"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



14/10/2025

Jurisprudência 2025 (10)


Advogado;
conflito de interesses


1. O sumário de RP 14/1/2025 (25/24.0T8STS-E.P1) é o seguinte:

I - Identifica-se um antagonismo entre os interesses de um insolvente, numa insolvência em que um imóvel apreendido para a massa vai ser vendido, e os de um proponente à respectiva aquisição no âmbito da liquidação nesse mesmo processo de insolvência.

II - Em razão de tal conflito de interesses, o mesmo advogado não pode representar simultaneamente o insolvente a o proponente comprador.

III - Para a identificação do conflito de interesses, é irrelevante a não identificação de um concreto prejuízo resultante da representação simultânea de tais diferentes entidades, ou a falta de oposição de qualquer sujeito processual.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Cabe, sucessivamente, apreciar a ocorrência da anunciada incompatibilidade entre a intervenção do Il. Advogado Dr. BB enquanto mandatário da insolvente e representante da sociedade licitante do imóvel desta, no âmbito do leilão ocorrido em sede de liquidação da correspondente massa insolvente.

Nesta discussão será igualmente útil ponderar se é determinante, para a identificação dessa incompatibilidade, a eventual circunstância de nenhum credor se ter oposto à validade da proposta apresentada pelo mesmo Dr. BB em representação da licitante A..., Lda e da alegação de nenhum prejuízo daí haver de decorrer, quer para a proponente, quer para a insolvente.

Sobre matéria de conflito de interesses, com relevância para a situação em apreço, dispõe o art. 99.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, nos termos seguintes:

“1 - O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária.
2 – (…).
3 - O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.
4 - Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.
5 - (…)
6 – (…)."

Em face do regime assim construído, começa por assinalar-se a indiferença para a solução, da eventual concordância ou mera falta de oposição de qualquer interveniente, sejam os diferentes sujeitos processuais que aparecem representados pelo mesmo advogado, sejam quaisquer outros interessados.

Para além disso, constata-se ser também irrelevante a verificação de um efectivo prejuízo para qualquer das partes representadas pelo mesmo advogado, para que se conclua pela ocorrência de um conflito de interesses.

Com efeito, nos termos do nº 1 e do nº 3 da norma citada, o que determina a inviabilidade de representação de um determinado cliente é a circunstância de o advogado já ter intervindo em qualquer outra qualidade na mesma questão ou em questão que seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária, não podendo aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.

No caso, o Dr. BB vem representando a insolvente no respectivo processo de insolvência. Assim, não pode representar qualquer outro interveniente no processo, que seja titular de interesses eventualmente conflituantes com as da insolvente.

Ora, quando o mesmo advogado aparece a representar uma entidade que, no apenso de liquidação da mesma insolvência, apresenta uma proposta para adquirir um bem da massa insolvente, é evidente o antagonismo entre os respectivos interesses e os interesses da própria insolvente.

Com efeito, a insolvente pretenderá que o bem seja vendido pelo maior valor possível e, no caso concreto, até o mais tarde possível, para resolver o problema de habitação que a perda da disponibilidade do imóvel lhe trará. É esse, de resto, o tema do outro recurso interposto da decisão em crise. No caso, sendo o valor dos créditos reclamados pouco superior a 100.000,00€, a maximização do preço da venda poderá até vir a permitir não só a satisfação de todos os créditos, mas até a sobre de capital a reverter para a própria insolvente.

Pelo contrário, por natureza, qualquer adquirente terá interesse em pagar o menor preço possível e em obter a entrega do bem negociado tão breve quanto possível, para dele passar a tirar proveito.

É, pois, por demais evidente o conflito de interesses entre a insolvente e a licitante A..., Lda, tanto bastando para que se não possa permitir que o Dr. BB ambas represente em simultâneo.

Nestas circunstâncias, um tal conflito só não se verificaria se a intervenção da A..., Lda não se destinasse à efectiva aquisição do imóvel, mas tão só a obstar a que outrem o adquirisse, a fim de conseguir que previamente à concretização da venda em leilão electrónico viesse a ser decidida outra questão que a própria insolvente suscitou, sugerindo outro destino negocial para a o imóvel, em ordem a impedir aquela venda.

Todavia, não sendo admissível tal hipótese teórica, havendo até mecanismos processuais adequados ao respectivo tratamento se a mesma se verificasse, só podemos concluir pela presença de um efectivo conflito de interesses entre a insolvente e a A..., Lda, tal como entendeu o tribunal recorrido. E, como tal, pela inadmissibilidade da representação de ambas pelo Dr. BB.

Como antes se referiu, é irrelevante para o caso a circunstância de nenhum sujeito processual se ter oposto à intervenção do Dr. BB em representação também da A..., Lda, tal como o é a circunstância de não ter sido identificado um concreto prejuízo em resultado dessa intervenção.

Com efeito, identificado o conflito, a actuação da norma, isto é, do nº 4 do art. 99º do E.O.A., impedindo a continuidade da representação simultânea de sujeitos com interesses antagónicos, basta-se com o risco de que algum desses interesses seja preterido em favor de outro, não exigindo a concreta afectação de qualquer deles."

[MTS]


13/10/2025

Jurisprudência 2025 (9)


Nulidade da decisão;
taxa sancionatória especial


1. O sumário de STJ 16/1/2025 (9277/22.0T8PRT-A.P1.S1) é o seguinte:

A arguição de nulidade da decisão não pode ser usada para obter a reapreciação da questão decidida.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Dispõe-se no artigo 613.º do CPC:

1 - Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.

2 - É lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes (…)”.

E dispõe-se no artigo 615.º do CPC:

1 - É nula a sentença quando:

a) Não contenha a assinatura do juiz;

b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;

d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido (…)”.

Ambas as normas são aplicáveis ao acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça, ex vi dos artigos 662.º e 679.º do CPC, legitimando a apresentação de reclamações como a presente.

Sucede, porém, que, não obstante arguirem a nulidade do Acórdão, os recorrentes não só não identificam a respectiva causa como não invocam nenhuma das disposições do artigo 615.º, n.º 1, do CPC, em que tal vício teria necessariamente de enquadrar-se para poder ser apreciado na presente reclamação [Não vale, por isso, alegar a violação do artigo 663.º, n.º 6, do CPC (que, aliás, não é senão aquilo que os recorrentes, na verdade, imputam ao Acórdão da Relação).]

Em contrapartida, os sinais (rectius: as alegações) são abundantes no sentido de que aquilo que os recorrentes pretendem com a presente reclamação é expor mais uma vez as razões pelas quais entendem que o Acórdão da Relação deve ser revogado.

Ora, sobre esta questão já se disse (rectius: escreveu) o suficiente no Acórdão ora reclamado, não sendo necessária nem desejável repeti-lo ou reproduzi-lo.

Salienta-se apenas que, além do mais, foram “aproveitadas” as alegações de recurso, tendo a questão, formalmente enunciada, da nulidade do Acórdão recorrido por falta de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto (que não podia ser conhecida na revista) sido convertida na questão do exercício dos poderes do artigo 662.º do CC e como tal apreciada.

A insatisfação que os recorrentes demonstram relativamente à decisão adoptada por este Supremo Tribunal é natural, uma vez que lhes é desfavorável, mas o certo é que não constitui fundamento para a presente reclamação.

Alegam ainda os recorrentes que o Acórdão reclamado enferma de inconstitucionalidade por aplicação / interpretação do artigo 663.º, n.º 6, do CPC em ofensa ao artigo 205.º, n.º 1, da CRP, dispondo que “[a]s decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei” e ainda ao artigo 20.º, n.º 4, da CRP (tutela jurisdicional efectiva). Cabe esclarecer que no Acórdão não se aplica / interpreta a norma referida [Aplica-se / interpreta-se, sim, o artigo 662.º do CPC.], pelo que nunca poderia haver inconstitucionalidade.

A terminar, cumpre deixar uma palavra acerca do pedido da recorrida, de que seja aplicada aos recorrentes uma taxa sancionatória excepcional.

Dispõe-se no artigo 531.º do CPC:

Por decisão fundamentada do juiz, pode ser excecionalmente aplicada uma taxa sancionatória quando a ação, oposição, requerimento, recurso, reclamação ou incidente seja manifestamente improcedente e a parte não tenha agido com a prudência ou diligência devida”.

