"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



20/06/2025

Bibliografia (1204)


-- Pompili, M., Revocatoria ordinaria e concorso dei creditori (Giuffrè: Milano 2025)

-- Rosario, F., Clausole di irresolubilità per inadempimento / Autonomia privata e disponibilità del rimedio (Giuffrè: Milano 2025)

Jurisprudência 2024 (192)


Compropriedade conjugal;
acção de divisão de coisa comum


1. O sumário de RE 10/10/2024 (150/23.5T8EVR.E1) é o seguinte:

I. O processo de divisão de coisa comum é o meio próprio para o ex-cônjuge dividir o património adquirido em compropriedade por ambos os consortes no decurso de casamento sujeito ao regime da separação de bens, entretanto dissolvido por divórcio;

II. O processo de inventário subsequente a divórcio está reservado aos casos em que o regime de bens do casamento foi o da comunhão geral ou o da comunhão de adquiridos, nos quais cada cônjuge se constitui titular de um direito de meação sobre a universalidade dos bens comuns;

III. A compropriedade de bens adquiridos pelos cônjuges na pendência do casamento é uma realidade neutra relativamente à faculdade de utilizar o processo de inventário para separação de meações, na medida em que, se por um lado não consente o recurso a tal meio processual, por outro não impede que os cônjuges o utilizem, se tiverem estado casados num regime da comunhão e houver património comum a partilhar.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Vêm os presentes recursos interpostos de decisão que absolveu a Ré da instância por considerar errada a forma de processo eleita pelo Autor – acção de divisão de coisa comum – para alcançar o objectivo de dividir o património alegadamente adquirido por ambos no decurso do casamento entre ambos, sujeito ao regime da separação de bens.
A argumentação do despacho em crise apresenta os seguintes vectores:

i. O processo de inventário é o adequado a operar a divisão dos bens em compropriedade do casal (citando para o efeito a jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 28.09.2023, proferido no âmbito do proc. n.º 611/21.0T8SSB.E1 – in www.dgsi.pt).

ii. Ainda que inexistam bens comuns do casal, a abertura do processo de inventário justifica-se, também, no caso vertente, por estar alegada a existência de créditos perante terceiros, nomeadamente, entidades bancárias, relacionados com a aquisição dos imóveis (entendimento que extrai da jurisprudência dos acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães, de 07.06.2023, proferido no âmbito do processo n.º 1702/20.0T8BRG-A.G1 e do Tribunal da Relação de Lisboa de 01.06.2010, proferido no âmbito do processo n.º 2104/09.5TBVFX-A.L1-7 – ambos in www.dgsi.pt). [...]

*
Analisemos, de seguida, cada um dos elencados fundamentos.

i. Relativamente ao primeiro ponto, a especificidade do regime da separação de bens do casamento entre Autor e Ré, não permite acompanhar o entendimento perfilhado na decisão recorrida, no sentido de que o processo de inventário é o adequado a operar a divisão dos bens titulados em compropriedade pelos elementos do ex-casal.

Vejamos porquê.

De acordo com o disposto nos artigos 1688.º, 1788.º e 1789.º, n.º 1, do Código Civil, o divórcio dissolve o casamento e faz cessar as relações patrimoniais entre os cônjuges, retrotraindo-se os seus efeitos, quanto às relações patrimoniais, à data da propositura da acção ou da separação de facto fixada na sentença.

Após o divórcio, procede-se à partilha dos bens comuns, o que pode ocorrer extrajudicialmente, por acordo dos interessados, ou judicialmente, na falta de acordo, em processo de inventário (artigos 2102.º, n.º 1, do CC e 1133.º da actual redacção do CPC). [...]

O património integrado na comunhão conjugal confere a cada um dos cônjuges um direito de meação que se não confunde com o direito de compropriedade.

Na proposta de Rita Lobo Xavier (Rita Lobo Xavier, “Divórcio, o Regime de Bens e a Partilha do Património Conjugal”, in III Jornadas de Direito da Família e das Crianças Diálogo Teórico-Prático, e-book da Ordem dos Advogados e do CEJ): “A perspetiva do património coletivo considera a situação de contitularidade. Os bens comuns constituem um património coletivo na medida em que cada um dos cônjuges é contitular de um direito sobre a massa dos bens comuns, como um todo, não sendo contitular de um direito não sobre cada uma das coisas nela integradas. Cada um dos cônjuges é titular do direito a metade do mesmo (direito de meação), direito de que não podem dispor antes da dissolução do casamento, da separação de pessoas e bens ou da separação judicial de bens. (…) e que tem muitas similitudes com a que existe na situação de indivisão hereditária”.

A distinção resulta também clara na fórmula, utilizada por Pires de Lima e Antunes Varela ( Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, volume IV, 2ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1992, pág. 449.): “os bens comuns dos cônjuges constituem objecto, não duma relação de compropriedade, mas duma propriedade colectiva…”, sendo que “…na propriedade colectiva há ainda um direito uno, enquanto na compropriedade há um aglomerado de quotas dos vários comproprietários”.

A compropriedade pressupõe um título de aquisição em que todos os comproprietários intervenham.

Diversamente do que sucede nos matrimónios sujeitos aos regimes da comunhão de adquiridos ou da comunhão geral, o casamento sujeito ao regime da separação de bens não tem a aptidão de constituir património comum do casal pois cada um dos cônjuges “…conserva o domínio e fruição de todos os seus bens presentes e futuros, podendo dispor deles livremente” (artigo 1735.º do Código Civil).

Por isso, vem sendo entendimento doutrinal e da jurisprudência dos nossos tribunais superiores que o processo de inventário subsequente a divórcio está reservado aos casos em que o casamento, por força da sujeição aos regimes da comunhão geral ou de bens adquiridos, seja apto a gerar um património comum do casal (artigos 1721.º e ss. e 1732.º e ss., ambos do Código Civil). [...]

A conclusão a que se chega partindo da exposição apresentada é a de que o processo de inventário subsequente a divórcio está reservado à partilha de bens comuns, exclusivos dos regimes de comunhão de bens que permitem a constituição de um património comum do casal e um direito de meação de cada consorte sobre a universalidade desses bens.

Como o regime da separação de bens não é passível de integrar os bens adquiridos, antes ou na pendência do casamento, num património comum do casal, não se mostra preenchido pelo casamento sujeito a tal regime (da separação) um pressuposto necessário ao uso do processo de inventário subsequente ao respectivo divórcio.

A compropriedade de bens adquiridos pelos cônjuges na pendência do casamento é uma realidade distinta do património integrado na comunhão, neutra relativamente à faculdade de utilizar o processo de inventário para separação de meações, na medida em que, se por um lado não consente o recurso a tal meio processual, por outro não impede que os cônjuges o utilizem desde que tenham estado casados no regime da comunhão (geral ou de adquiridos) e haja património comum.

Esta é, aliás, a bitola que, em linha com a orientação da jurisprudência dominante (Entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.10.2019, relatado pelo Juiz Conselheiro Abrantes Geraldes no processo número 1517/13.2TJLSB.L1.S2, cujo sumário refere: “I. No regime de comunhão de adquiridos, o imóvel que ambos os cônjuges adquiriram por compra, antes do casamento, está sujeito ao regime da compropriedade, sendo cada um titular de metade, como bem próprio. (…) III. Dissolvido o casamento, o inventário pós-divórcio requerido ainda ao abrigo do artigo 1404.º, do CPC de 1961, destina-se a realizar a partilha dos bens comuns do casal, incluindo as dívidas que são comuns. IV. Numa situação em que não existem bens comuns do casal, o processo de inventário não é adequado a que um dos cônjuges exija do outro um crédito correspondente ao pagamento de metade das prestações emergentes de um contrato de mútuo que ambos celebraram antes do casamento para aquisição do bem em regime de compropriedade. No mesmo sentido, também o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 22.02.2024, relatado pela Juíza Desembargadora Eva Almeida no processo n.º 2509/22.6T8VCT.G1. [...]

