundamentação (“é ponto assente na doutrina que os fundamentos da sentença podem e devem ser utilizados para fixar o sentido e alcance da decisão contida na parte final da sentença, coberta pelo caso julgado”, escrevem Antunes Varela, J. M. Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra, 1985, pág. 715, como se recorda no acórdão de 29 de Abril de 2010, www.dgsi.pt, proc. n 102/2001.L1.S1), o contexto, os antecedentes e outros elementos que se revelem pertinentes (acórdão de 8 de Junho de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 25.163/05.5YLSB.L1.S1). Para além disso, e porque se trata de um acto formal, aliás particularmente solene, cumpre garantir que o sentido tem a devida tradução no texto (cfr., com o devido desenvolvimento, o acórdão de 3 de Fevereiro de 2011, www.dgsi.pt, proc. nº 190-A/1999.E1.S1 e o acórdão de 25 de Junho de 2009, www.dgsi.pt, proc. nº 351/09.9YFLSB).
6. Resulta das alegações dos recorrentes que a violação do caso julgado formado pela sentença exequenda respeita a dois pontos:
– à extensão da parede, ou muro, a reparar – se a parede ou muro inicialmente construído (como se entendeu no acórdão recorrido, confirmando a sentença proferida nos embargos), se apenas a parte ainda erigida (como consideram os recorrentes),
– à forma da reparação, definida na mesma sentença e confirmada pelo acórdão recorrido como implicando “recurso a betão ciclópico (betão simples e pedras) de 30 a 40 cm de espessura ou outra técnica que se mostre adequada”.
No que agora releva, tendo em conta a procedência parcial da apelação, a sentença exequenda pronunciou-se nos seguintes termos, em grande parte transcritos no acórdão recorrido:
“Pediu ainda a A. que os RR. fossem condenados a fazer as obras que forem necessárias, no valado referido nesta acção, de forma a evitar desmoronamentos, nomeadamente, reparando a parede por eles construída na extrema nascente do seu prédio, junto à garagem do prédio referido em 1). Efectivamente, ficou provado que os RR. construíram, na extrema nascente do valado referido, junto à linha divisória dos prédios, uma parede composta por pedras de granito sobrepostas e elementos de betão, numa extensão de cerca de três metros. Também ficou provado que tal parede não apresentava constituição firme; igualmente se demonstrou que, por via disso, as terras e pedras que compõem o valado e essa mesma parede deslizaram, tendo ultrapassado, em alguns locais, a linha que divide os dois prédios. Face ao exposto, forçoso é considerar que a parte da referida parede que ainda se mantém erigida oferece perigo de ruir, nos termos previstos no art. 1350º do CC. Mais: face à natureza e à morfologia do local em causa, dessa ruína poderão resultar ainda mais danos que os já verificados. Assim, nos termos do mencionado preceito, impõe-se condenar os RR. a levar a cabo as providências necessárias para eliminar o perigo de derrocada da parte da parede ainda erigida. Assim, deverão os RR. ser condenados a reparar a referida parede. (…)”
Da leitura atenta do texto da parte decisória, à luz da respectiva fundamentação acabada de transcrever, bem como da consideração da finalidade tida em conta com a condenação, resulta que esta condenação teve como objecto a parede ou muro inicialmente construído (identificado no ponto 21 da matéria de facto considerada na sentença exequenda).
Assim resulta:
– do texto da condenação («Condeno os RR. AA e BB a reparar a parede referida em 21) e 22) dos “factos provados”»),
– da justificação para que a obrigação de reparar abranja toda a parede ou muro identificada em 21), pois se entendeu que a deficiente construção do muro provocou a derrocada já verificada e conduz ao perigo iminente de desmoronamento da parte “que se mantém erigida” : “Face ao exposto” (recorde-se, à razão do desmoronamento já verificado), “forçoso é considerar que a parte da referida parede que ainda se mantém erigida oferece perigo de ruir (…).”