Estamos em crer, todavia, que ainda não é de recorrer a este meio excepcional. Como se viu acima, a arguição de nulidades da decisão é uma possibilidade que a lei confere aos recorrentes. O ideal é que tal arguição tenha sempre um mínimo de fundamento / uma aparência de fundamento mas a verdade é que, na prática, em muitos casos, isto não se se verifica. Atendendo a isto, considera-se que a presente reclamação ainda cai dentro dos limites do habitual e, como tal, ainda não se justifica a aplicação daquela sanção excepcional."

[MTS]

11/10/2025

Informação (318)


TEDH

Uma boa fonte de informação da jurisprudência do TEDH alternativa ao HUDOC é o CEDH-KS ou ECHR-KS.


10/10/2025

Legislação (245)


Tramitação electrónica



Regulamenta a tramitação eletrónica dos processos que correm termos nos tribunais ­judiciais, nos tribunais administrativos e fiscais e nos serviços do Ministério Público.

 

Bibliografia (1226)


-- Zheng S. T., Smart Court / The Court of the Future, CUP: Cambridge, 2025


Jurisprudência 2025 (8)


Processo de inventário;
património comum; competência material*


1. O sumário de STJ 16/1/2025 (2731/24.0T8VIS.S1) é o seguinte:

Carece de fundamento uma interpretação extensiva da norma prevista no art. 122.º, n.º 2, da LOSJ, que conduza a integrar no seu âmbito as acções declarativas, como a presente, respeitantes à determinação dos bens que compõem o património comum do ex-casal que se encontra a ser partilhado em sede de processo de inventário judicial intentado na sequência de acção de divórcio.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"6. A questão essencial que constitui objecto do presente recurso reconduz-se a saber em que tribunais reside a competência material para apreciar a presente causa: se nos juízos de família e menores, como entendeu o tribunal recorrido, por apelo à norma do art. 122.º, n.º 2, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário - LOSJ); se nos juízos cíveis, como defende a recorrente autora.

O n.º 2 do art. 122.º da LOSJ dispõe o seguinte:

“Os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos.”.

A recorrente argumenta que o n.º 2 do art. 122.º da LOSJ se limita a atribuir a competência em razão da matéria aos tribunais de família e menores nos processos de inventário ali identificados – o que, alega, não é manifestamente o caso presente –, acrescentando que, “a menos que a lei estipule de forma expressa em sentido contrário, a competência material do tribunal há-de buscar-se pela matéria discutida e não pela ligação da questão ou questões em causa no processo de inventário, situação que até está prevista no artº 1105º, nº 5 do CPC.”.

Vejamos.

A competência em razão da matéria atribui a diferentes espécies ou categorias de tribunais, que se situam entre si no mesmo plano horizontal, sem nenhuma relação de hierarquia entre eles, o conhecimento de determinados domínios do Direito.

De acordo com o art. 65.º do CPC, “as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada”, estipulando o art. 40.º da LOSJ o seguinte:

“1 - Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

2 - A presente lei determina a competência, em razão da matéria, entre os juízos dos tribunais de comarca, estabelecendo as causas que competem aos juízos de competência especializada e aos tribunais de competência territorial alargada.”. [...]

Com a presente causa, visa a autora determinar a titularidade da quota de € 6.600,00 na sociedade por quotas “Farmácia M..., Lda”, invocando existir controvérsia a respeito da questão de saber se tal quota é um bem próprio do réu ou, ao invés, um bem comum do ex-casal.

Coloca-se, pois, a questão – que, tanto quanto foi possível apurar, não foi até à data objecto de apreciação pela jurisprudência deste Supremo Tribunal – de saber se integra a previsão constante do n.º 2 do art. 122.º da LOSJ (“Os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos.”) a acção, intentada após instauração de processo de inventário subsequente a divórcio, destinada a determinar se um bem consistente numa quota social integra o património comum ou o património próprio de um dos ex-cônjuges.

A jurisprudência dos Tribunais da Relação encontra-se dividida a este respeito, identificando-se acórdãos que defendem que são os tribunais cíveis os competentes para julgar acções declarativas intentadas na sequência de processos de inventário para partilha de bens comuns subsequentes a divórcio (cfr. os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 26-10-2020, proc. n.º 1029/20.8T8PRD.P1, do Tribunal da Relação de Évora de 11-05-2023, proc. n.º 3723/22.0T8FAR.E1, e do Tribunal da Relação de Coimbra de 13-12-2023, proc. n.º 754/23.6T8LRA.C1, e de 21-05-2024, proc. n.º 2944/23.2T8LRA, todos disponíveis em www.dgsi.pt), enquanto outros arestos sustentam que tal competência material reside nos tribunais de família (cfr. os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 04-05-2021, proc. n.º 592/20.8T8PBL.C1 (com voto de vencido) e de 16-05-2023, proc. n.º 612/22.1T8CTB.C1, consultáveis em www.dgsi.pt). Já o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10-07-2024, proc. n.º 2566/22.5T8LRA-B.C1, in www.dgsi.pt, adoptou uma posição intermédia, defendendo que a competência material para a acção declarativa de condenação, intentada na sequência da suspensão de inventário para separação de meações, subsequente a divórcio, por força da remessa para os meios comuns da decisão da questão inventarial controvertida, cabe, por regra, aos juízos de família e menores, apenas se excluindo tal competência se a situação a decidir for para além da partilha de determinado bem e a sua averiguação/resolução se impuser a outros intervenientes processuais (que não apenas os ex-cônjuges).

A questão é comumente analisada a propósito da competência para a apreciação da acção declarativa que é intentada na sequência da remessa, operada em processo de inventário, para os meios comuns, prevista no art. 1093.º, n.º 1, do CPC, no qual se prescreve o seguinte:

“Se a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados diretos na partilha, mas a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes, o juiz pode abster-se de a decidir e remeter os interessados para os meios comuns.”.

No caso sub judice, não é claro, através da leitura dos esclarecimentos prestados pela recorrente no requerimento datado de 17-06-2024, que essa remessa tenha sido decretada na sequência da reclamação à relação de bens apresentada no processo de inventário, circunstância que, porém, não altera os pressupostos com base nos quais a discussão em torno da questão da competência material tem sido equacionada.

A corrente jurisprudencial que se pronuncia pela competência dos tribunais cíveis alicerça o seu entendimento nos seguintes argumentos: (i) as decisões a tomar nos meios comuns sê-lo-ão fora de um processo de inventário, num processo autónomo, não fazendo sentido que o juízo de família e menores decida no âmbito de um inventário no sentido da remessa para os meios comuns e depois seja o mesmo juízo a decidir questões cíveis relacionadas com direitos reais, de natureza contratual ou de competência dos tribunais do comércio, num desvio à regra da especialização dos tribunais; (ii) a matéria que extravasa o processo de inventário extravasa também o âmbito da jurisdição da família e menores e cairá no âmbito estritamente cível; (iii) não resulta expressamente da lei que os juízos de família e menores sejam competentes para apreciar as acções declarativas em apreço, sendo que a referência do n.º 2 do art. 122.º da LOSJ aos processos de inventário se esgota em si mesma; (iv) a competência para a tramitação de acções comuns encontra-se definida no art. 117.º, alínea a), da LOSJ, salvo nos casos em que a mesma seja atribuída aos juízos locais cíveis, por força do art. 130.º, n.º 1, igualmente da LOSJ; (v) não resulta do processo legislativo que levou à introdução do n.º 2 do art. 122.º da LOSJ que tenha existido o propósito de incluir na competência dos juízos de família e menores acções comuns instauradas por força do regime previsto no art. 1093.º, n.º 1, do CPC.

Por seu turno, a corrente jurisprudencial que insere no âmbito de competência material dos tribunais de família as acções declarativas sob escrutínio elenca os seguintes fundamentos: (i) também nesta sede se fazem sentir as razões que determinam que a competência para a tramitação dos autos de inventário para partilha dos bens comuns, subsequente a divórcio, resida nos juízos de família e menores, que se prendem com a relação de dependência e conexão entre ambos os processos, justificada por razões de economia processual, considerando que no processo de divórcio constarão – ou poderão constar – elementos relevantes para a determinação da partilha a efectuar no inventário subsequente; (ii) se o legislador pretendesse estabelecer qualquer diferenciação entre as questões a resolver no processo de inventário e, designadamente, que a competência dos juízos de família e menores ficava limitada aos termos estritos do processo de inventário, e não já às acções instauradas na sequência deste, por remessa para os meios comuns, tê-lo-ia dito, o que não fez; (iii) caso não existisse decisão de suspender o processo de inventário para remessa para os meios comuns relativamente a uma determinada questão pela sua complexidade, sempre seria o juízo de família e menores a decidir a questão.