Contrastando com a interpretação realizada na decisão da 1ª instância, não é a situação de compropriedade de bens que, de acordo com os fundamentos do acórdão em apreço, permite o uso do processo de inventário, mas a circunstância de, contrariamente ao caso vertente em que Autor e Ré estiveram casados no regime da separação de bens, a situação ali versada dizer respeito a um matrimónio sujeito ao regime da comunhão de bens adquiridos, no qual para além de bens titulados em compropriedade pelos cônjuges, havia também bens comuns a partilhar.

Sendo o inventário o meio próprio para a alcançar a partilha daqueles bens comuns, bem se compreende que tenha sido admitida a possibilidade de numa única acção de inventário a correr por apenso ao processo de divórcio, nos termos do artigo 1404.º do Código de Processo Civil, se proceder à divisão ou partilha de todos os bens.

Esta posição inscreve-se na já apontada neutralidade ou irrelevância da compropriedade de bens adquiridos pelos cônjuges na pendência do casamento para o recurso ao meio processual de inventário subsequente a divórcio, pois se não constitui fundamento bastante (este é conferido pela existência da meação do cônjuge nos bens comuns), também não é circunstância impeditiva se o pressuposto do casamento no regime da comunhão se verificar.

ii. Apreciemos agora o segundo argumento apontado pela decisão em recurso, no sentido de que o uso do processo de inventário se justifica por estar alegada a existência de créditos perante terceiros, nomeadamente, entidades bancárias, relacionados com a aquisição dos imóveis em compropriedade.

Nos termos previstos pelo artigo 1412.º, n.º 1, do Código Civil, “…nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão, salvo quando se houver convencionado que a coisa se conserve indivisa”.

O direito de exigir a divisão de coisa comum é potestativo, tem por escopo a dissolução da compropriedade que pode realizar-se através da divisão em substância da coisa ou da partilha do seu valor ou preço.

Pela via judicial (artigo 1413.º do CCivil), o processo de divisão de coisa comum obedece a uma forma especial (artigo 925.º e ss. do CPC) que prevê duas fases distintas:

- a primeira, visa apurar e fixar os quinhões de cada comproprietário e, bem assim, aferir da divisibilidade do bem (artigo 926.º, n.ºs 4 e 5, do CPC);
- a segunda tem como objectivo: a divisão do bem em substância com a adjudicação das partes, caso se conclua que tal é possível na primeira fase do processo (artigos 927.º, n.º 1 e 929.º, n.º 1, ambos do CPC); ou a adjudicação da totalidade / venda a terceiros, com divisão do produto da venda em função dos quinhões de cada um, caso se conclua que o bem é indivisível (artigos 928.º e 929.º, n.ºs 2 e 3, ambos do mesmo diploma legal).

Trata-se de um processo dirigido contra todos os consortes, através do qual o primeiro momento, de pendor declarativo, visa confirmar o direito de cada um à respectiva quota e o segundo, de cariz mais executivo, realiza a repartição material do(s) bem(ns) indiviso(s) ou a atribuição patrimonial correspondente a cada direito individual.

O credor hipotecário, titular de hipoteca sobre a totalidade do prédio objecto da acção de divisão de coisa comum, não vê o seu direto afectado pela definição dos direitos realizada na fase declarativa do processo, porque a sua garantia real se mantém sobre a totalidade das quotas.

É na segunda fase do processo, de pendor executivo, que a adjudicação a um dos interessados ou a venda a terceiros do imóvel hipotecado impõe a prévia intervenção do credor hipotecário, a fim de aí reclamar o seu crédito e fazê-lo valer, sendo citado nos termos previstos pelo artigo 786º, n.º 1, alínea b), ex vi do artigo 549.º, n.º 2, ambos do CPC, para reclamar, pelo produto destes, o pagamento dos respectivos créditos, nos termos do artigo 788.º do mesmo diploma legal.

Deste modo, a utilização da forma especial do processo de divisão de coisa comum não comporta qualquer prejuízo, ou preterição dos direitos do credor hipotecário.

Não há, por isso, fundamento para sustentar que o uso do processo de inventário se justifica por, na situação em juízo, estar alegada a existência de créditos perante terceiros, nomeadamente, entidades bancárias, relacionados com a aquisição dos imóveis em compropriedade.

Note-se que a aceitação deste argumento para franquear o uso do processo de inventário aos comproprietários de bem(ns) indiviso(s), abriria a porta deste processo especial com pendor marcadamente sucessório e conjugal, a um conjunto de outras situações de constituição do direito de compropriedade, não apenas por ex-cônjuges, mas também por pessoas que não estiveram ligadas pelo vínculo do matrimónio."

[MTS]

19/06/2025

Bibliografia (1203)


-- Rieländer, F., Digitalisierung des grenzüberschreitenden Zivilprozesses - Entwicklungsstufen und Entwicklungsperspektiven im europäischen Rechtsraum, RabelsZ 89 (2025), 214 [OA]

Abstract: "Die VO (EU) 2023/2844 nimmt eine Schlüsselstellung innerhalb des von der Union auf den Weg gebrachten Maßnahmenpakets zur Digitalisierung transnationaler Zivil-, Handels- und Strafsachen ein. Sie stellt den Datenaustausch zwischen den zuständigen Behörden im Rahmen der interjustiziellen Zusammenarbeit der Mitgliedstaaten auf eine neue Grundlage, etabliert mit dem „europäischen elektronischen Zugangspunkt“ eine zentrale Plattform für die Verfahrenskommunikation für bestimmte grenzüberschreitende Zivilsachen, legt die formalen Anforderungen an elektronische Dokumente fest und schafft zudem eine allgemeine Rechtsgrundlage für die Durchführung virtueller Verhandlungen und Anhörungen unter Beteiligung des EU-Auslands in Zivil- und Strafsachen. Der Beitrag nimmt die VO (EU) 2023/2844 zum Anlass, um das gesamte europäische Reformpaket einer kritischen Bestandsaufnahme zu unterziehen. Nähere Analyse erhellt, dass die Digitalisierungsinitiativen der Union zwar in die richtige Richtung zielen, aber noch nicht weit genug gehen und insgesamt zu wenig aufeinander abgestimmt sind. Eine zeitnahe Revision sowohl der Europäischen Zustellungsverordnung als auch der Europäischen Beweisaufnahmeverordnung wäre daher wünschenswert."

Jurisprudência 2024 (191)


Litigância de má fé;
multa; quantificação


I. O sumário de RG 17/10/2024 (1739/22.5T8VNF-B.G1) é o seguinte:

1 - Se o Tribunal está vinculado a apreciar apenas as questões suscitadas em sede de recurso, não está adstrito à apreciação apenas dos fundamentos jurídicos invocados para a apreciação dessas questões, desde que, previamente à apreciação de outros, exerça o contraditório, notificando as partes para que sobre eles se pronunciem.

2 – É exorbitante a fixação de uma multa de 5.000,00 euros no âmbito do instituto da litigância de má-fé, quando está em causa a conduta de uma pessoa singular, ainda que de condição económica não apurada, mesmo que a sua conduta seja dolosa, se a sua alegação suscita outras questões para além daquela que é reveladora de má-fé.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"4 – A recorrente insurge-se ainda quanto à sua condenação como litigante de má-fé.

Resulta do art.º 542.º do C. P. Civil que é sancionável a título de má-fé, não apenas a lide dolosa, mas também a lide temerária, quando as regras de conduta processual conformes com a boa-fé são violadas com culpa grave ou erro grosseiro.

O que há assim que perceber é se a atuação do autor ultrapassa os limites que a ordem jurídica definiu para que possa exercer os seus direitos, considerando-se que a sua litigância é uma afronta aos princípios da boa-fé e da lisura processuais.

Como se escreveu no Acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães de 30/03/2023, da Juiz Desembargadora Fernanda Proença Fernandes, proc. 159/20.0T8MLG.G1, in www.dgsi.pt “se a parte, com propósito malicioso, ou seja, com má-fé material, pretender convencer o tribunal de um facto ou de uma pretensão que sabe ser ilegítima, distorcendo a realidade por si conhecida, ou se, voluntariamente, fizer do processo um uso reprovável ou deduzir oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar - má-fé instrumental -, deve ser condenada como litigante de má-fé”.