– da finalidade tido com a condenação: evitar a derrocada da parte que ainda se mantém e de mais danos que dela poderão resultar: ““Face ao exposto, forçoso é considerar que a parte da referida parede que ainda se mantém erigida oferece perigo de ruir. Mais: face à natureza e à morfologia do local em causa, dessa ruína poderão resultar ainda mais danos que os já verificados”;
Note-se que o sentido assumido pelas instâncias, nos embargos de executado, corresponde ao sentido literal da condenação, que remete expressamente para «a parede referida em 21) e 22) dos ‘factos provados”». Está assim respeitada a natureza de acto formal da sentença. [...]
8. Não ocorrendo violação de caso julgado, o presente recurso não é admissível."
25/06/2024
Jurisprudência uniformizada (68)
O atestado médico de incapacidade multiuso, emitido para pessoas com deficiência de acordo com o Decreto-Lei n.º 202/96, de 21 de Outubro, é um documento autêntico, que, de acordo com o artigo 371.º, n.º 1, em conjugação com o artigo 389.º, do Código Civil, faz prova plena dos factos praticados e percepcionados pela «junta médica» (autoridade pública) competente e prova sujeita à livre apreciação do julgador quanto aos factos correspondentes às respostas de avaliação médica e de determinação da percentagem de incapacidade da pessoa avaliada.
Jurisprudência 2023 (199)
I. O sumário de RE 23/11/2023 (1355/23.4T8FAR.E1) é o seguinte:
"No presente inventário aberto por óbito de (…) e de (…) proposto por (…) contra (…) e (…), com incidente de inoficiosidade deduzido, o requerente veio interpor recurso da decisão de indeferimento liminar.*O requerente pretende a redução, por inoficiosidade, para preenchimento da legítima de herdeiro legitimário, por ofensa da legítima, de liberalidade (doação) efectuada pelos seus pais, (…) e (…), aos seus netos, filhos do aqui Autor.
Ou, a restituição do bem doado ao património hereditário, com todas as demais consequências legais dai decorrentes, no montante total de 206.449,35 € (duzentos e seis mil quatrocentos e quarenta e nove euros e trinta e cinco cêntimos), para que possa ser preenchida a parte destinada ao herdeiro legitimário. [...]* *O requerente intentou acção declarativa, com processo comum, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Central Civil de Faro, Juiz 1, sob o Processo n.º 3772/22.8T8FAR, a qual por despacho proferido em 23/11/2022, viu ser-lhe tal pretensão liminarmente indeferida, julgando verificada a excepção dilatória de nulidade, por erro na forma do processo.*Face à decisão judicial proferida, após intentar providência cautelar de arresto, o Autor (…) intentou acção especial de inventário (competência exclusiva) onde deduziu o incidente de redução de liberalidade por inoficiosidade, a qual correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Local Civil de Faro, Juiz 1, sob o Processo n.º 3888/22.0T8FAR, a qual por despacho proferido em 16/01/2023, foi indeferido liminarmente, por manifesta improcedência do pedido, que deveria seguir a forma de processo comum.*Intentada de novo acção de processo comum, que correu termos junto do Tribunal Judicial da Comarca de Faro sob o processo 1186/23.1T8FAR, foi indeferida liminarmente a petição inicial apresentada, julgando-se verificada a excepção dilatória de nulidade, por erro na forma do processo.*Nos presentes na parte que assume pertinência para a justa composição do litígio, foi proferido despacho com o seguinte conteúdo: «não havendo mais do que um herdeiro legitimário, e interessando apenas a este a redução de liberalidades por inoficiosidade – pois não tem com quem mais partilhar os bens – não há operações de partilha a fazer, pelo que deverá ser indeferido o requerimento inicial para partilha de bens (processo de inventário) e bem assim o respectivo incidente.Em face de todo o exposto, indefere-se liminarmente o requerimento apresentado».
Se tal vier a suceder, a anomalia não é da responsabilidade do Autor e o sistema tem de lhe dar uma solução. Perante a falta de resposta desse sistema e perante a lacuna nele existente, sugere-se a aplicação analógica do disposto no art. 110.º, n.º 2, CPC: a forma de processo é determinada pelo Presidente da Relação a cuja circunscrição pertencem os tribunais em conflito quanto à forma do processo.
24/06/2024
Jurisprudência 2023 (198)
MTS