7. Há que tomar posição, começando por analisar o regime legal aplicável.

De acordo com a alínea b) do n.º 1 do art. 1083.º do CPC, o processo de inventário é da competência exclusiva dos tribunais judiciais sempre que o inventário constitua dependência de outro processo judicial.

Estatui, por seu lado, o n.º 1 do art. 1133.º do mesmo diploma que, “decretada a separação judicial de pessoas e bens ou o divórcio, ou declarado nulo ou anulado o casamento, qualquer dos cônjuges pode requerer inventário para partilha dos bens comuns.”.

Como se referiu, o n.º 2 do art. 122.º da LOSJ preceitua que “os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos”. Esta norma, como advertem Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2020, pág. 669), terá de ser devidamente adaptada ao novo quadro normativo relacionado com a distribuição de competências relativamente aos processos de inventário, que alterou profundamente o regime de exclusividade que, nesta matéria, era atribuída aos cartórios notariais pela Lei n.º 23/2013, de 5 de Março. [...]

E quanto às acções declarativas, como a presente, intentadas na sequência de um processo de inventário subsequente a divórcio, em que se discute a determinação dos bens que compõem o património comum: integrar-se-ão estas na previsão normativa contida no n.º 2 do art. 122.º da LOSJ?

A resposta a tal questão dependerá dos resultados da actividade interpretativa desenvolvida a respeito da norma em causa. Neste exercício, há que ter em conta, como notou o acórdão deste Supremo Tribunal de 22-06-2023 (proc. n.º 3193/22.2T8VFX.L1.S1), disponível em www.dgsi.pt, “a importância de na interpretação da lei processual, o modelo constitucional do processo equitativo exigir que a definição do sentido das normas que indiquem às partes um determinado comportamento processual que devam seguir, incluindo a daquelas que estabelecem quais os tribunais onde devem ser propostas as ações que os cidadãos decidam instaurar para defesa dos seus direitos, não se traduza numa solução de difícil previsibilidade, afetando a confiança da parte no que a letra do preceito legal dispõe. Essa situação ocorreria, com manifesta ofensa dessa exigência constitucional caso se entendesse que o tribunal competente não é aquele que é indicado no preceito que especificamente determina qual o tribunal onde devem ser propostas um concreto tipo de ações.”.

Importa, assim, lançar mãos dos critérios hermenêuticos previstos no art. 9.º do Código Civil para determinar o sentido da norma consagrada no n.º 2 do art. 122.º da LOSJ, apelando aos elementos gramatical, teleológico (consistente no fim visado pelo legislador ao elaborar a norma), sistemático (que compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo em que se integra a norma interpretanda) e histórico (que abrange elementos relativos à história do preceito, desde logo a história evolutiva do regime em causa) - cfr. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao discurso legitimador, Almedina, Coimbra, 1996, págs. 181-184.

Segundo o comando ínsito no art. 9.º do CC, há que partir da letra da lei – do seu enunciado linguístico – para perscrutar o pensamento que lhe está subjacente, funcionando o elemento gramatical simultaneamente como limite, uma vez que não pode ser considerado como compreendido entre os sentidos possíveis da lei o pensamento legislativo “que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso” (n.º 2 do art. 9.º do CC) – cfr. Baptista Machado, ob. cit., págs. 188-189.

Sob a perspectiva da interpretação declarativa, é inegável que a letra da norma em causa (“os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio (...)”) restringe a competência dos tribunais de família aos processos de inventário instaurados em consequência de acções matrimoniais, não abarcando, na sua literalidade, acções declarativas, ainda que as pretensões nas mesmas deduzidas pudessem ser apreciadas, por via incidental, no processo de inventário (cfr. art. 91.º do CPC).

Será que a razão de ser da norma postula a sua aplicação a estes casos, que não são directamente abrangidos pela sua letra?

Não nos parece.

Com efeito, se é verdade que se poderá verificar uma vantagem, em termos de celeridade e de boa administração da justiça, na concentração, no mesmo tribunal, da competência para a resolução das questões que se prendem com a definição do acervo a partilhar pelo ex-casal, esta vantagem seria neutralizada pelo desvio à especialização que implicaria atribuir a um tribunal de família e menores o julgamento de acções em que se discutirão temas estranhos às matérias relativas ao estado civil das pessoas e família, a menores e filhos maiores, e ao domínio tutelar educativo e de protecção que tipicamente integram a sua competência (cfr. arts. 122.º a 124.º da LOSJ).

Ora, é comumente sabido que o alargamento de jurisdições especializadas constituiu um objectivo estrutural da reforma do sistema judiciário, pelas óbvias vantagens que oferece, sob o ponto de vista da eficiência processual, ante a complexidade e especificidade normativas dos diversos ramos do direito substantivo. Não é, pois, configurável que o legislador, intensamente comprometido com o princípio da especialização, pretendesse estender a competência dos tribunais de família nos termos defendidos pelo tribunal a quo – para além dos processos de inventário que constituem decorrência imediata da dissolução do casamento ou eventos análogos –, justamente para causas que, presumivelmente, apresentarão uma complexidade atípica, não compaginável com a tramitação simplificada e as limitações probatórias inerentes ao processo de inventário.

Na verdade, em acções como a presente – ao contrário do que sucede com o processo de inventário – não está em causa a concretização da separação da meação dos bens comuns do ex-casal. Nesta medida, entende-se que apenas o processo de inventário – e já não as acções declarativas, como a presente, em que se discutam questões prejudiciais relativamente ao mesmo inventário – constitui uma decorrência directa da dissolução do casamento por sentença judicial, justificando a competência por conexão estabelecida pelo n.º 2 do art. 122.º da LOSJ.

Sob outra perspectiva, dir-se-á que alargar aos tribunais de família a competência para julgar as mencionadas acções declarativas significaria reconhecer a existência de um critério desigual, que não se nos afigura materialmente fundado, de aferição da competência material quanto a processos incidentes sobre questões prejudiciais aos processos de inventário referidos no art. 122.º, n.º 2, da LOSJ, relativamente a processos incidentes sobre questões prejudiciais aos restantes processos de inventário judicial. Também nestes últimos, certamente, se sentiriam as vantagens de ter o mesmo tribunal, já familiarizado com a matéria do processo de inventário, a decidir questões que lhe são prejudiciais – e o legislador não consagrou qualquer competência por conexão fundamentadora de uma excepção às regras gerais que disciplinam a competência em razão da matéria.

Deste modo, afigura-se carecer de fundamento, pelas razões expostas, uma interpretação extensiva, a concretizar mediante extensão teleológica, da norma prevista no art. 122.º, n.º 2, da LOSJ, que conduza a integrar no âmbito desta norma as acções declarativas, como a presente, respeitantes à determinação dos bens que compõem o património comum do ex-casal que se encontra a ser partilhado em sede de processo de inventário judicial intentado na sequência de acção de divórcio.

Significa o exposto que a competência material para apreciar a presente acção reside, nos termos do disposto no art. 117.º, n.º 1, alínea a), da LOSJ, no Juízo Central Cível em que a mesma foi regularmente proposta."

*3. [Comentário] Talvez o argumento mais ponderoso seja o que decorre da remessa das partes para os meios comuns, dado que, quando ocorre essa remessa, o tribunal materialmente competente é determinado nos termos gerais.

MTS

09/10/2025

Jurisprudência 2025 (7)


Recurso de apelação;
junção de documentos


1. O sumário de RE 16/1/2025 (583/21.1T8SLV.E1) é o seguinte:

I. A junção de documentos com as alegações de recurso só é passível de ser efectuada no âmbito do recurso de apelação em que nos movemos, quando se verifique alguma das situações prevenidas no artigo 651.º do CPC, do qual resulta que “as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância”.