Deve ainda ter-se em atenção que “não é humanamente exigível às partes que sejam inteiramente objetivas, pelos diversos matizes que a realidade sempre apresenta, vistas sob diferentes prismas, sendo percetível que as partes têm uma relação emocional com estas, sofrendo na sua vida as questões em debate, os problemas ocorridos, o peso do litígio.

Não pode, no entanto, ser tolerado que a parte recorra ao processo, sabendo não ter razão ou quando apenas não tem essa consciência porque se furtou a evidentes deveres de cuidado e zelo a que o respeito pela Justiça, pelos Tribunais e pela parte contrária, exigiam ou faça do mesmo uso que de forma grave ponha em causa as suas finalidades” – nas palavras do Acórdão desta Relação de Guimarães de 14/09/2023, da Juiz Desembargadora Sandra Melo, proc. 3509/22.1T8GMRG.G1, in www. dgsi.pt.

No entanto, como se refere também no Acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães de 30/06/2022, da Juiz Desembargadora Conceição Sampaio, proc. 20786/20.5T8PRT-A.G1, também in www.dgsi.pt, “não deve confundir-se litigância de má-fé com:

· a mera dedução de pretensão ou oposição cujo decaimento sobreveio por mera fragilidade da sua prova, por a parte não ter logrado convencer da realidade por si trazida a julgamento;
· a eventual dificuldade de apurar os factos e de os interpretar;
· discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, na diversidade de versões sobre certos e determinados factos; ou
· a defesa convicta e séria de uma posição, sem, contudo, a lograr convencer.

Constitui hoje entendimento prevalecente na nossa jurisprudência que a garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprios do Estado de Direito, são incompatíveis com interpretações apertadas ou muito rígidas do artigo 542º do Código de Processo Civil. Haverá sempre que ter presente as características e a natureza de cada caso concreto, recomendando-se na formulação do juízo sobre essa má fé uma certa prudência e razoabilidade”.

Perante a matéria de facto que resultou provada não existe qualquer dúvida que o embargante executado, ao alegar que não foi ele quem assinou o aviso de receção que acompanhava a carta remetida para a sua citação para a ação declarativa sabia que estava a faltar à verdade e, assim, a litigar de má-fé, procurando dessa forma criar obstáculos à possibilidade de se dar à execução a sentença que naqueles autos foi proferida.

Deverá, assim, manter-se a sua condenação como litigante de má-fé.

5 – O recorrente insurge-se ainda contra os montantes fixados a título de multa e indemnização, no âmbito da sua condenação como litigante de má-fé.

Quanto à indemnização, entende o Tribunal que a mesma não é devida, como deixou já claro no despacho proferido em 17/09/2024. [...]

Quanto à multa, o Mm.º Juiz a quo fixou-a em 5.000,00 euros.

Estabelece o n.º 3 do art.º 27.º do Regulamento das Custas Processuais que a multa deve ser fixada entre 2 UC e 100 UC (art.º 5.º do referido Regulamento). Estando a Unidade de Conta no valor de 102,00 euros, os limites da multa aplicável situam-se entre 204,00 euros e 10.200,00 euros.

Nos termos do n.º 4 deste normativo, o montante da multa ou penalidade é sempre fixado pelo juiz, tendo em consideração os reflexos da violação da lei na regular tramitação do processo e na correta decisão da causa, a situação económica do agente e a repercussão da condenação no património deste.

“A multa por litigância de má fé, como qualquer outra sanção, procurará desempenhar uma função repressiva (punindo aquele que não cumpre com os deveres de lealdade e correção) e, simultaneamente, preventiva (evitando que esse, ou qualquer outro litigante, volte a desrespeitar a lealdade processual). Mas estas funções apenas lograrão ser alcançadas se se tomar em consideração a situação económica do litigante, adaptando o montante da multa à sua condição financeira, assim garantindo que esta tenha verdadeiro efeito sancionatório e punitivo (vide Marta Frias Borges, Algumas Reflexões em Matéria de Litigância de Má-Fé, Dissertação apresentada à FDUC no âmbito do 2º Ciclo de Estudos em Direito (conducente ao grau de Mestre), na Área de Especialização em Ciências Jurídico-Civilísticas, 2014, Coimbra, pág. 69, acessível em https://estudogeral.sib.uc.pt., citado no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 04/05/2023, do Juiz Desembargador José Cravo, in www.dgsi.pt).

Para fundamentar a multa fixada, escreveu-se na decisão proferida: “neste contexto, considerando o valor que o embargante quer eximir-se a pagar sem qualquer fundamento, decidimos condenar o embargante numa multa cujo valor se fixa em cinco mil euros”.

Esta fundamentação é muito pouco expressiva para fundamentar a condenação do embargante, pessoa singular, no pagamento de uma multa que é próxima do ponto médio da moldura legal.

Se não podemos ignorar a conduta dolosa do embargante executado, que procurou, por esta via, furtar-se ao pagamento da quantia exequenda que ascende a cerca de 13.000,00 euros, acrescida de juros de mora, não podemos também ignorar que este não foi o único fundamento dos embargos deduzidos e, ainda que os demais não tivessem consistência jurídica, não eram reveladores de má-fé.

 Tendo em conta a factualidade apurada, os referidos fatores a ponderar e sabendo-se, ainda, que a multa a aplicar só terá verdadeiro efeito sancionatório e punitivo se adequada à gravidade da atuação do litigante prevaricador e às suas possibilidades patrimoniais (e, aqui, releva estar em causa uma pessoa singular  que nada disse sobre a sua situação económica quer quando interpelada para se pronunciar sobre a questão da má-fé da sua conduta, quer nestas alegações de recurso), conclui-se que a multa aplicada pela 1ª instância é ainda assim exorbitante face à conduta do embargante que se considerou de má-fé.

Se atentarmos nas concretas condenações em multa fixadas pelos Tribunais Superiores (5 Ucs, no proc. 1806/22.5T8BRG.G1, de 12/06/2024, 15 Ucs, no proc. 407/18.7TAVV-B.G1, de 23/05/2024, 5 Ucs, no proc. 2/22.6T8MC.G1, de 18/04/2024, 10 Ucs., no proc. 5220/20.9T8GMR.G2, de 25/01/2024, todos deste Tribunal da Relação de Guimarães), não existe qualquer razoabilidade no valor da multa que foi fixado.

Tudo ponderado, considerando que a exequente é uma pessoa coletiva, que está em causa uma dívida decorrente da atividade comercial daquela, perante o executado pessoa singular de condição económica não apurada, fixa-se em 8 ucs a multa devida pela sua conduta de má-fé."

[MTS]

18/06/2025

Jurisprudência 2024 (190)


Incidente de habilitação;
extemporaneidade do incidente; ónus da prova


1. O sumário de RP 11/12/2024 (288/20.0T8ILH.P1) é o seguinte:

I - À luz do disposto no art. 351º, nº 3 do CPC, numa acção proposta depois de falecido o autor e pretendendo sustentar-se que o processo se não extinga numa das hipóteses previstas no art. 1175º do C. Civil, haverá o advogado que exerceu o mandato depois do falecimento do mandante alegar que o fez sem que soubesse desse falecimento, ou as razões pelas quais, sabendo-o, propôs a acção, em ordem a prevenir prejuízos para os respectivos herdeiros. E de tudo o que alegar deve oferecer a respectiva prova, assim se processando o incidente.

II - O incumprimento do ónus de formulação de requerimento probatório não é susceptível de ser ignorado e superado por via de um convite a aperfeiçoamento.

III - Perante um requerimento instrutório, num incidente de habilitação de herdeiros, em que apenas é oferecida prova sobre a qualidade dos sucessores da parte falecida, mas nada é requerido quanto à verificação de uma excepção apta a permitir a continuidade de uma acção proposta depois do falecimento da autora, excepção esta impugnada pela parte contrária, não cabe ao tribunal convidar o respectivo Il. Mandatário a vir indicar a prova dessa excepção (o seu conhecimento tardio daquele falecimento). Isso constituiria puro atropelo do regime estabelecido no art. 293º do CPC, não legitimado, nem pelo princípio da cooperação (art. 7º), nem pelo princípio do inquisitório (art. 411º).


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas nas conclusões, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do CPC - é nelas que deve identificar-se o objecto do recurso.

