"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



20/02/2015

O que significa o conhecimento oficioso da nulidade?




1. O art. 1421 do Codice civile, integrado num título denominado Dei contratti in generale, estabelece, sob a epígrafe Legittimazione all'azione di nullità, o seguinte: Salvo diverse disposizioni di legge, la nullità può essere fatta valere da chiunque vi ha interesse e può essere rilevata d'ufficio dal giudice.

Num artigo de C. Consolo (Nullità del contratto, suo rilievo totale o parziale e poteri del giudice, in La disponibilità della tutela giurisdizionale (cinquant’anni dopo) (2011), p. 7 ss.) encontra-se (p. 17) uma referência a alguma jurisprudência italiana que entende que, se nenhuma das partes suscitar a nulidade do contrato, o tribunal pode conhecer oficiosamente de qualquer causa de nulidade, mas que, se alguma das partes impugnar a validade do contrato, então o tribunal não pode considerar ex officio nenhuma outra causa de nulidade. O argumento utilizado por esta jurisprudência é o de que, neste último caso, o tribunal tem de respeitar o principio della domanda e o da corrispondenza tra il chiesto e il pronunciato.

2. Como é bem conhecido, o art. 286.º CC estabelece que a nulidade pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal. No entanto, apesar da similitude entre o regime italiano e o regime português, a jurisprudência portuguesa orienta-se, pelo menos quando a nulidade opera como excepção peremptória, por uma solução diferente da acima referida como sendo a de alguma jurisprudência italiana. Parece ser indiscutível que, para a jurisprudência portuguesa, qualquer tribunal – seja de 1.ª instância, seja de recurso – pode conhecer oficiosamente de qualquer causa de nulidade e absolver o réu do pedido com base em qualquer causa dessa invalidade (cf. art. 576.º, n.º 3, CPC).

Esta solução vale tanto quando o réu não tenha alegado nenhuma causa de nulidade do contrato ou do acto jurídico invocado pelo autor, como quando o réu tenha excepcionado e alegado uma determinada causa de nulidade. Também neste caso, o tribunal pode considerar oficiosamente uma outra causa de nulidade, podendo mesmo acontecer que o tribunal julgue improcedente a nulidade excepcionada pelo réu e venha a absolver o réu do pedido com base numa outra causa de nulidade por ele conhecida ex officio. Por exemplo: o réu excepcionou a nulidade do contrato com fundamento no seu carácter simulado (cf. art. 240.º, n.º 2, CC); o tribunal pode considerar improcedente a simulação, mas vir a absolver o réu do pedido com fundamento no desrespeito da forma legalmente exigida (cf. art. 294.º CC). O único cuidado que o tribunal deve ter é o de evitar qualquer decisão-surpresa (cf. art. 3.º, n.º 3, CPC).

Pode perguntar-se o que sucede se o réu invocar uma única causa de nulidade e o tribunal considerar esta excepção improcedente, deixando de apreciar, no entanto, uma outra causa de nulidade de conhecimento oficioso. Aproveitando o exemplo anterior, suponha-se que o réu invocou a simulação e que o tribunal considerou esta excepção improcedente, mas não conheceu da nulidade do negócio por desrespeito da forma legalmente exigida.

A circunstância de o tribunal não ter conhecido de uma causa de nulidade de conhecimento oficioso implica a nulidade da decisão por omissão de pronúncia (cf. art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC), mas, uma vez transitada em julgado a decisão sem a arguição da sua nulidade, nada pode obstar à preclusão decorrente do ónus de concentração da defesa na contestação (art. 573.º, n.º 1, CPC). O que é de conhecimento oficioso pelo tribunal numa acção também pode ser alegado pelo réu nessa mesma acção, pelo que a omissão desta alegação e da impugnação da decisão por nulidade implica a referida preclusão. O fundamento de defesa que não foi alegado pelo réu numa acção, nem conhecido oficiosamente nela, não pode ser invocado por aquela parte num processo posterior, se isso se destinar a contrariar a decisão proferida na acção anterior. Assim, o réu não pode invocar numa acção posterior uma causa de nulidade não alegada, nem conhecida, numa acção anterior, procurando com isso destruir a condenação proferida na primeira acção.