II. Da conjugação do disposto nos artigos 425.º e 651.º do CPC, verifica-se que apenas é admissível a junção de documentos no âmbito das alegações de recurso de apelação nestes tipos de situações:
- quando não tenha sido possível a sua apresentação até ao encerramento da discussão em primeira instância;
- quando a apresentação se tenha tornado necessária apenas em virtude do julgamento proferido pela primeira instância.

III. São de admitir igualmente os documentos que se destinem a complementar e/ou esclarecer outros já juntos aos autos mas que possam suscitar dúvidas, ou seja, aqueles que se destinam a antecipar a decisão da Relação inserta na alínea b) do nº2 do art.º 662º do CPC, que permite seja ordenada a produção de novos meios de prova em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Os apelantes impugnam a resposta dada aos pontos 5 e 15 do elenco dos factos provados, ambos atinentes à integração dos prédios em causa na RAN e na REN, referindo que as certidões camarárias tidas em conta para prova dos mesmos foram emitidas em 2022 e que não demonstram a sua integração naqueles regimes à data da compra e venda (2020) e de acordo com o PDM em vigor à data.

Duas notas prévias:

As certidões em causa atestam inequivocamente que os prédios nelas mencionados integram a RAN e a REN.

É certo que não mencionam se à data da compra e venda já integravam tais regimes, melhor: se a certificação que é feita se reporta à data da compra e venda ou não.

Mas os apelantes também não afirmam o contrário, i.e., que à data da compra e venda (2020) não integravam.

Acresce que quando, oportunamente, foram notificados das certidões, não puseram em causa a sua força probatória ( cfr. art.º 415º, nº2 do CPC).

Por seu turno, os apelados, confrontados com os termos em que foi feita a impugnação da matéria de facto pelos apelantes, enveredaram por juntar, com as respectivas alegações, duas certidões comprovativas de que em 28 de Outubro de 2020 os prédios em causa já integravam a RAN e a REN.

Os recorrentes não se pronunciaram.

Cumpre decidir da admissibilidade da sua junção nesta fase processual.

É consabido que os documentos são meios de prova cuja exclusiva função é a de demonstrar os factos (artigo 341.º do Código Civil), daí que a sua junção, em regra, deva ser efectuada na fase instrutória da causa, nos momentos que actualmente se mostram previstos no artigo 423.º do CPC e na redacção anterior se encontravam plasmados no artigo 523.º do CPC.

Ora, a junção de documentos com as alegações de recurso só é passível de ser efectuada no âmbito do recurso de apelação em que nos movemos, quando se verifique alguma das situações prevenidas no artigo 651.º do CPC, do qual resulta que “as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância”.

Da conjugação do disposto nos artigos 425.º e 651.º do CPC, verifica-se que apenas é admissível a junção de documentos no âmbito das alegações de recurso de apelação nestes tipos de situações:

- quando não tenha sido possível a sua apresentação até ao encerramento da discussão em primeira instância;

- quando a apresentação se tenha tornado necessária apenas em virtude do julgamento proferido pela primeira instância.

Assim, quanto à primeira das referidas possibilidades - documentos cuja junção não tenha sido possível até ao encerramento da discussão em primeira instância - o preceito abrange quer a superveniência objectiva do documento, quer a superveniência subjectiva decorrente, por exemplo, do desconhecimento da existência do documento, ou mesmo da junção de documentos que tenham sido formados posteriormente àquele momento temporal .

No entanto, os documentos supervenientes a que o preceito se refere não podem ser todos e quaisquer documentos que se reportem a factos já constantes da instrução da causa.

Na verdade, considerando que os recursos se destinam ao controle da decisão impugnada, hão-de admitir-se apenas os que tenham relevância processual quanto a factos supervenientes estranhos ao objecto da lide ou que se destinem a pôr-lhe termo, como sejam, o documento comprovativo do óbito da parte; a confissão, desistência ou transacção realizada através de documento autêntico ou particular; ou aqueles que, tendo havido impugnação da matéria de facto, se enquadrem na previsão do n.º 1, do artigo 662.º, isto é, aqueles documentos que, sendo novos e supervenientes, só por si, tenham força probatória suficiente para destruir a prova em que a decisão da primeira instância assentou.

Mas não só. Tem de se entender que são de admitir igualmente os documentos que se destinem a complementar e/ou esclarecer outros já juntos aos autos mas que possam suscitar dúvidas, ou seja, aqueles que se destinam a antecipar a decisão da Relação inserta na alínea b) do nº2 do art.º 662ºdo CPC, que permite seja ordenada a produção de novos meios de prova em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada.

No caso vertente, parece-nos evidente que perante a dúvida de saber as certidões antes juntas aos autos se reportavam à data da celebração do contrato de compra e venda sempre se justificaria o pedido de esclarecimento junto da Câmara Municipal de ... (art.º436º do CPC) que foi, entretanto, fornecido pelo teor das anexadas às contra-alegações.

E, por isso, se justifica a sua permanência nos autos.

Por conseguinte, não há quaisquer dúvidas de que os prédios em causa integravam à data da compra e venda. i.e. em 28 de Outubro de 2020, a reserva ecológica nacional e a reserva agrícola nacional com as áreas enunciadas nos pontos 5 e 15 da matéria de facto provada, que assim se mantém incólume."

[MTS]


08/10/2025

Jurisprudência 2024 (242)


Processo executivo;
intervenção de terceiros


1. O sumário de RC 11/12/2024 (1844/23.0T8ACB-B.C1) é o seguinte:

I – Para o deferimento da suspensão da venda executiva a pedido do executado, nos termos do n.º 5 do art.º 733º do CPC, não basta a constatação de que o imóvel penhorado constitui a habitação efetiva daquele, sendo necessário que se comprove que essa venda é suscetível de causar-lhe prejuízo grave e dificilmente reparável.

II – Deve assim ser indeferida tal pretensão quando o executado, no respetivo requerimento, omita, de todo, a alegação da situação factual concreta e objetiva suscetível de integrar o “prejuízo grave e dificilmente reparável” a que alude a mencionada norma.

III – Ainda que, em tese, se admita a possibilidade de o executado deduzir incidente de intervenção de terceiros, nos termos gerais dos arts. 311º e segs. do Código de Processo Civil, não será admissível chamamento à execução ou aos embargos, pelo executado, de um terceiro para demonstração de que é este o verdadeiro responsável pela dívida exequenda e não ele próprio, posto que tal possibilidade também não lhe seria facultada no âmbito do processo declarativo.

IV – Nas situações de litisconsórcio voluntário passivo, cabe exclusivamente ao credor/exequente escolher qual o meio processual para efetivar o seu direito, incluído as pessoas que demanda para tal efeito, pelo que não pode o executado, que foi demandado unicamente na qualidade de proprietário do imóvel onerado com a hipoteca que garante o crédito exequendo, fazer intervir na lide, como executado, o devedor do crédito exequente, ainda que este figure com essa qualidade no título executivo.

V – A faculdade que o artigo 317º do Código de Processo Civil atribuiu ao réu/codevedor solidário de chamar os demais devedores solidários para o efeito de reconhecimento e condenação destes no direito de regresso que lhe possa vir a assistir, se tiver de realizar a totalidade da prestação, não deve ser concedida ao executado, demandado apenas enquanto adquirente do imóvel onerado com uma hipoteca que garante o crédito exequendo, porquanto este, em rigor, não é devedor do exequente;

VI – Não é de admitir o incidente de intervenção acessória, requerido em embargos à execução, pelo executado que foi demandado apenas na qualidade de proprietário de imóvel onerado com hipoteca que garante o crédito exequente, quando este já obteve a condenação judicial dos chamados a expurgar a referida hipoteca e, caso tal não aconteça, a pagar-lhe uma quantia monetária a título indemnizatório.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Na situação em apreço, há que notar, desde logo, como bem assinala a sentença recorrida, a ambiguidade do requerimento de intervenção de terceiros quer no que diz respeito à identificação inequívoca dos concretos autos em que pretenda que ocorra a intervenção principal – se o processo executivo, se os autos de embargos de executado – quer no que diz respeito à concreta finalidade ou objetivo prosseguido com tal requerimento.

De facto, como ali se nota, alegando a embargante que “quem deveria constar como executado nos presentes autos, por forma a concretizar a efetiva e tão costumada justiça, seriam o Sr. BB, o Sr. CC e bem assim a sociedade de que ambos eram gerentes, a A... (artigo 99º da petição inicial de embargos), aparenta  que pretende que aqueles terceiros possam ser executados”.