No caso, as conclusões oferecidas são prolixas, repetitivas e prejudiciais para a identificação das questões em razão das quais os recorrentes entendem dever ser revogada a decisão de absolvição da instância.

Surpreendem-se ali, todavia, as seguintes questões a decidir:

1 – Se, nas circunstâncias do caso, a Il. Mandatária alegou devidamente o desconhecimento da morte da autora/mandante, o que impede a ocorrência da caducidade do mandato ao tempo da propositura da acção.
2 – Se não era condição, para esse efeito, a alegação de factos aptos a justificar o desconhecimento da morte do mandante, ao tempo da propositura da acção;
3 – Se, caso se conclua pela necessidade dessa alegação, deveria o tribunal ter convidado ao aperfeiçoamento do requerimento;
4 – Se o mandato não caducou por morte da mandante, porque daí adviriam prejuízos para os seus herdeiros;
5- Se a situação em apreço não configura a propositura de uma acção com falta de procuração, o que obsta à condenação da Il. Mandatária em custas.
6 – Se foi omitido um necessário convite à sanação da falta de procuração, o que determina a nulidade da decisão de condenação em custas.
*
Para a discussão das questões apontadas, é útil ter presente, além dos elementos processuais anteriormente mencionados, o requerimento apresentada em 26/1/2024, em que a Il. Mandatária dá conta do falecimento da autora. Consta do seguinte:

“FF, Mandatária da Autora AA, vem expor e requerer a V. Exa, o seguinte:
1º - A aqui Signatária, ao ser notificada do despacho saneador proferido nos presentes autos tentou contactar a aqui Autora,
2º - Tendo tomado conhecimento, através da sobrinha da Autora, que a Autora havia falecido.
3º - Pelo que se requer a junção aos autos da sua certidão de óbito -
4° - Mais se requer que se declare suspensa a instância nos termos do art. 269°, n°1 a) do C.P.C., informando-se, desde já, que irá ser suscitando o competente incidente de habilitação de herdeiros.”

Em 29/1/2024 foi apresentado tal requerimento de habilitação de herdeiros, por BB e EE, que o tribunal determinou haver de ser processado nos próprios autos, e não por apenso.

Seguidamente, após oposição ao incidente de habilitação, foi apresentado requerimento, subscrito pela Il. Mandatária dos apelantes, onde se destaca a seguinte alegação (descartando-se a argumentação de direito):

“1º Efetivamente, a procuração a favor da aqui signatária foi outorgada, pela Autora AA, em 05.06.2018,
2º Sendo que, apenas em 18.06.2020 foi apresentada em juízo a petição inicial que deu origem aos presentes autos,
3° Ora, a aqui Signatária reuniu várias vezes com a Autora com vista a obter toda a informação e documentação necessária para intentar a presente acção,
4º Sendo que, a última ver quem Signatária esteve reunida com a Autora foi nesse dia 17.05.2019
5º Tendo nessa data, a aqui Signatária ficado munida de todos os documentos e de todas as informações necessárias para intentar a presente acção,
6º Não tendo, após a referida data, a aqui Signatária tido qualquer outro contacto com a Autora, nem com nenhum dos seus familiares,
7º Acontece que, devido ao excesso de trabalho no escritório da aqui Signatária e dos períodos de confinamento derivados da pandemia Covid- 19 que assolou o nosso pais e o mundo, só foi possível à aqui Signatária dar entrada do presente processo em 18.06.2020.
8° Ora, conforme requerimento junto aos presentes autos em 26.01.2024, a aqui Signatária, ao ser notificada dos despacho saneador proferido nos presentes autos em 03.01.2024, tentou contactar a aqui Autora,
9º Tendo, só nessa data, tomado conhecimento, através da sobrinha da Autora, que a Autos havia falecido,
10º Facto este que foi imediatamente comunicado aos presentes autos pela aqui Signataria e consequentemente requerida a correspondente habilitação de herdeiros.(…)”.
*
Dispõe o art. 1175º do C. Civil, no respectivo nº 2, para o que aqui interessa, que a morte do mandante só faz caducar o mandato a partir do momento em que seja conhecida do mandatário, ou quando da caducidade não possam resultar prejuízos para o mandante ou seus herdeiros.

É também pertinente, designadamente face aos argumentos dos apelantes, considerar o disposto nos nºs 1 e 3 do art. 351º do CPC, de onde resulta que, se o autor falecer depois de ter conferido mandato para a proposição da ação e antes de esta ter sido instaurada, pode promover-se a habilitação dos seus sucessores quando se verifique algum dos casos excecionais em que o mandato é suscetível de ser exercido depois da morte do constituinte.

Trata-se, neste caso, de uma “habilitação preliminar” no âmbito de um incidente de habilitação, (Geraldes, Pimenta e Pires de Sousa, CPC Anot, Vol. I, pg. 406, notas 5 e 6 ao art. 351º), na qual os requerentes devem alegar desde logo os factos demonstrativos da legitimidade dos sucessores da parte falecida.

Constata-se, assim, algum paralelismo entre a situação prevista nesse nº 3 e a do falecimento do réu que apenas se vem a conhecer em consequência das diligências tendentes à sua citação, prevista no nº 2 da mesma norma. Aí o legislador pretende assegurar o aproveitamento da instância já iniciada (Geraldes, ob e loc cit., nota 3).

Todavia, na hipótese do falecimento do autor, a instância iniciar-se-á também, mas o seu aproveitamento apenas é tido por justificado caso se verifiquem as circunstâncias que motivam que o mandato mantenha a sua eficácia mesmo depois da morte do mandante, previstas no art. 1175º do C. Civil: quando o mandato não deva ter-se por caducado por a morte do mandante não ser conhecida pelo mandatário, ao tempo do acto praticado no exercício do mandato, ou quando da caducidade possam resultar prejuízos para os herdeiros.

Como refere Alberto dos Reis (CPC Anotado, vol. I, pg. 879), se inexistir risco de tal prejuízo ou se o mandatário propuser a acção sabendo que o mandante já havia falecido, “o processo tem, em tal caso, de ficar sem efeito”. Prossegue este professor: “Verificado algum dos casos excepcionais, é ao mandatário do autor que incumbe fazer a prova de que podia fazer uso do mandato, isto é, da urgência da acção ou da ignorância da morte. (…) incumbe ao mandatário alegar e provar que à data da proposição estava na ignorância da morte do seu constituinte”. A esta mesma solução, que citam, aderem Isabel Alexandre e Lebre de Freitas, CPC Anot, vol. I, pg. 693).

Esta solução é perfeitamente consentânea com a estrutura procedimental do incidente, a que se aplicam as regras do processo comum, atento o disposto no art. 549º. Assim, tal como dispõe a al. d) do nº 1 do art. 552º do CPC, deve o requerimento em que se dá notícia do falecimento do autor, quando apresentado pelo respectivo mandatário, conter os factos essenciais que justificam que tenha exercido o mandato para além do falecimento do mandante e, em ordem ao prosseguimento da acção, sendo essa a vontade, a promoção da habilitação dos respectivos sucessores. E, bem assim, o oferecimento da prova dos factos alegados, em observância do disposto no art. 293º do próprio processo.

Como antes se referiu, havendo de sustentar-se uma pretensão contrária à extinção do processo numa das hipóteses previstas no art. 1175º do C. Civil, haverá o advogado que exerceu o mandato depois do falecimento do mandante alegar que o fez sem que soubesse desse falecimento, ou as razões pelas quais, sabendo-o, propôs a acção, em ordem a prevenir prejuízos para os respectivos herdeiros. E de tudo o que alegar deve oferecer a respectiva prova, assim se processando o incidente.

Trata-se, cumpre ter presente, de justificar uma solução excepcional, tolerada pelo legislador por razões de ordem pragmática, pois que o resultado normal da situação, isto é, da propositura de uma acção depois de falecido o autor, com a natural caducidade do mandato que era pressupostos dessa propositura, seria a da extinção da instância.

No caso em apreço, do requerimento apresentado em 26/1/2024, em que a Il. Mandatária dá conta do falecimento da autora, extrai-se não apenas a informação sobre o falecimento, mas também a afirmação de que a signatária só após ser notificada do despacho saneador é que tentou contactar a autora e que então é que tomou conhecimento, por isso lhe ter sido relatado através da sobrinha, que a mesma havia falecido. Sucessivamente, logo a 29/1, foi deduzido o incidente de habilitação de herdeiros, no qual apenas foi oferecida prova relativamente á sucessão.

