"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



19/05/2016

Jurisprudência (353)




Divórcio por mútuo consentimento; desistência do pedido;
termo final


1. O sumário de RP 29/2/2016 (1150/14.1TBPNF.P1) é o seguinte:

I - Diversamente do que sucede com o disposto no artigo 21º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o legislador não fixou no processo especial de divórcio por mútuo consentimento qualquer termo final para a atendibilidade da desistência do pedido no divórcio por mútuo por consentimento.

II - Cada um dos cônjuges é titular do direito potestativo de extinção do vínculo matrimonial dirigido contra o outro cônjuge, podendo cada um deles exercê-lo sem ou com o acordo do outro cônjuge, não havendo assim qualquer litisconsórcio necessário ativo.

III - Não obstante o acordo de ambos os cônjuges na dissolução do matrimónio, cada um deles continua a ser titular do direito potestativo extintivo do vínculo conjugal, dirigido contra o outro cônjuge, apenas se alterando as condições de exercício desse direito potestativo, razão pela qual um só dos cônjuges pode desistir do pedido de divórcio depois de decretado o divórcio por mútuo consentimento mas antes do trânsito em julgado da sentença.
2. Para se compreender o sumariado no ponto I (que aparentemente junta duas coisas que nada têm a ver entre si), é essencial considerar o que estava em causa no acórdão: 
"A recorrente pugna pela revogação da sentença que homologou a desistência do pedido de divórcio requerido pelo recorrido já após o decretamento por sentença do divórcio por mútuo consentimento das partes e ainda antes do trânsito em julgado da mesma sentença, abonando-se para tanto, em síntese, nos seguintes argumentos:

- a desistência do pedido de divórcio por mútuo consentimento, por parte de um só dos cônjuges, apenas é legalmente viável até ao termo da conferência prevista no nº 1 do artigo 996º do Código de Processo Civil, norma excecional que afasta a regra geral quanto à admissibilidade da desistência do pedido;

- tratando-se de um caso de litisconsórcio necessário ativo, não pode um só dos cônjuges pôr termo à instância.

Cumpre apreciar e decidir.

Antes de tomarmos posição sobre a questão em análise, deve salientar-se que se trata de polémica que não é jurisprudencialmente virgem, já que sobre a mesma se debruçou especificamente o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24 de maio de 2012, tirado por maioria no processo nº 632/10.9TMLSB.L1-6, acessível no site da DGSI, acórdão que não passou despercebido às partes e ao qual, no segmento que respetivamente lhes convém, cada uma delas aderiu.

Nos termos da alínea d) do artigo 277º do Código de Processo Civil, a instância extingue-se com a desistência.

O autor pode, em qualquer altura, desistir de todo o pedido ou de parte dele (artigo 283º, nº 1, do Código de Processo Civil), operando a desistência do pedido a extinção do direito que se pretendia fazer valer. Porém, existem casos em que o legislador baliza temporalmente de forma diversa e mais restritiva o termo final de admissibilidade da desistência do pedido, como sucede no caso do artigo 21º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas [...].

Ao contrário da desistência da instância, a desistência do pedido é livre, mas não prejudica a reconvenção, a não ser que o pedido reconvencional seja dependente do formulado pelo autor (artigo 286º, nº 2, do Código de Processo Civil). Contudo, no caso de litisconsórcio necessário, a desistência de algum dos litisconsortes só produz efeitos quanto a custas (artigo 288º, nº 2, do Código de Processo Civil).

Em princípio, não é permitida a desistência que afirma a vontade das partes relativamente a direitos indisponíveis (artigo 289º, nº 1, do Código de Processo Civil). Porém, é livre a desistência nas ações de divórcio e de separação de bens (artigo 289º, nº 2, do Código de Processo Civil).

O nº 1 do artigo 996º do Código de Processo Civil prescreve que “[s]e a conferência a que se refere o artigo 1776º do Código Civil terminar por desistência do pedido por parte de ambos os cônjuges ou um deles, o juiz faz consigná-la na ata e homologa-la” [...]

