"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



16/03/2015

Jurisprudência (99)



Reg. 593/2008 (Roma I); interpretação e aplicação da lei estrangeira; 
perda do interesse do credor; resolução do contrato


1. É o seguinte o sumário de STJ 26/2/2015 (693/10.0TVPRT.C1.P1.S1):

I - Resultando da aplicação do disposto no n.º 1 do art. 4.º do Regulamento (CE) n.º 593/2008, de 04-07, do Parlamento e do Conselho ser aplicável uma lei estrangeira, o juiz do foro, em consonância com o disposto no n.º 1 do art. 23.º do CC, deve efectuar a respectiva interpretação no contexto do sistema a que pertence e de acordo com as regras interpretativas nele estabelecidas, o que impõe que se faça apelo à jurisprudência e doutrina dominantes no país de origem, que se tenha, como ponto de partida, a correcção da interpretação usual no Estado estrangeiro e que se actue com sensatez e prudência, de modo a colmatar a inerente menor familiarização com a lei estrangeira, só devendo tal interpretação ser afastada quando puder ser tida como inexacta.

II - Sendo aplicável à apreciação da questão da caducidade o Código Civil Espanhol e enquadrando-se duas das pretensões formuladas pela autora na previsão do art. 1486.º do mesmo diploma, há que considerar o prazo a que alude o art. 1490.º daquele diploma como sendo de caducidade, como uniformemente tido pela jurisprudência do Supremo Tribunal Espanhol e por grande parte da doutrina.

III - Resultando da facticidade provada que os vícios que afectam a máquina vendida pela recorrente impedem o seu uso na actividade comercial da recorrida, há que considerar, em face da jurisprudência do Supremo Tribunal Espanhol, que estamos perante o incumprimento da obrigação de entrega e não de meros vícios redibitórios que apenas desencadeiam as acções a que alude o art. 1486.º do Código Civil Espanhol.

IV - Não estando a acção resolutiva sujeita a prazo de caducidade, mas antes a um prazo de prescrição de 15 anos que ainda não havia decorrido ao tempo da propositura da presente acção, cabe concluir pela tempestividade da mesma.

V - Devendo atender-se à lei portuguesa (i.e. a lei do país onde é cumprida a obrigação – cfr. n.º 2 do art. 12.º do Regulamento (CE) n.º 593/2008) no tocante às medidas que o credor deve tomar em caso de cumprimento defeituoso, a tutela do comprador reconhece-lhe o direito à anulação do contrato com base em erro ou dolo (art. 905.º ex vi art. 913.º do CC), à redução do preço (art. 911.º ex vi art. 913.º, ambos daquele diploma) e à reparação ou substituição da coisa (primeira parte do art. 914.º do mesmo diploma), só sendo admissível a resolução contratual caso se frustre a exigência do cumprimento perfeito do contrato consubstanciada no exercício destas duas últimas faculdades.

VI - Como deriva dos n.ºs 1 e 2 do art. 808.º do CC, para que a mora no cumprimento da prestação possa redundar numa situação de incumprimento definitivo, é imperioso que, além do mais, se verifique a perda de interesse do credor na execução da prestação.

VII - A perda de interesse que desencadeia a resolução do contrato há-de ser objectivamente evidenciada, a fim de evitar que o devedor fique sujeito ao capricho do credor ou que venha a ser confrontado com a invocação de razões banais ou infundadas para justificar a destruição do contrato.

VIII - Havendo que concluir pela licitude da resolução, o enquadramento factual provado não autoriza que o comportamento da recorrida se deva ter por contrário aos ditames da boa fé ou que evidencie qualquer actuação em abuso do direito.

2. O acórdão é modelar quanto à forma como aplica o direito estrangeiro, indicando claramente como este direito deve ser aplicado pelos tribunais portugueses e, em particular, chamando a atenção para a necessidade de considerar a jurisprudência do país de origem. O aresto encontra-se igualmemte bem fundamentado com base na jurisprudência -- também estrangeira -- e na doutrina.

MTS