Depois, na sequência da oposição oferecida ao incidente requerido pelos sucessores da falecida, a Il. Mandatária complementou o alegado sobre o seu tardio conhecimento do falecimento da autora, tratando de o justificar, mas continuando sem oferecer qualquer prova do alegado.

É, assim, fácil de constatar que a Il. Advogada não deixou de invocar, logo quando veio informar do falecimento da autora, que apenas teve conhecimento desse facto em momento ulterior à propositura da acção, designadamente após a notificação do saneador que havia sido proferido; mas também o é que não requereu logo o incidente de habilitação, embora o tenha feito no 1º dia útil seguinte (26/1: sexta-feira; 29/1: segunda-feira), bem como que não ofereceu qualquer prova sobre as circunstâncias que pudessem levar o tribunal a dar por verificado aquele pressuposto do art. 1175º, isto é, o conhecimento do falecimento em momento ulterior à propositura da acção.

Atento o regime anteriormente descrito, só pode concluir-se que o mesmo não foi estritamente cumprido."

*3. [Comentário] Salvo o devido respeito, não se acompanha a posição da RP.

A situação em análise no acórdão tem algumas semelhanças com a previsão do disposto no art. 351.º, n.º 3, CPC (e não tanto com o estabelecido no n.º 2 deste preceito). Pode efectivamente concluir-se que o que vale para a hipótese em que o falecimento do autor ocorreu antes da propositura da acção também deve valer para a hipótese em que só se tem conhecimento do falecimento do demandante antes da instauração da acção já no decurso desta.

A consequência da aplicação do n.º 3 do art. 351.º do CPC é a remessa para o disposto no art. 1175.º CC. Sendo assim, o que teria importado verificar era se, no caso concreto, ocorria algum das situações que justifica a dilação da caducidade do mandato. Em teoria, não se pode excluir que da caducidade imediata do mandato resultassem prejuízos para os herdeiros da autora, pelo que, nesta base, não havia motivo para considerar o mandato caducado antes de a acção pendente vir a terminar.

É verdade que a mandatária poderia ter invocado este argumento (e, ao certo, não se sabe se o fez). No entanto, a continuação do mandato para evitar prejuízo para os herdeiros não é matéria de facto, mas antes um critério de decisão que o tribunal poderia ter aplicado oficiosamente (art. 5.º, n.º 3, CPC). Aliás, mesmo que assim não se entendesse, o que então se poderia exigir era a prova pelos herdeiros de que têm interesse em que a acção que o de cuius ia instaurar seja agora proposta por eles mesmos.

b) A RP baseia a sua solução no não cumprimento pela mandatária de um ónus da prova: a mandatária não fez prova do conhecimento tardio da morte da autora. Para isso, baseia-se na opinião de Alberto dos Reis, esquecendo, em todo o caso, que o Mestre escreveu muito antes da vigência do art. 1175.º CC e -- principalmente -- do critério de repartição do ónus da prova que consta do art. 343.º, n.º 2, CC.

Na verdade, a RP, ao pretender que a mandatária prove que não teve conhecimento do falecimento da autora antes do momento em que a comunicou ao tribunal, está a violar a repartição do ónus da prova que consta do art. 343.º, n.º 2, CC. Se a RP entende que tem dúvidas sobre se o incidente de habilitação foi deduzido no momento adequado, era aos demandados que incumbia a prova da dedução extemporânea daquele incidente. Ao não entender assim, a RP violou o disposto no art. 343.º, n.º 2, CC.

Por fim, cabe referir que a orientação de Alberto dos Reis tem ainda um outro inconveniente: implica a prova de um facto negativo. Não se vê muito bem como é que a mandatária poderia ter provado que, antes do contacto a propósito do proferimento do despacho saneador, não tinha tido conhecimento do falecimento da autora. Será que, por exemplo, a prova de que a mandatária não esteve no funeral da autora constituiria prova convincente desse desconhecimento?
 
[MTS]

17/06/2025

Bibliografia (1202)


-- Lopez Rodriguez, A. M., Class Action in the EU: Lessons From Mixed Jurisdictions. JICL 11 (2024/2), 277 [OA]


Jurisprudência 2024 (189)


Processo executivo;
quinhão hereditário; sub-rogação legal

1. O sumário de RC 8/10/2024 (1/22.8T8VIS.C1) é o seguinte 

I – Resulta do art. 592º, nº 1, do C.Civil que não é qualquer terceiro que cumpra obrigação alheia que beneficia da sub-rogação, mas apenas aqueles que cumpriram em determinadas circunstâncias valoradas pela lei, sendo-o designadamente o terceiro que cumpra a obrigação alheia, quando “por outra causa, estiver directamente interessado na satisfação do crédito” – in fine do normativo citado.

II – Para este efeito exige-se um interesse direto, que a doutrina vem entendendo como sendo um interesse patrimonial e próprio, excluindo um mero interesse “moral” ou “afectivo” do solvens.

III – Tendo sido penhorado o quinhão hereditário que o R. detinha em herança de que os AA. são herdeiros e interessados, e bem assim tendo sido estes últimos notificados para indicar bens da herança para venda, ao virem eles a liquidar a dívida exequenda, verifica-se um tal requisito, posto que com a liquidação da dívida operada, os AA. tinham como objetivo evitar que se limitasse o direito dos mesmos aos bens da herança, evitando as consequências do não cumprimento da dívida na partilha dos bens e, mais diretamente, a execução em curso ou a consumação desta, pela venda (e consequente perda) da coisa empenhada, sendo exatamente esse cumprimento interessado a razão de ser da sub-rogação.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Foi penhorado o quinhão hereditário que o R. detinha em herança de que os AA. são herdeiros e interessados, e bem assim foram notificados estes últimos para indicar bens da herança para venda.

Sendo que foi nessa sequência que os AA. ora recorrentes liquidaram a dívida do R. que estava na base da penhora do quinhão hereditário, extinguindo a execução que contra este corria, tendo-lhes sido outorgada declaração, pelo credor originário, que atesta tal pagamento.

Neste contexto, afirmou-se enfaticamente na sentença recorrida que «(…) para os autores havia um interesse direto e patrimonial em não limitar ou afetar o direito que estes detinham na herança visada e na preservação daquele património».

E a nosso ver, bem!

Na verdade, à luz do supra exposto, importa efetivamente concluir que os AA. aqui recorridos, por via da penhora do quinhão hereditário que teve lugar, viram entrar na herança impartilhada um terceiro, o credor, o qual passou a ter intervenção e interferência no património familiar existente.

É, assim, efetivamente legítimo concluir que, com a liquidação da dívida operada, os AA. tinham como objetivo evitar que se limitasse o direito dos mesmos aos bens da herança, evitando as consequências do não cumprimento da dívida na partilha dos bens e, mais diretamente, a execução em curso ou a consumação desta, pela venda (e consequente perda) da coisa empenhada, sendo exatamente esse cumprimento interessado a razão de ser da sub-rogação.

Dito de outra forma: ocorreu cumprimento efetuado pelos AA. ora recorridos com a finalidade de evitar a execução, e o que ela significava em termos de agravamento da sua posição jurídica, o que corresponde a um interesse direto e próprio.

Nada havendo, assim, a censura à sentença recorrida quando concluiu que os AA. detinham um interesse direto e patrimonial no cumprimento da obrigação/na satisfação do crédito alheio, donde, que se encontravam verificados in casu os pressupostos da sub-rogação legal."

[MTS]

16/06/2025

Observações conclusivas sobre os “factos conclusivos”



[Para aceder ao texto clicar em M. Teixeira de Sousa]


Jurisprudência 2024 (188)


Competência internacional;
Reg. 2019/1111


1. O sumário de RL 24/10/2024 (25544/23.2T8LSB.L1-2) é o seguinte:

I. Sendo Portugal e França Estados-Membros da União Europeia, o regime comunitário aplicável à presente situação é o definido pelo Regulamento (UE) 2019/1111 do Conselho de 25/06, em vigor desde 1 de agosto de 2022, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução, designadamente, de decisões em matéria matrimonial.