3. Pode questionar-se se o que acima se referiu a propósito da pluralidade de fundamentos da nulidade como excepção também vale para a pluralidade de fundamentos da nulidade como causa de pedir. A questão é, pois, a seguinte: tendo o autor invocado uma determina causa de nulidade, pode o tribunal considerar a acção procedente com fundamento numa outra causa dessa invalidade? Voltando ao exemplo anterior: o que se pode perguntar é se, tendo o autor instaurado uma acção em que pede a declaração de nulidade de um contrato por simulação, o tribunal, apesar de considerar a acção improcedente com base neste fundamento, pode vir a julgar a acção procedente com base na inobservância da forma legalmente requerida.

A resposta não pode deixar de ser positiva. O conhecimento oficioso da nulidade pelo tribunal é independente da parte beneficiada; o que conta é a relação da nulidade com o objecto do processo e a sua relevância para a apreciação de qualquer pedido, não a relação da nulidade com qualquer das partes. Assim, a nulidade que, num caso, pode constituir fundamento de absolvição do pedido (decisão favorável ao réu) também pode constituir, num outro caso, fundamento da procedência da causa (decisão favorável ao autor).

Em relação à invocação, numa acção posterior, de uma causa de nulidade não apreciada numa acção anterior, o processo civil português impõe, no entanto, uma diferença entre a posição do réu e a do autor. O princípio da concentração da defesa na contestação impede que o réu possa invocar, em acção posterior, um fundamento de defesa que não alegou numa acção anterior (por exemplo, uma causa de nulidade que não foi apreciada numa acção anterior). Esta preclusão não existe para o autor quanto a uma possível causa de pedir concorrente: depois de o autor não ter conseguido obter a procedência da acção com fundamento numa certa causa de pedir nada obsta a que esse mesmo autor procure obter a procedência do mesmo pedido com base numa outra causa de pedir. Isto é, há preclusão de fundamentos de defesa, mas não há nenhuma preclusão de causas de pedir. Sendo assim, nada obsta a que o autor proponha uma acção posterior, alegando nesta uma diferente causa de nulidade daquela que invocou na acção anterior.

C. Consolo, criticando a acima referida jurisprudência italiana, afirma (p. 18), com total razão, que, se se entende que fica precludida a alegação pela parte de uma causa de nulidade diferente daquela que ela invocou numa acção anterior, então tem de se admitir que o tribunal possa conhecer ex officio de uma causa de nulidade distinta daquela que a parte invocou. Efectivamente, não é coerente impor à parte a preclusão da alegação posterior de uma outra causa de nulidade sem permitir que o tribunal possa conhecer oficiosamente de uma causa de nulidade diferente daquela que foi alegada pela parte no processo pendente. De outro modo, a alegação pela parte de uma causa de nulidade “bloquearia” a apreciação de qualquer outra causa dessa invalidade, dado que a apreciação desta não seria possível nem na acção pendente (pela limitação do conhecimento oficioso do tribunal), nem numa acção posterior (por força da preclusão imposta à parte).

O inverso não é, todavia, necessariamente verdadeiro. Mesmo que se admita que o tribunal pode conhecer oficiosamente de uma causa de nulidade distinta daquela que o autor alegou, depende do direito positivo saber se, numa acção posterior, o autor pode alegar uma causa de nulidade de que o tribunal não conheceu oficiosamente numa acção anterior. A resposta do direito português quanto a saber se, nesta hipótese, opera alguma preclusão já foi dada acima: nesse direito, não opera nenhuma preclusão, pelo que o autor pode invocar uma distinta causa de nulidade numa acção posterior.

MTS