1. O n.º I do sumário de STJ 2/6/2020 (496/13.0TVLSB.L1.S1) é o seguinte:
A falta de observância da formalidade prevista no n.º 3 do art. 665.º do CPC, podendo influir na decisão da causa, importa a nulidade processual prevista no art. 195.º do CPC. Esta nulidade deve ser arguida no prazo de 10 dias (arts. 149.º e 199.º do CPC) e no tribunal em que foi cometida.
Este sumário reflecte uma confusão que tem vindo a tornar-se
frequente na jurisprudência e que importa procurar desfazer.
2. O CPC trata das nulidades processuais nos art. 186.º a 202.º e das nulidades da sentença e do acórdão nos art. 615.º, 666.º e 685.º. Perante isto, pode colocar-se a questão: por que motivo têm tratamento em diferentes lugares do CPC as nulidades processuais e as nulidades da sentença? Ou noutra formulação: dado que a sentença é um acto processual, qual o motivo para que a nulidade da sentença não esteja tratada em conjunto com as nulidades processuais? Ou noutra formulação ainda mais precisa: constando do art. 195.º CPC uma regra geral sobre a nulidade dos actos, qual a justificação para que exista uma regulamentação específica sobre a nulidade da sentença?
A resposta tem a ver com a dupla perspectiva pela qual a
sentença pode ser considerada (assim como qualquer outro acto processual) e é a
seguinte: a sentença pode ser vista como trâmite ou como acto: no primeiro
caso, atende-se à sentença no quadro da tramitação da causa; no segundo, considera-se
o conteúdo admissível ou necessário da sentença.
Disto decorre que uma sentença pode constituir uma nulidade
processual, se for considerada na perspectiva da sentença como trâmite: basta,
por exemplo, que ela seja proferida fora do momento apropriado na tramitação
processual. Um exemplo (naturalmente académico): se, no procedimento comum, o
juiz proferir uma decisão logo a seguir ao termo da fase dos articulados, verifica-se
uma nulidade processual nos termos do art. 195.º, n.º 1, CPC, porque foi
praticado um acto que a lei, naquele momento, não permite.
Importa notar, no entanto, que, atendendo à diferença da
sentença como trâmite e como acto, a nulidade processual do art. 195.º CPC nada
tem a ver com a nulidade da sentença dos art. 615.º, 666.º e 685.º CPC. É fácil
verificar que assim é.
A nulidade processual decorrente do disposto no art. 195.º,
n.º 1, CPC existe mesmo que a sentença não padeça de nenhum outro vício,
nomeadamente daqueles que estão enumerados no art. 615.º CPC. Quer dizer: a
sentença pode conter toda a fundamentação exigível, pode não padecer de nenhuma
contradição entre os fundamentos e a decisão, pode não conter nenhuma omissão
ou nenhum excesso de pronúncia e pode não condenar em quantidade superior ou em
objecto diverso do pedido, mas, ainda assim, porque é proferida fora do momento
adequado, verifica-se a nulidade processual imposta pelo art. 195.º, n.º 1, CPC.
Voltando ao exemplo (académico) acima referido: o
proferimento da sentença logo depois da fase dos articulados constitui uma
nulidade processual; no entanto, essa sentença pode não padecer de nenhum dos
fundamentos de nulidade enumerados no art. 615.º, n.º 1, CPC.
O inverso também é possível (e é, aliás, a situação mais
frequente): se a sentença é proferida no momento processualmente adequado, mas
se a mesma não contém toda a fundamentação exigível, padece de uma contradição
entre os fundamentos e a decisão, contém uma omissão ou um excesso de pronúncia
ou condena em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, não há
nenhuma nulidade processual nos termos do art. 195.º, n.º 1, CPC, embora se trate
de sentença que é nula segundo o disposto nos art. 615.º, n.º 1, 666.º e 685.º CPC.
3. Assente esta distinção básica entre a sentença considerada como trâmite e a sentença considerada como acto, importa tratar agora do problema relacionado com as decisões-surpresa e com a sua correcta solução jurídica. A questão a resolver é a seguinte: uma decisão-surpresa é uma nulidade processual nos termos do art. 195.º, n.º 1, CPC ou uma nulidade da sentença de acordo com o estabelecido nos art. 615.º, 666.º e 685.º CPC?
Segundo se pode imaginar, as dificuldades sentidas pela
jurisprudência decorrem da circunstância de a decisão-surpresa resultar da
omissão da audição prévia das partes e de, portanto, parecer que a ela está
subjacente uma nulidade processual nos termos do art. 195.º, n.º 1, CPC. Há
aqui, no entanto, uma confusão que importa procurar desfazer.
A audição prévia das partes é um pressuposto ou uma condição
para que a decisão não seja considerada uma decisão-surpresa. Quer dizer: a decisão-surpresa
é um vício único e próprio: a decisão é uma decisão-surpresa quando tenha sido
omitida a audição prévia das partes. Noutros termos: há um vício (que é a
decisão-surpresa), e não dois vícios independentes (a omissão da audiência
prévia das partes e a decisão-surpresa).
Em concreto: há um vício processual que é consequência da omissão
de um acto. Se assim é, claro que o que há que considerar é o vício em si mesmo
(a decisão-surpresa), e não separadamente a causa do vício e o vício. Em parte
alguma do direito processual ou do direito substantivo se considera a causa do
vício e o vício como duas realidades distintas. A única distinção que é
possível fazer é ontológica: é a distinção entre a causa e a consequência.
Dado que a decisão-surpresa corresponde a um único vício e
porque este nada tem a ver com a decisão como trâmite, o vício de que padece a
decisão-surpresa só pode ser um vício que respeita à decisão como acto. Em
concreto, a decisão-surpresa é uma decisão nula por excesso de pronúncia (art. 615.º,
n.º 1, al. d), CPC), dado que se pronúncia sobre uma questão sobre a qual, sem
a audição prévia das partes, não se pode pronunciar.
Note-se que, como se tem vindo a repetir neste Blog, esta
solução é a única que é compatível com a impugnação da decisão-surpresa através
de recurso e com o objecto do recurso. O objecto do recurso é sempre uma
decisão, pelo que, se houvesse uma nulidade processual, a mesma não poderia
constituir objecto de recurso e teria de ser reclamada no tribunal a quo.
Foi, aliás, esta a orientação adoptada no acórdão cujo
sumário se transcreveu acima. Ela é coerente com a qualificação da
decisão-surpresa como uma nulidade processual, mas, como se referiu, essa
qualificação não é a adequada para o vício em causa.
4. Uma última observação: é preciso ler com muito cuidado
toda e qualquer doutrina e toda e qualquer jurisprudência que se tenha
pronunciado sobre o problema antes de ter surgido no panorama legislativo
português a temática da decisão-surpresa.
Efectivamente, não se pode dizer que já antes não houvesse casos
que, agora, seriam enquadráveis na decisão-surpresa. O que faltava na altura
era a visão de que a decisão-surpresa constitui, em si mesma, um vício
processual autónomo e próprio.
MTS