Por outro lado, sustenta também existir um interesse atendível em efetivar um direito de regresso contra os chamados.

Seja como for, parece-nos que, independentemente do concreto interesse que a executada/embargante vise acautelar através do chamamento em causa, e dos concretos autos (de execução ou apenso de embargos de executado) em que pretende que ocorra a intervenção, a sua pretensão está votada ao insucesso.

Desde logo, por princípio, salvo nas situações de litisconsórcio necessário, cabe exclusivamente ao exequente ao exequente, o aqui banco credor hipotecário, escolher o meio processual para efetivar o seu direito, incluído as pessoas que demanda para tal efeito.

Na situação, como a dos autos, em que o crédito exequente beneficia de garantia hipotecária sobre imóvel que não pertence a devedor, nada obsta a que o exequente opte somente por instaurar a execução contra o terceiro o proprietário de tal imóvel, para fazer valer a sua garantia, deixando de fora o devedor daquele crédito, pois que entre o terceiro e o devedor existe, do ponto de vista processual, um litisconsórcio voluntário passivo [Neste sentido, cf. Marco Carvalho Gonçalves, [ Lições de Processo Civil Executivo, Almedina, 5ª Edição, 2023], pag. 231]

Como se afirma o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21 de abril de 2009, “a executada” através de incidente de intervenção provocada, nos termos do art.º 325º e segs. do Código de Processo Civil (…) não pode colocar os chamados na posição de executados, pois é ao exequente que cabe decidir que, das pessoas que no título tem a posição de devedor pretende instaurar a execução”.

Mas ainda que não se seguisse tal posição mais restritiva, a verdade é que a admissibilidade da intervenção (principal) dos chamados para assumirem a posição de executados nunca dispensaria a verificação  legitimidade (passiva) dos mesmos para a execução que, como se sabe,  nos termos do art.º 53º, n.º 1 do Código de Processo Civil, se afere a partir do título executivo. E o certo é que os identificados CC e «A..., Ldª» não constam como devedores do banco exequente no documento particular de compra e venda e mútuo com hipoteca que serve de título à execução, pelo que nunca poderiam ser colocados na posição de executados.

Não se desconhece que no âmbito da intervenção principal provocada, o nº 1 do artigo 317º do Código de Processo Civil atribui ao réu/codevedor solidário a faculdade de chamar os demais devedores solidários para o efeito de reconhecimento e condenação destes no direito de regresso que lhe possa vir a assistir, se tiver de realizar a totalidade da prestação.

Contudo, como bem nota a sentença recorrida, no caso em apreço, não se coloca uma situação de codevedores solidários para o efeito do direito de regresso que a executada parece perspetivar, na medida em que a executada/oponente não assume a qualidade de devedora/mutuária, apenas foi demandada enquanto proprietária do imóvel onerado com  hipoteca que garante o crédito exequendo, pelo que não será de aplicar o disposto no art.º 524º do Código Civil.

Além do mais, parece-nos que tal pretensão sempre seria de rejeitar face à impossibilidade de enxertar em embargos de executado uma outra ação declarativa com vista ao reconhecimento eventual da responsabilidade de um terceiro por força de um alegado direito de regresso, pois esse reconhecimento levaria a uma subversão total do processo executivo [neste sentido o Acórdão do TRL de 30-11-2006, relatado por Ana Paula Boularot, disponível in www.dgsi.pt. em que é invocada a impossibilidade de enxertar nos embargos de executado “uma outra ação declarativa com vista ao reconhecimento eventual da responsabilidade de um terceiro por força de um alegado direito de regresso”, embora como argumento para afirmar que a intervenção acessória não é compatível com a ação executiva, nem mesmo em sede de oposição.]

Poderia ainda equacionar-se se a pretensão que formula a executada apelante corresponderá antes ao incidente de intervenção acessória dos chamados CC e «A..., Ldª» (que não figuram como devedores do título executivo – pois somente pode intervir como parte acessória, na previsão do nº 1 do art.º 321º, «o terceiro carece de legitimidade para intervir como parte principal»), tendo assim, nessa parte, sido indevidamente qualificada como intervenção principal provocada.

Dispõe o n.º1 do artigo 321º, Código de Processo Civil, quanto ao âmbito de aplicação da intervenção acessória: “O réu que tenha ação de regresso contra terceiro para ser indemnizado do prejuízo que lhe cause a perda da demanda pode chamá-lo a intervir como auxiliar na defesa, sempre que o terceiro careça de legitimidade como parte principal.”

O interesse atendível no âmbito de tal incidente é-nos explicitado pelo nº4 do artigo 323º: a sentença que vier a ser proferida constitui caso julgado quanto ao chamado nos termos previstos no artigo 332º, relativamente às questões de dependa o direito de regresso do autor do chamamento, por este invocável em ulterior ação de indemnização.

Se assim é, ainda que se seguisse aquela posição mais permissiva, acima exposta (que, em tese, admite o acidente de intervenção acessória deduzido pelo executado/embargante em sede de embargos de executado), no caso em apreço, não se vislumbra a utilidade desse chamamento acessório.

É que, a apelante, através do pedido de indemnização civil que formulou no processo crime que correu termos no Juízo Local Criminal ... (processo n.º 125/17....) obteve já uma condenação dos aludidos terceiros no cancelamento da hipoteca sobre o imóvel e, se tal não suceder, no pagamento de uma quantia monetária a título indemnizatório.

Por isso, como bem nota a sentença recorrida, também se afigura não estar justificada a ponderação de eventual acessoriedade para efeitos de intervenção, nem a executada configurou qualquer outra acção com conexão ou afectada pela presente oposição, certo ainda que, em teoria, a penhora do imóvel decorre da hipoteca, matéria sobre a qual também correu termos outra acção (cfr. certidão ref. 10630464) – nada se aprecia aqui sobre o mérito da presente oposição – ou, no limite, não foram alegados (pela executada) outros factos para uma eventual ponderação sobre uma outra acção relevante ou que permita conceber um hipotético auxílio na defesa da executada por parte dos terceiros”.

Assim, face ao supra exposto, impõe-se concluir pela improcedência da apelação na parte referente à decisão que indeferiu o incidente de intervenção de terceiros deduzido pela executada."

[MTS]


07/10/2025

Bibliografia (1225)


-- Mazzamuto, S.Trattato di Diritto Privato, Vol. VIII: La tutela dei diritti / Tomo IV: L’esecuzione forzata diretta e indiretta, Giappichelli: Torino, 2025

-- Morotti, M., Contributo allo studio del potere generale di cautela tra giudici di merito e controllo delle corti supreme / Profili di diritto interno e comparato, Giappichelli: Torino, 2025

Jurisprudência 2024 (241)


Processo de inventário;
remessa para os meios comuns


1. O sumário de RC 11/12/2024 (132/20.9T8OHP-A.C1) é o seguinte:

I – Nas questões relativas à determinação dos bens/direitos que integram o património comum a partilhar a regra é a de que o juiz deve dirimir todas as questões suscitadas controvertidas que se revelem indispensáveis para alcançar os fins do processo.

II – Apenas se justifica a remessa dos interessados para os meios comuns quando, estando em causa a complexidade da matéria de facto, a tramitação do processo de inventário se revele inadequada, por implicar uma efetiva diminuição das garantias que estão asseguradas às partes no processo comum.

III – Não deve ser remetida para os meios comuns a questão da averiguação da titularidade de saldos bancários ou aplicações financeiras se tal não envolver larga ou extensa averiguação fáctica e se a apreciação da mesma em sede de inventário não acarretar uma redução das normais garantias das partes.

IV – No inventário para a partilha de bens comuns subsequente a divórcio devem ser relacionados não apenas os bens existentes no património coletivo do casal à data da propositura da ação de divórcio (caso os seus efeitos patrimoniais não devam retrotrair a momento anterior), mas também aqueles que a esse património cada cônjuge deva conferir, por lho dever.

V – Assim, deve ser conferido ao património comum do casal, para ulterior partilha, aquele bem ou direito de que um dos cônjuges se apropriou sem que a tal tivesse qualquer direito, dessa forma logrando um enriquecimento do seu património próprio à custa do património coletivo.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A apelante não se conforma com a decisão recorrida, sustentando que o Tribunal a quo dispunha de todas as condições para, deferindo parcialmente à reclamação contra a relação de bens, decidir que devem ser relacionados dois dos produtos financeiros identificados no ponto 19º da sua reclamação contra a relação de bens - a aplicação de depósito no banco Banco 1... e a aplicação Banco 2... VIDA AFORRO – pelo que, na parte correspondente, não poderia ter sido decidida a remessa das partes para os meios comuns.