Na posse dos elementos normativos necessários à tomada de posição sobre a questão decidenda, prossigamos na análise dos argumentos aduzidos pela recorrente para firmar a sua pretensão de revogação da sentença que homologou a desistência do pedido efetuada pelo cônjuge marido após o decretamento do divórcio por mútuo consentimento, mas antes da sentença de divórcio transitar em julgado.

O artigo 996º, nº 1, do Código de Processo Civil é uma norma excecional que afasta a regra geral de admissibilidade temporal da desistência do pedido no processo de divórcio por mútuo consentimento?

A nosso ver a resposta à interrogação que se acaba de formular é claramente negativa pois que, diversamente do que sucede com o já citado artigo 21º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o legislador não fixou qualquer termo final para a atendibilidade da desistência do pedido no divórcio por mútuo por consentimento.

O que resulta do artigo 996º, nº 1, do Código de Processo Civil é apenas que a desistência do pedido pode provir de apenas um dos cônjuges e, sendo esta manifestada na conferência, será consignada em ata e homologada.

Na nossa perspetiva, com a previsão legal que temos vindo a apreciar, o legislador apenas terá tido o cuidado de vincar que a desistência do pedido podia provir de um só dos cônjuges, a fim de afastar entendimentos que, numa homenagem cega ao princípio pacta sunt servanda, exigissem a manifestação concordante de ambos os cônjuges para que a desistência do pedido fosse relevante.

E será o caso dos autos um litisconsórcio necessário ativo, pelo que a desistência do pedido para ser relevante carece de ser manifestada por ambos os cônjuges?

O litisconsórcio necessário ocorre sempre que a lei ou o negócio exigir a intervenção de vários interessados na relação controvertida (artigo 33º, nº 1, do Código de Processo Civil), sendo essa intervenção igualmente necessária quando pela própria natureza da relação jurídica, ela seja imprescindível para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal (artigo 33º, nº 2, do Código de Processo Civil).

No caso dos autos, a lide iniciou-se como divórcio sem consentimento do outro cônjuge, tendo ambos os cônjuges acordado na conversão do divórcio sem consentimento do outro cônjuge, em divórcio por mútuo consentimento.

Significa isto que os dois cônjuges são titulares de um único direito potestativo extintivo do vínculo conjugal que os une?

A nosso ver, cada um dos cônjuges é titular do direito potestativo de extinção do vínculo matrimonial dirigido contra o outro cônjuge, podendo cada um deles exercê-lo sem ou com o acordo do outro cônjuge.

No caso de ambos os cônjuges estarem de acordo em pôr termo ao vínculo conjugal, como sucedeu no caso dos autos, não cremos que isso implique uma fusão dos direitos potestativos de cessação do vínculo conjugal de que cada um dos cônjuges é titular e o seu encabeçamento unitário na pessoa de ambos os cônjuges.

Assim, a nosso ver, não existe no caso dos autos qualquer litisconsórcio necessário ativo pois que, não obstante o acordo de ambos os cônjuges na dissolução do matrimónio, cada um deles continua a ser titular do direito potestativo extintivo do vínculo conjugal, dirigido contra o outro cônjuge, apenas se alterando as condições de exercício desse direito potestativo.

Prevendo o legislador que um só dos cônjuges possa na conferência desistir do pedido, na falta de expressa tomada de posição do legislador a fixar o termo final da desistência nessa conferência, em derrogação à regra geral vertida no artigo 283º, nº 1, do Código de Processo Civil, não se divisam quaisquer razões para que essa desistência não se possa manifestar até ao trânsito em julgado da sentença que decreta o divórcio por mútuo consentimento. Pelo contrário, atenta a natureza pessoal dos interesses objeto do litígio e por maioria de razão face aos litígios em que se discutem meros interesses patrimoniais, afigura-se-nos que se justifica que a cada um dos cônjuges seja conferida a máxima liberdade para desistir do pedido até ao trânsito em julgado da sentença que decretou o divórcio por mútuo consentimento."


MTS