II. Tendo ambos os cônjuges residência habitual em Portugal, tal é suficiente para que se conclua, em conformidade com o disposto no art.º 3º, a), i), do citado Regulamento, pela competência internacional dos Tribunais Portugueses para o conhecimento da ação de divórcio.

III. Inexiste fundamento legal para que o critério da nacionalidade dos cônjuges, previsto no art.º 3º, b), do citado Regulamento prevaleça sobre o critério da residência habitual dos cônjuges mencionado no ponto II.

IV. Nos termos do disposto no artigo 17º, al a), do Regulamento (UE) 2019/1111, o processo considera-se instaurado “Na data de apresentação ao tribunal do ato introdutório da instância, ou ato equivalente, desde que o requerente não tenha posteriormente deixado de tomar as medidas que lhe incumbem para que seja feita a citação ou a notificação ao requerido.”

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

Discute-se, no presente recurso, a competência internacional dos tribunais portugueses para julgar a presente ação, uma vez que a mesma está em contacto, através dos seus elementos, com outra ordem jurídica para além da portuguesa, no caso, a francesa.

O Tribunal a quo considerou a jurisdição portuguesa competente para o efeito.

A Apelante discorda.

Vejamos.

Sobre a competência internacional dos tribunais portugueses, o artigo 59º do CPC estabelece que “Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62º e 63º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94º.

Deste modo, a competência internacional dos tribunais portugueses depende, em primeira linha, do que resultar de convenções internacionais ou dos regulamentos europeus sobre a matéria que vinculem o Estado Português e, depois, da integração de alguns dos segmentos normativos dos artigos 62º e 63º do CPC - cfr., António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I - Parte Geral e Processo de Declaração, Almedina, pág. 91.

Na ordem jurídica portuguesa vigoram, assim, normas de fonte interna e normas de fonte supra estadual. [...]

Sendo Portugal e França Estados-Membros da União Europeia, o regime comunitário aplicável à presente situação é o definido pelo Regulamento (UE) 2019/1111 do Conselho de 25/06, em vigor desde 1 de agosto de 2022, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução, designadamente, de decisões em matéria matrimonial.

Ora, de acordo com o artigo 3º desse Regulamento, “São competentes para decidir das questões relativas ao divórcio, separação ou anulação do casamento, os tribunais do Estado-Membro:

a) Em cujo território se situe:
i) a residência habitual dos cônjuges,
ii) a última residência habitual dos cônjuges, na medida em que um deles ainda aí resida,
iii) a residência habitual do requerido,
iv) em caso de pedido conjunto, a residência habitual de qualquer dos cônjuges,
v) a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos um ano imediatamente antes da data do pedido, ou
vi) a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos durante seis meses imediatamente antes do pedido e se for nacional do Estado-Membro em questão; ou
b) Da nacionalidade de ambos os cônjuges.

Como referimos, a Apelante discorda da decisão proferida pelo Tribunal a quo, começando por argumentar que essa decisão não teve em consideração a nacionalidade dos cônjuges.

De facto, na sua decisão, o Tribunal a quo não considerou a nacionalidade dos cônjuges. Mas esse, conforme claramente resulta do citado art.º 3º, não era o único critério a atender na definição da competência internacional para o conhecimento da ação.

Essa competência, conforme previsto na alínea a), ponto i), desse normativo, também poderá ser definida em função do território onde se situa a residência habitual dos cônjuges. E, conforme resultou provado, “as partes residem ambas em Portugal, bem como os filhos menores do casal”. Tendo ambos os cônjuges residência habitual em Portugal, tal é suficiente para que se conclua pela competência internacional dos Tribunais Portugueses para o conhecimento da ação.

Afirma a Apelante que o critério da nacionalidade dos cônjuges deve prevalecer sobre o critério da residência habitual. No entanto, a verdade é que inexiste fundamento jurídico que sustente essa afirmação.

Na presente situação, a desconsideração da nacionalidade dos cônjuges não assume, assim, qualquer relevo.

Prossigamos. 

Tendo presente que na situação em apreço foram instaurados dois processos de divórcio, o presente, em Portugal, e um outro, em França, intentado pela aqui Ré/Apelante, a Apelante defende ainda, no seu recurso, que o Tribunal a quo não teve em consideração a data da citação dos réus nas duas ações intentadas.

Releva aqui o disposto no artigo 17º, al a), do Regulamento (UE) 2019/1111, nos termos do qual se considera “que o processo foi instaurado:

a) Na data de apresentação ao tribunal do ato introdutório da instância, ou ato equivalente, desde que o requerente não tenha posteriormente deixado de tomar as medidas que lhe incumbem para que seja feita a citação ou a notificação ao requerido.

Refira-se ainda que, nos termos do artigo 20º, n.º 1 do mesmo Regulamento, “Quando os processos de divórcio, separação ou anulação do casamento entre as mesmas partes são instaurados em tribunais de Estados-Membros diferentes, o tribunal em que o processo foi instaurado em segundo lugar suspende oficiosamente a instância até que seja estabelecida a competência do tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar”, sendo que, de acordo com o n.º 3 do mesmo normativo, “Quando estiver estabelecida a competência do tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar, o tribunal em que o processo foi instaurado em segundo lugar declara-se incompetente a favor daquele.

Revertendo para a situação dos autos, vemos que nos mesmos resultou provado que a presente ação de divórcio sem mútuo consentimento foi deduzida pelo Autor contra a Ré, tendo dado entrada em 26.10.2023; enquanto a ação de divórcio intentada em França pela aqui Ré contra o Autor deu entrada a 31.10.2023.

Dúvidas não temos, em face do exposto, que a presente ação foi instaurada em primeiro lugar, em conformidade com o critério estabelecido no artigo 17º, al a), do Regulamento (UE) 2019/1111. É esse o normativo a considerar e não o art.º 582º, n.º 2, do CPC, uma vez que, como acima já explicamos, “a competência internacional dos tribunais portugueses depende, em primeira linha, do que resultar de convenções internacionais ou dos regulamentos europeus sobre a matéria que vinculem o Estado Português.

[MTS]

13/06/2025

Paper (528)


-- Seng, Daniel Kiat Boon, Chapter 18: Artificial Intelligence as Evidence (SSRN 01.2025)


Jurisprudência 2024 (187)


Procedimento de injunção; transacções comerciais; 
oposição; reconvenção*


1. O sumário de RP 10/10/2024 (19382/24.2YIPRT-A.P1) é o seguinte:

Quando na oposição à injunção o requerido deduz reconvenção, o valor processual a atender para efeitos de determinação da forma de processo a seguir (que pode interferir com a decisão de admitir a reconvenção) é o resultante da soma do pedido do requerente com o pedido reconvencional.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"[...] a única questão a decidir consiste em saber se a reconvenção deve ser admitida, relevando para o efeito a circunstância de a instância corresponder originariamente a um procedimento de injunção instaurado ao abrigo do disposto no artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de Maio, e no artigo 7.º e seguintes do regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro.

Na origem do conflito encontra-se um contrato celebrado entre a requerente e a requerida nos termos do qual aquela se obrigou criar, conceber e desenhar quatro rótulos e contra-rótulos para impressão destinados à colocação em garrafas de bebidas comercializadas pela requerida.

A requerida obrigou-se a pagar o preço desse serviço em duas prestações iguais, pagou a primeira prestação, mas não pagou a segunda. A requerente considera que realizou o serviço contratado e que a requerida aceitou esse serviço, pelo que emitiu a correspondente factura e reclama agora o seu pagamento, acrescido de juros de mora.

A requerida deduziu oposição dizendo que o produto que a requerente lhe apresentou não possui as características acordadas e apresenta defeitos, pelo que não cumpriu pontualmente o contrato, e, por isso, pretende a resolução do contrato, ser dispensada do pagamento do remanescente do preço e recuperar a parte desse preço que já pagou.

Em reconvenção pede a restituição da parte do preço que pagou e uma indemnização que alega ter sofrido por causa desse incumprimento (danos patrimoniais no montante do valor que pagou a uma terceira entidade para obter o serviço que havia contratado à requerente; danos não patrimoniais decorrentes da lesão da sua imagem no mercado).