Questiona assim a bondade da decisão que remeteu as partes para os meios comuns somente no que se refere à questão da reclamada obrigação de relacionar o saldo bancário do Banco 1... e o valor das aplicações financeiras Banco 2... VIDA AFORRO, que identifica naquele ponto n.º 19 da sua reclamação contra a relação de bens.

Para o efeito, sustenta que, perante a factualidade que foi considerada como provada e não provada na anterior decisão de 23 de maio de 2023 e face às informações bancárias juntas ao processo na sequência de tal decisão, o Tribunal a quo dispunha de todas as condições para, deferindo parcialmente à reclamação contra a relação de bens, determinar o cabeça de casal, aqui apelado, a relacionar o valor correspondente aos dois mencionados produtos financeiros.

Conhecidos os fundamentos da decisão apelada e, bem assim, os razões da oposição/crítica que à mesma dirige a recorrente, vejamos de seguida se assiste razão a esta.

Antes, porém, cumpre fazer uma breve referência às disposições legais em que se fundou a decisão proferida pelo despacho em crise.

O artigo 1093.º do Código de Processo Civil (com e epígrafe outras questões prejudiciais) dispõe:

1 - Se a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados diretos na partilha, mas a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes, o juiz pode abster-se de a decidir e remeter os interessados para os meios comuns.

2 - A suspensão da instância no caso previsto no número anterior só ocorre se, a requerimento de qualquer interessado ou oficiosamente, o juiz entender que a questão a decidir afeta, de forma significativa, a utilidade prática da partilha».

Por seu turno, o art.º 1.105º do Código de Processo Civil (com a epígrafe tramitação subsequente) dispõe:

1 - Se for deduzida oposição, impugnação ou reclamação, nos termos do artigo anterior, são notificados os interessados, podendo responder, em 30 dias, aqueles que tenham legitimidade para se pronunciar sobre a questão suscitada.

2 - As provas são indicadas com os requerimentos e respostas.

3 - A questão é decidida depois de efetuadas as diligências probatórias necessárias, requeridas pelos interessados ou determinadas pelo juiz, sem prejuízo do disposto nos artigos 1092.º e 1093.º

4 - A alegação de sonegação de bens, nos termos da lei civil, é apreciada conjuntamente com a acusação da falta de bens relacionados, aplicando-se, quando julgada provada, a sanção estabelecida no artigo 2096.º do Código Civil.

5 - Se estiver em causa reclamação deduzida contra a relação de bens ou pretensão deduzida por terceiro que se arrogue titular dos bens relacionados e se os interessados tiverem sido remetidos para os meios comuns, o processo prossegue os seus termos quanto aos demais bens. (…)

Em anotação ao (novo) regime do processo de inventário, Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres escrevem o seguinte [O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Almedina, 2020, pp. 10/11.]

O novo modelo do processo de inventário continua a prever a remessa das partes para os meios comuns quando a complexidade da matéria de facto subjacente à questão prejudicial não se compatibilize com a sua apreciação incidental (arts. 1092º,1,b, 1093º,1 e 1095º,1), nomeadamente porque as limitações decorrentes do disposto nos arts. 292º a 295º (aplicáveis ex vi do art. 1091º) afectariam as garantias das partes.

A necessidade desta remessa para os meios comuns é consequência, sob um ponto de vista formal, da estrutura do processo de inventário, e da resolução de inúmeras questões controvertidas em incidentes nominados ou inominados e, sob uma perspectiva substancial, do tipo de questões prejudiciais que podem surgir no processo de inventário (como as respeitantes à interpretação ou validade de um testamento ou à indignidade sucessória de um herdeiro). Estas questões podem ser complexas em matéria de facto, mas o que realmente justifica a remessa dos interessados para os meios comuns não é tanto esta complexidade, mas muito mais a garantia de um processo equitativo a esses interessados”.

E, em anotação ao art.º 1093º do Código de Processo Civil, os citados autores consignam [Obra citada, pags. 48 a 51.]

“As questões prejudiciais abrangidas pelo nº 1 são, fundamentalmente, aquelas que, não dizendo respeito à definição dos direitos sucessórios das partes do processo, se repercutam na determinação quer dos bens que integram o acervo hereditário, quer do passivo pelo qual é responsável o património a partilhar. O nº 1 abrange, por exemplo, os casos em que certo bem foi relacionado pelo cabeça-de-casal como pertencendo à herança ou como tendo determinado conteúdo ou objecto material, mas contra essa relacionação foi deduzida reclamação ou impugnação por qualquer interessado (artº 1104º, nº 1, al. d)) (…)

Sempre que a questão prejudicial respeite apenas a bens que integram o acervo hereditário ou o passivo que onera este acervo, a regra é a de que o juiz – como decorrência do principio segundo qual o Tribunal competente para a ação é também competente para conhecer os incidentes que nela se levantam (art. 91º, nº 1) – deve dirimir todas as questões suscitadas e convertidas que se revelem indispensáveis para alcançar o fim do processo, ou seja, uma partilha equitativa da comunhão hereditária.

No entanto, a apreciação incidental, no âmbito do processo de inventário, das questões atinentes à determinação dos bens que integram o património hereditário ou ao passivo deste património nem sempre será possível ou conveniente: a) O n.º 1 admite que o juiz se possa abster de decidir incidentalmente a questão litigiosa e remeter as partes para os meios comuns, quando a complexidade da matérias de facto subjacente à questão tornar inconveniente, na óptica das garantias de que as partes beneficiam no processo declarativo comum, a sua apreciação e decisão no processo de inventário, atendendo à tramitação simplificadas e às limitações probatórias (que quase só não existem para a prova documental) que caracterizam as decisões tomadas ao abrigo do disposto nos – arts. 1105º, n.º 3, e 1110º, n.º 1, al. a).

Apenas tem justificação a remessa dos interessados para os meios comuns quando, estando unicamente em causa a complexidade da matéria de facto, a tramitação do processo de inventário se revele inadequada. Para que isso suceda é necessário que a tramitação do processo implique uma efetiva diminuição das normais garantias que estão asseguradas às partes no processo declarativo comum (n.º 1). A diminuição destas garantias reflete-se na impossibilidade de se alcançar uma apreciação e decisão ponderadas em questões que envolvam larga indagação factual ou probatória”.

E, nas palavras de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa anotação ao art.º 1093º do Código de Processo Civil [Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2020, Almedina, p. 547.]

“[q]ualquer questão relacionada com a admissibilidade do processo de inventário ou com a definição de direitos de interessados directos na partilha terá de ser decidida no próprio processo. Embora deva ou possa ser determinada a suspensão da instância, nos termos do art. 1092º, os interessados não podem ser remetidos para os meios comuns quanto a tais questões, que são imanentes ao próprio processo de inventário”.

(…) Todavia, podem suscitar-se no âmbito do processo de inventário questões de outra natureza, designadamente conexas com os bens relacionados e/ou com direitos de terceiros para cuja resolução se revelem inadequados os constrangimentos inerentes ao processo de inventário (cf. art. 1091º, n.º 1, quando remete para o regime dos incidentes da instância), cuja tramitação difere substancialmente da prevista para o processo comum ou para outros processos especiais. Nestas situações, embora a apreciação de tais questões não seja excluída em absoluto do processo de inventário, segundo a regra geral do art. 91º, n.º 1, o litígio pode envolver larga indagação fáctica ou a produção demorada de meios de prova, podendo justificar a remessa dos interessados para os meios comuns.

(…) Destacam-se os casos em que para a apreciação das questões se revele inadequada a tramitação do processo de inventário para assegurar as garantias dos interessados, tendo em conta designadamente as restrições probatórias ou a menor solenidade associada a uma tramitação de cariz incidental. Tal poderá ocorrer, por exemplo, quando esteja em discussão a área ou os limites de um imóvel envolvendo divergências com terceiros, a arguição da invalidade da venda de bens relacionados no processo de inventário, a invocação por parte de terceiro ou de um herdeiro, da aquisição por usucapião de um bem relacionado (cf. nº 5 do art. 1105º), a alegação da acessão industrial imobiliária sobre um imóvel relacionado (cf. art. 1339º CC) ou a dedução de um crédito ou de uma dívida da herança relacionada com a realização de benfeitorias”.

A “resolução, no âmbito do processo de inventário, de questões de natureza incidental obedece a uma tramitação menos solene do que a consagrada para o processo comum e mesmo para certos processos especiais, designadamente no que concerne aos meios probatórios admissíveis (arts. 1091 e 1105º, n.º 3), o que poderá justificar que não sejam sacrificados os valores da segurança e da justiça em função da maior celeridade na conclusão do processo de inventário. Para o efeito, será importante apreciar as razões apresentadas, quer no sentido da resolução incidental das questões, quer dos benefícios da remessa para os meios comuns”.

E mais adiante: “a opção de remessa para os meios comuns não pode ser orientada por meras razões de comodidade ou de facilitismos, apenas se justifica quando, estando unicamente em causa a complexidade da matéria de facto, a tramitação do inventário se revele inadequada, por implicar, designadamente, uma efectiva redução das garantias dos interessados, por comparação com o que pode ser alcançado através dos meios comuns”.

A decisão incidental das reclamações em sede de inventário não pressupõe necessariamente que as questões suscitadas possam ser objeto, pela sua simplicidade, de uma indagação sumária, mediante apenas certos tipos de prova, maxime documental, seguida de decisão imediata: a regra é a de que o tribunal da causa tem competência para dirimir todas as questões que importem à exata definição do acervo hereditário a partilhar, podendo no entanto, excecionalmente, em caso de particular complexidade da matéria de facto a apreciar – e para evitar redução das garantias das partes – usar da possibilidade prevista no estatuído no n.º 1 do art.º 1093º do Código de Processo Civil [Carlos Lopes do Rego, Comentários ao CPC, vol. II, 2ª ed., Almedina, 2004, p. 268, em anotação ao art. 1350º do CPC de 1961.]

E faz sentido que assim seja, que seja destacada na lei a complexidade da matéria de facto a apreciar – e não a matéria jurídica – dado que é a prova da matéria de facto subjacente às questões suscitadas (que as partes têm o ónus de alegar e provar) que pode tornar-se mais difícil para as partes, com as necessárias limitações das provas a produzir no incidente do processo de inventário, questão também realçada no n.º 1 do art.º 1093º do CPC, de que a inconveniência da apreciação da matéria de facto implique a redução das garantias das partes [Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 2/02/2023, processo n.º 176/18.0T8VPC-D.G1 (relatora Maria Amália Santos), in www.dgsi.pt.]

Ora, no caso concreto, está em causa a reclamação contra a relação de bens, mais especificamente discutindo-se necessidade de relacionar o saldo bancário de uma conta do Banco 1... e os produtos financeiros Banco 2... VIDA AFORRO, cuja falta (de relacionação) foi acusada pela ora recorrente, na sua reclamação contra a relação de bens.

E o certo é que, na decisão de 25 de maio de 2023 (já transitada em julgado) que se pronunciou (parcialmente) sobre a decisão contra a relação de bens, provou-se que:

- No dia 23.03.2015 o cabeça de casal procedeu ao resgate de €3.498,65 da aplicação de prazo fixo – deposito especial Banco 1... 3 Anos, para a conta n.º ...01 e transferiu o montante de €3.518,09 para a conta de terceira pessoa, sem o conhecimento da interessada (facto n.º 4 da mesma decisão).

- A Conta ...33, no Banco 2..., SA, que em 30/09/2014 tinha um saldo de € 27.404,64 consignado em dois produtos designados por Banco 2... VIDA AFORRO com os números  ...17, no montante de €5.480,93 e  ...17, no montante de €21.923,71 (facto n.º 6 da dita decisão);

Por outro lado, na resposta à reclamação contra a relação de bens, o cabeça de casal, ora recorrido, não alegou quaisquer factos que permitissem concluir que o dinheiro depositado na mencionada conta Banco 1... e aplicado nos mencionados produtos financeiros Banco 2... estava excluído da comunhão conjugal, limitando-se a referir que “antes de ser decretado o divórcio existiram movimentos a débito em contas de depósitos bancários, para fazer face a despesas correntes que eram da responsabilidade de ambos os cônjuges, nomeadamente obras de reparação e conservação na casa sita em Portugal”, factualidade essa que, naquela mesma decisão, foi considerada como não provada.

Assim sendo, perante a matéria de facto alegada, restaria apenas apurar a natureza da aplicação financeira  dos produtos designados Banco 2... Vida Aforro (o que, como melhor se verá adiante, será essencial para determinar de bem comum ou antes de bem próprio subscritor/beneficiário dos mesmos) e determinar se o cabeça de casal se apropriou ilegitimamente das correspondentes quantias, o que, em nosso entender.

Salvo melhor opinião, tal tarefa poderá bastar-se com a análise de prova documental. Seja através dos documentos bancários que já se encontram juntos ao autos de inventário (e cuja veracidade não foi colocada em causa por qualquer das partes) -  mormente aqueles que permitirão aferir as datas dos levantamentos/resgates das quantias em causa e a titularidade das contas bancárias onde, posteriormente a isso, foram os correspondentes valores depositados –  seja por meio de outros elementos documentais que poderão ainda ser solicitados ao Banco 3... e à Seguradora A..., tais como os contratos – e respetivas cláusulas – que titulam os produtos financeiros associados à identificada conta Banco 2..., de forma a permitir a qualificação jurídica dos mesmos.

Por conseguinte, não subscrevemos o entendimento seguido pela Sra. Juíza a quo de que as questões a apreciar, na parte que concerne ao aludido depósito Banco 1... e aos produtos financeiros Banco 2..., envolvam uma extensa e complexa indagação fáctica.

E, salvo o devido respeito, também não subscrevemos o seu entendimento de que a decisão dessas concretas questões no inventário pendente reduziria as garantias das partes.

Por isso, concluímos que a apreciação da sobredita questão da relacionação, ou não, dos valores atinentes ao identificado depósito no Banco 1... e aos seguros de Vida Banco 2... AFORRO não poderia ter merecido a mesma solução que a decisão recorrida deu às demais questões relacionadas com a alegada falta de relacionação de outras contas bancárias e aplicações financeiras (de cuja bondade não cabe aqui apreciar, por estar excluída do objeto do recurso), sendo, por isso, de revogar a decisão que relegou as partes para os meios processuais comuns, na parte concernente às questões que a recorrente colocou à apreciação deste Tribunal."

[MTS]


06/10/2025

Bibliografia (1224)


-- Abrantes Geraldes, A. / Pimenta, P. / Pires de Sousa, L. F., Código de Processo Civil Anotado I, Almedina: Coimbra, 2025

Jurisprudência 2025 (6)


Acção de anulação de deliberação social;
valor da causa*


1. O sumário de RL 14/1/2025 (2942/23.6T8VFX.1.L1-1) é o seguinte:

I - Mesmo em caso de concordância das partes sobre o valor indicado para a acção, o Tribunal deve fixá-lo pela aplicação dos critérios legais enunciados para o efeito.

II - Embora deva ocorrer normalmente no despacho saneador, nada obsta a que a fixação do valor da acção ocorra anteriormente a tal despacho.

III - Na acção de anulação de deliberação social, onde se pretende anular uma deliberação sobre o relatório de gestão e as contas anuais do exercício de determinado ano, não é possível apurar os efeitos patrimoniais directos da mesma, nem a sua utilidade económica para os sócios, situando-se assim a acção no âmbito dos interesses imateriais.

IV - Deste modo, o valor da acção deverá coincidir com o da alçada da relação, acrescida de um cêntimo (art.º 303º nº 1 do Código de Processo Civil), ou seja, será de fixar à acção o valor de 30.000,01 €.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O Código de Processo Civil estabelece, nos seus artºs. 292º a 295º, as regras gerais a que deverão obedecer quaisquer incidentes inseridos na tramitação de uma causa (os designados incidentes da instância), quando não exista regulamentação especial para esse efeito.

Assim, estabelece-se no art.º 293º do Código de Processo Civil que, no requerimento em que se suscite o incidente e na respectiva oposição, “devem as partes oferecer o rol de testemunhas e requerer os outros meios de prova”, havendo um prazo de dez dias para dedução da referida oposição, cuja falta “determina, quanto à matéria do incidente, a produção do efeito cominatório que vigore na causa em que o incidente se insere”.