Sendo esta a configuração da acção e da reconvenção, pode afirmar-se que no âmbito de uma acção declarativa com processo comum a reconvenção é admissível. Com efeito, a acção e a reconvenção têm ambas por objecto o mesmo contrato, colocam ambas a questão de saber se a autora cumpriu a prestação a que se vinculou, e a reconvenção emerge do facto jurídico que serve de fundamento à defesa, mais precisamente o não cumprimento do contrato por parte da requerente (cf. exemplo de Paulo Pimenta, in Processo Civil Declarativo, 3.ª edição, pá. 210).

A reconvenção tem de observar um requisito de natureza processual atinente à forma do processo. Nos termos do n.º 3 do artigo 266.º do Código de Processo Civil a reconvenção não é admissível «quando ao pedido do réu corresponda uma forma de processo diferente da que corresponde ao pedido do autor, salvo se o juiz a autorizar, nos termos previstos nos n.os 2 e 3 do artigo 37.º, com as necessárias adaptações».

A reconvenção exige, pois, que a forma do processo correspondente ao pedido do autor e a forma adequada para o pedido reconvencional sejam compatíveis entre si, rectius, não sejam diferentes. Se o forem, o juiz pode, ainda assim, autorizar a dedução da reconvenção se as formas de processo envolvidas não possuírem uma tramitação manifestamente incompatível e haja interesse relevante na cumulação das pretensões ou a sua apreciação em conjunto for indispensável para a justa composição do litígio.

Como refere Paulo Pimenta, loc. cit., pág. 90, a exigência da unidade da forma do processo «visa impedir que o enxerto da acção reconvencional no processo pendente possa causar perturbações e embaraços à sua normal e previsível tramitação», daí que «se estivermos numa acção comum, é admissível reconvenção se a esta couber igualmente a forma comum de processo. E se a acção for especial, a reconvenção só é admitida se lhe corresponder a mesma forma especial, e não outra forma especial ou a forma comum».

O autor formulou a sua pretensão através de um procedimento de injunção.

A escolha dessa forma foi correcta porque a sua pretensão de exigir o cumprimento de uma obrigação de natureza pecuniária emergente de um contrato se adequa aos fins do Regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a €15.000, aprovado em anexo do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro.

Este regime compreende uma acção declarativa (artigos 1.º a 6.º) e o procedimento de injunção (artigos 7.º a 21.º), sendo a utilização deste meramente facultativa (o autor pode escolher a injunção ou a acção) e a tramitação daquela igualmente aplicável a este no caso de ser apresentada oposição ao procedimento e este se convolar em acção judicial.

De referir que a acção declarativa destinado a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a €15.000 apenas compreende dois articulados, a petição inicial e a contestação, razão pela qual esta forma de processo especial (não comum) não parece compatível com a dedução da reconvenção, a qual exigirá sempre que o reconvindo disponha de um articulado para contestar a pretensão que lhe é dirigida.

A escolha do procedimento de injunção também estava justificado pelo regime do Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de Maio, que estabelece medidas contra os atrasos de pagamento nas transacções comerciais. Com efeito, este diploma, aplicável a qualquer falta de pagamento do montante devido no prazo contratual, tendo o credor cumprido as respectivas obrigações, desde que essa obrigação advenha de uma transacção entre empresas cujo objecto seja o fornecimento de bens ou à prestação de serviços contra remuneração [artigo 1.º, 2.º, n.º 1, e 3.º, alíneas a) e b)], dispõe no seu artigo 10.º, n.º 1, que o atraso de pagamento em transacções comerciais, nos termos previstos no diploma, confere ao credor o direito a recorrer à injunção, independentemente do valor da dívida.

Deve, por isso, perguntar-se qual é a tramitação processual a observar no caso uma vez deduzida pela requerida oposição ao procedimento de injunção: a acção declarativa destinado a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a €15.000 (do Decreto-Lei n.º 269/98) ou a acção com forma de processo comum?

O artigo 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 62/2013, estabelece que «para valores superiores a metade da alçada da Relação, a dedução de oposição e a frustração da notificação no procedimento de injunção determinam a remessa dos autos para o tribunal competente, aplicando-se a forma de processo comum».

Importa por isso saber como se determina esse valor. Nos termos do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 269/98, o valor processual da injunção e da acção declarativa que se lhe seguir é o do pedido, atendendo-se, quanto aos juros, apenas aos vencidos até à data da apresentação do requerimento. Mas de que pedido estamos a falar, quando na oposição o requerimento deduz reconvenção?

A questão foi apreciada pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 06-06-2017, proc. n.º 147667/15.5YIPRT.P1.S2, in www.dgsi.pt, onde se decidiu não haver «razão para concluir da leitura do artigo 10.º n.º 2 do Decreto-Lei n.º 62/2013 que o mesmo quis afastar as regras processuais gerais sobre o cálculo do valor de uma acção. É natural que primeiro se tenha em conta o valor do pedido – aliás nesse momento não há sequer uma acção – mas com a dedução de oposição, e convertendo-se então a medida em procedimento jurisdicional, haverá que aplicar as regras dos artigos 299.º e seguintes do CPC. Assim, atende-se ao momento em que o procedimento se converte em jurisdicional (porque na injunção não se começa por propor uma acção) “excepto quando haja reconvenção” (n.º 1 do artigo 299.º do CPC), sendo que, então, o valor do pedido formulado pelo Réu é somado ao valor do pedido formulado pelo Autor quando os pedidos sejam distintos (n.º 2 do artigo 299.º)» (seguem esta solução, por exemplo, os Acórdãos desta Relação de 10-09-2024, proc. n.º 80995/23.2YIPRT-A.P1, e de 10-07-2024, proc. n.º 27994/21.0YIPRT-A.P1, ambos in www.dgsi.pt).

No caso, aliás, o despacho recorrido fixou o «valor da causa» em € 45.653,50 na parte relativa à reconvenção, pelo que é forçoso concluir que também para o despacho recorrido a totalidade do valor da causa resultará da soma do valor do pedido com o valor da reconvenção, ou seja, é de [€45.653,50 + €756,75] €46.410,25.

Sendo esse o valor da acção, esta deve seguir a forma de processo comum (artigo 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 62/2013) e, em consequência, não existe obstáculo de natureza processual à admissibilidade da reconvenção (cf., dos mais recentes, o Acórdão da Relação de Lisboa de 16-06-2020, proc. n.º 77375/19.8YIPRT-A.L1-7, o Acórdão da Relação do Porto de 10-07-2024, antes citado, e a decisão singular do Vice-presidente da Relação de Lisboa de 22-03-2024, proc. n.º 1858/23.0T8SXL.L1-1, in www.dgsi.pt).

A grande discussão a este nível tem-se colocado apenas em relação às acções que por não excederem metade da alçada da Relação não seguem a forma do processo comum, mas antes a forma da acção declarativa regulada no Decreto-Lei n.º 269/98 e destinada a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a €15.000 (cf. Acórdão da Relação do Porto de 10-09-2024, antes citado). Não é o caso dos autos.

Sendo assim, só resta concluir que o despacho recorrido não pode subsistir. Os demais argumentos usados para fundamentar a recusa da reconvenção são, aliás, ilegais.

Em regra, a dedução da reconvenção é um direito potestativo de natureza processual do réu. Desde que se verifiquem os requisitos substanciais (ser um dos casos do elenco do n.º 2) e processuais (não haver diferença da forma de processo), o réu pode decidir livremente deduzir reconvenção, sem que o juiz possa opor a essa escolha as dificuldades decorrentes do julgamento conjunto da acção e da reconvenção. O contrário é que é verdadeiro, mas apenas quando o obstáculo se prende exclusivamente com a forma do processo e o juiz entende que existem vantagens nesse julgamento conjunto.

Só nos casos em que o pedido reconvencional envolver outros sujeitos, cuja intervenção o reconvinte pretenda para dirigir a reconvenção também contra eles, e desde que não se trate de litisconsórcio necessário, é que o tribunal, se entender que, apesar de se verificarem os requisitos da reconvenção, há inconveniente grave na instrução, discussão e julgamento conjuntos, pode decidir absolver os chamados da instância quanto ao pedido reconvencional (n.os 4 e 5 do artigo 266.º do Código de Processo Civil). Note-se, absolver da instância os chamados, não a parte primitiva, pelo que em relação a estes, mesmo nessa circunstância, a reconvenção é admitida."