De acordo com o art.º 294º do Código de Processo Civil, cada parte não pode produzir mais que cinco testemunhas e os depoimentos prestados antecipadamente ou por carta são gravados nos termos do art.º 422º do Código de Processo Civil.

Por último, estabelece o artigo 295º do Código de Processo Civil, a propósito da tramitação final dos incidentes da instância, que, finda a produção da prova, “pode cada um dos advogados fazer uma breve alegação oral, sendo imediatamente proferida decisão por escrito, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no art.º 607º”. De referir ainda que, nos subsequentes artºs 296º e ss. do Código de Processo Civil, são especialmente regulados diversos incidentes da instância, designadamente o de verificação do valor da causa, a intervenção de terceiros, a habilitação e a liquidação.

Ora, a propósito do incidente de verificação do valor da causa, há que ter em atenção o art.º 296º nº 1 do Código de Processo Civil, o qual dispõe que “a toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido”.

Estipula, por sua vez, o art.º 305º nº 1 do Código de Processo Civil que “no articulado em que deduza a sua defesa, pode o réu impugnar o valor da causa indicado na petição inicial, contanto que ofereça outro em substituição; nos articulados seguintes podem as partes acordar em qualquer valor”. Adianta o nº 2 do preceito que, “se o processo admitir unicamente dois articulados, tem o autor a faculdade de vir declarar que aceita o valor oferecido pelo réu”. Por seu turno, o nº 3 refere que “quando a petição inicial não contenha a indicação do valor e, apesar disso, haja sido recebida, deve o autor ser convidado, logo que a falta seja notada e sob cominação de a instância se extinguir, a declarar o valor; neste caso, dá-se conhecimento ao réu da declaração feita pelo autor e, se já tiverem findado os articulados, pode o réu impugnar o valor declarado pelo autor”. Por fim, o nº 4 do normativo dispõe que “a falta de impugnação por parte do réu significa que aceita o valor atribuído à causa pelo autor”.

Consagra ainda o art.º 306º do Código de Processo Civil que:

“1 – Compete ao juiz fixar o valor da causa, sem prejuízo do dever de indicação que impende sobre as partes”.
“2 – O valor da causa é fixado no despacho saneador, salvo nos processos a que se refere o nº 4 do artigo 299º e naqueles em que não haja lugar a despacho saneador, sendo então fixado na sentença”.
“3 – Se for interposto recurso antes da fixação do valor da causa pelo juiz, deve este fixá-lo no despacho referido no artigo 641º”.

Determina, também, o art.º 308º do Código de Processo Civil que, “quando as partes não tenham chegado a acordo ou o juiz o não aceite, a determinação do valor da causa faz-se em face dos elementos do processo ou, sendo estes insuficientes, mediante as diligências indispensáveis, que as partes requererem ou o juiz ordenar”.

Dos citados artigos resulta, desde logo, que a competência para fixação do valor da causa compete ao Juiz, pelo que, mesmo havendo acordo entre as partes relativamente a tal valor, não concordando o Juiz com o mesmo, deverá proceder à sua determinação em face dos elementos constantes do processo ou, sendo estes insuficientes, proceder à realização das diligências que considere indispensáveis, não só requeridas pelas partes, como decididas oficiosamente (art.º 308º do Código de Processo Civil).

Conforme referem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, 2018, pg. 356):

“Certo é que, independentemente das posições assumidas pelas partes, o Juiz sempre terá de se debruçar sobre o assunto e fixar o valor da causa, sem estar vinculado a qualquer dos valores indicados ou aceites por aquelas (artigo 306º, nº 1)”. [...]

*
g) Por fim, vejamos se é de alterar o valor da acção.

Entendeu o Tribunal “a quo” que o valor da acção seria o valor do balanço de 31/12/2022. Assim, decidiu atribuir à causa o valor de 6.271.263 €.

Fundamentou a sua decisão dizendo que “o valor da acção que tenha por escopo a anulação de deliberação social corresponde ao valor da deliberação que constitui o acto jurídico anulando – art.º 301º nº 1, do CPCivil”. “No caso, pede-se a anulação da deliberação social que aprovou o balanço de 2022, da deliberação social que aprovou a aplicação do resultado líquido de 2022 e da deliberação social de apreciação geral da administração e fiscalização da sociedade”. Entendeu o Tribunal que apenas a primeira das três deliberações tem uma “utilidade imediata económica”, pelo que é o valor desta a determinar o valor da acção.

Estamos, “in casu”, perante uma acção de anulação de deliberações sociais, a qual se mostra prevista no art.º 59º do Código das Sociedades Comerciais.

*
h) Nos termos do disposto no art.º 296º do Código de Processo Civil, “a toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal (…)” (nº 1), sendo a este valor que se atenderá para “determinar a competência do tribunal, a forma do processo de execução comum e a relação da causa com a alçada do tribunal” (nº 2).

O valor da causa há-de representar a utilidade económica imediata que pela acção se pretende obter (cf. art.º 296º nº 1, segunda parte, do Código de Processo Civil).

Assim, se na acção se pede uma quantia certa em dinheiro, a importância pedida marca o valor da acção, mas “se pela acção se pretende obter benefício diverso do pagamento de quantia certa, o valor da acção será a quantia em dinheiro equivalente a esse benefício” (cf. art.º 297º nº 1 do Código de Processo Civil).

Porém, “estando em causa a existência, validade, cumprimento, modificação ou resolução de um negócio jurídico, “atende-se ao valor do acto determinado pelo preço ou estipulado pelas partes” (cf. art.º 301º nº 1 do Código de Processo Civil).

Tratando-se de deliberação social, “tudo depende do conteúdo e alcance da deliberação cuja anulação se pretende. Há-de atender-se, pois, ao que a deliberação, em si, representa para a vida e funcionamento da sociedade” (cf. José Alberto dos Reis, in “Comentário ao Código de Processo Civil”, Vol. III, pg. 622)

“Acções sobre interesses imateriais correspondem às acções cujo objecto não tem valor pecuniário (…). Visam à declaração ou efectivação de um direito extra-patrimonial” (cf. José Alberto dos Reis, in “Comentário ao Código de Processo Civil”, Vol. III, pg. 625).

No caso em apreço, conforme já se referiu, pretendem as recorrentes que se anulem as seguintes deliberações:

“Primeiro – Deliberar sobre o relatório de gestão e as contas anuais do exercício de 2022, incluindo a aprovação do Balanço, Relatório de Gestão e restantes documentos de prestação de contas do referido exercício;
Segundo – Deliberar sobre a proposta de aplicação do resultado líquido do exercício de 2022;
Terceiro – Proceder à apreciação geral da administração e fiscalização da sociedade”.

Conforme bem se refere na decisão “sub judice”, à última deliberação não se pode atribuir uma utilidade imediata económica. A segunda deliberação, por sua vez, não apresenta autonomia face à primeira.

E será possível atribuir um valor económico à primeira?

Entendemos que não.

Com efeito, a deliberação sobre o relatório de gestão e as contas anuais do exercício de 2022 (incluindo a aprovação do Balanço, Relatório de Gestão e restantes documentos de prestação de contas do referido exercício), não diz respeito à atribuição ou distribuição de lucros, não sendo possível apurar os efeitos patrimoniais directos da mesma, nem a sua utilidade económica para os sócios.

Assim sendo, a presente acção, ainda que respeitante a uma deliberação social, não tem, pelo seu alcance, um valor pecuniário, situando-se, sim, no âmbito dos interesses imateriais.

E, assim sendo, o valor da acção deverá coincidir com o da alçada da relação, acrescida de um cêntimo (cf. artºs. 303º nº 1 do Código de Processo Civil e 44º nº 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário - Lei nº 62/2013, de 26/8), ou seja, será de fixar à acção o valor de 30.000,01 €."

*3. [Comentário] O decidido no acórdão talvez permita concluir que, quando os interesses patrimoniais são meramente reflexos de interesses não patrimoniais, a acção tem por objecto interesses imateriais.  Noutros termos: só pode ser atribuído um valor patrimonial à acção quando os efeitos patrimoniais sejam uma consequência directa do pedido do autor.

MTS