*3. [Comentário] A RP decidiu bem.

Apenas uma pequena chamada de atenção: onde se diz "nos termos do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 269/98" deve entender-se que se pretendia dizer "nos termos do artigo 18.º do regime aprovado pelo Decreto-Lei n.º 269/98".

MTS

12/06/2025

Jurisprudência 2024 (186)


Cumulação de pedidos;
dupla conforme*

1. O sumário de STJ 15/10/2024 (1530/20.3T8CBR.C1.S1é o seguinte:

I - A delimitação da dupla conformidade de decisões, enquanto obstáculo admissibilidade da revista, exige o confronto com a autonomia e cindibilidade do objecto do processo, mesmo no caso de objecto único, e na viabilidade da apreciação de segmentos da decisão entre si independentes, autonomia que é aferida em função da respectiva fundamentação;

II - A cláusula, inserta num contrato promessa bivinculante, em execução da qual a coisa imóvel objecto mediato do contrato de compra e venda prometido é traditada para os promitentes compradores, mediante o pagamento de uma compensação, devida até à conclusão do contrato definitivo, não é qualificável com contrato de arrendamento urbano, mas como simples convenção acessória, subalterna e instrumental, através da qual se antecipa um dos efeitos jurídicos deste último contrato;

III - Do contrato promessa emergem, além das prestações principais de facto jurídico positivo - a obrigação de emitir, no futuro, as declarações de vontade integrantes do contrato definitivo prometido - deveres acessórios de conduta que arrancam, materialmente, do princípio regulativo estruturante da boa-fé;

IV - A resolução do contrato promessa exige o incumprimento definitivo das obrigações que dele emergem, o incumprimento definitivo que surge não apenas quando for força da não realização ou do atraso na prestação o credor perca o interesse objectivo nela ou quando, havendo mora, o devedor não cumpra no prazo que razoavelmente lhe for fixado pelo credor - mas igualmente nos casos em que o devedor declara expressamente não pretender cumprir a prestação a que está adstrito ou adopta uma qualquer outra conduta manifestamente incompatível com o cumprimento;

V - A resolução infundada do contrato promessa determina o seu incumprimento, dado que revela o propósito, claro, sério e unívoco, a intenção categórica ou o propósito indubitável e irrevogável de não cumprimento - e de não cumprimento definitivo - daquele mesmo contrato;

VI - Apesar da autonomia do contrato promessa relativamente ao contrato definitivo e de dele apenas resultarem prestações de facto jurídico positivo, no cumprimento destas obrigações são relevantes as eventuais perturbações das prestações que resultam do contrato definitivo ou principal;

VII - A alegação do abuso de direito, quando tenha por efeito a inibição do exercício de poderes jurídicos, v.g., de um direito subjectivo, resolve-se numa excepção peremptória, cabendo, por isso, o ónus da prova dos factos correspondentes ao excipiente, pelo que, no caso de non liquet, há que decidir contra essa parte a questão correspondente.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"3.2. Fundamentos de direito.

3.2.1. Inadmissibilidade da revista no tocante à questão da qualificação da convenção contida no n.º 3 da cláusula 4.º do texto da promessa de contrato como contrato de arrendamento.

As instâncias são acordes na recusa da qualificação da convenção inserta n.º 3 da cláusula 4.ª do texto contratual como contrato de arrendamento urbano. Os recorrentes insistem, na revista, nessa qualificação, o que, de resto, corresponde à estratégia processual que adoptaram na petição inicial e com qual, já se vê, visavam subtrair-se ao risco – que se concretizou com o acórdão impugnado – de verem paralisada a entrega do imóvel prometido vender em consequência do reconhecimento, às recorridas, do direito de retenção sobre ele, para garantia dos créditos que emergem da supressão, por resolução, da promessa de contrato.

Uma causa de exclusão da recorribilidade dos acórdãos da Relação, de largo espectro, é a chamada dupla conforme, de harmonia com a qual não é admitida revista daqueles acórdãos, sempre que confirmem, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância (art.º 671.º, n.º 3, do CPC).

Como a conformidade das decisões das instâncias exclui o recurso de revista que, doutro modo, seria admissível, o que importa determinar é se essas decisões são conformes – duae conformes sententiae - não se são desconformes, pelo que se aquelas decisões não forem inteiramente coincidentes, o que interessa determinar é se essa não coincidência equivale a uma não-conformidade. As decisões das instâncias podem ser conformes, mesmo que entre elas se registe alguma desconformidade, o que é confirmado pela regra de que as decisões das instâncias são conformes se as respectivas fundamentações, apesar de distintas, não forem essencialmente diferentes (art.º 671.º, n.º 3, do CPC). Para verificar se o acórdão da Relação é conforme ou desconforme perante a decisão da 1.ª instância há que considerar os elementos das duas decisões. E entre os elementos das duas decisões, interessantes para a avaliação ou aferição daquela conformidade releva, desde logo, a fundamentação: se a fundamentação das decisões das instâncias for homótropa ou não for essencialmente diferente, a revista é inadmissível; se, porém, a motivação do acórdão da Relação for essencialmente distinta, aquele recurso ordinário é admissível.

Apesar de alguma flutuação de formulações, por fundamentação essencialmente diversa este Tribunal tem entendido, não aquela que seja divergente no tocante a aspectos marginais, subalternos ou secundários - mas a que assente numa ratio decidendi inteiramente distinta, como sucede quando radica em institutos ou normas jurídicas completamente diferenciadas ou quando, movendo-se embora no âmbito do mesmo instituto ou norma jurídica, os interpreta de modo inteiramente divergente, aplicando ao objecto do processo um enquadramento jurídico marcadamente diferenciado que se repercuta, decisivamente, na solução jurídica da controvérsia [---].

Em face deste enunciado, é clara a conformidade de decisões, da 1.ª instância e da Relação no tocante à questão da qualificação considerada a unanimidade do acórdão impugnado e a homogeneidade da fundamentação de um e de outro acto decisório, dado que ambos convergiram na conclusão de que a apontada convenção não constitui um contrato de arrendamento urbano – mas uma simples estipulação conformadora da traditio da coisa imóvel objecto do contrato definitivo prometido.

Como decorre, por exemplo, do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/2022, de 18 de Outubro – DR n.º 201/2022, Série I, de 2022.10.18 – a delimitação da dupla conformidade de decisões reclama o confronto com a autonomia e cindibilidade do objecto do processo, mesmo no caso de objecto único, e na viabilidade da apreciação de segmentos da decisão entre si independentes, autonomia que é aferida um função da respectiva fundamentação. Ora os fundamentos da revista representados pela resolução do contrato promessa bivinculante de compra e venda e pela resolução do contrato de arrendamento são – materialmente – autónomos entre si e juridicamente cindíveis, dado que cada um deles é, de per se, suficiente para justificar a procedência do recurso, pelo que a confirmação, pela Relação, sem voto de vencido e sem uma fundamentação essencialmente, da decisão da 1.ª instância de não verificação de qualquer desses fundamentos, dá lugar, quanto aos fundamentos sucessivamente apreciados de modo uniforme, a uma decisão conforme que obstacula à admissibilidade da revista comum ou normal. Do que decorre, quanto à questão da qualificação da apontada cláusula contratual, a inadmissibilidade da revista por força da duae conformes sententiae."


*3. [Comentário] Adere-se, sem reservas, à orientação do STJ.

Tudo teria sido mais simples se se atendesse a que os Autores formularam dois pedidos: um pedido de resolução do contrato de arrendamento e um pedido de pagamento de uma indemnização pela mora na entrega do locado. Quer dizer: o objecto do processo comporta uma cumulação simples de pedidos (art. 555.º CPC).

Quando assim é, a dupla conformidade é necessariamente apreciada de forma distinta para cada um dos pedidos formulados pelo demandante. É, aliás, nesta base (e apenas nela) que se pode pode aceitar a doutrina definida no Ac. STJ 7/2022, de 18/10.

MTS