"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



05/09/2019

Jurisprudência 2019 (69)


Competência material; 
tribunais administrativos e fiscais; Tribunal dos Conflitos*


1. O sumário de STJ 26/3/2019 (2468/15.1T8CHV-A.G1.S1) é o seguinte:

I - A competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento da propositura da causa, nos termos do art. 5.º, n.º 1 do ETAF, aprovado pela Lei n.º 13/2002, 19-02, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente.

II - Perante uma relação contratual estabelecida entre um ente público, no caso uma autarquia local (embargante) e uma instituição particular de solidariedade social (embargada/exequente), o enquadramento a fazer para efeitos de competência para a execução das obrigações assumidas no “Protocolo de Cooperação” dado à execução deve ser feito à luz das disposições do ETAF (art. 4.º, n.º 1, als. e) e f)), que disciplinam a matéria contratual. 

III - Em consequência, não merece censura o acórdão recorrido que, tendo por base o referido em II e ao abrigo do disposto no art. 157.º, n.º 4 do CPTA, defere a competência material para o prosseguimento dos autos aos tribunais administrativos.

2. Na fundamentação do acórdão afirmou.se o seguinte:

"No caso presente, entendeu o Acórdão recorrido ser de deferir a competência aos tribunais administrativos considerando que, na altura, uma das competências das Câmaras Municipais era a de celebrar protocolos com entidades que desenvolvessem atividades de prestação de serviços a estratos sociais desfavorecidos ou dependentes (cfr. art. 64.º, n.º 4, al. c), e art. 67.º da Lei que estabelece o quadro de competências, assim como o regime jurídico de funcionamento, dos órgãos dos municípios e das freguesias, aprovada pela Lei n.º 169/99, de 18 de setembro, na redação introduzida pela Lei n.º 5-A/2002, de 11 de janeiro), estando, pois, em causa uma relação jurídica regulada, sob o ponto de vista material, pelo Direito Administrativo.

Enquadrou, por conseguinte, o caso dos autos na competência material dos tribunais administrativos, ao abrigo dos artigos 1.º, n.º 1, e 4.º, n.º 1, al. e), do ETAF, e artigo 212.º, n.º 3, da CRP, por estar em causa uma execução referente ao incumprimento de um contrato administrativo, fazendo referência aos Acórdãos do Tribunal de Conflitos de 16/12/2004 (Proc. n.º 04/04), de 09/09/2010 (Proc. n.º 011/10) e de 30/06/2011 (Proc. n.º 01/11), todos respeitantes a protocolos celebrados por municípios e que deferiram a competência aos tribunais administrativos, bem como ao Acórdão do mesmo tribunal de 12/05/2016 (Proc. n.º 03/16), todos disponíveis em www.dgsi.pt.

A ora Recorrente entende, contudo, nas respetivas conclusões do seu recurso de revista que está em causa uma relação jurídica de direito privado por ele regulada, porquanto, embora admita que se está perante um contrato, entende que uma correta interpretação do artigo 4.º, n.º 1, al. e), do ETAF, em conjugação com os demais preceitos que disciplinam a matéria da competência, deve levar à conclusão de que os tribunais judiciais são os competentes por estar em causa um contrato em que interveio uma entidade da administração local desprovida de qualquer autoridade de direito público ou de qualquer das suas prerrogativas, sem que o contrato tenha sido precedido de quaisquer formalidades pré-contratuais, ou sequer que o tivesse de ser por estas não serem exigidos por lei específica ou geral. [...]

Ora, no caso presente, afigura-se-nos merecer concordância a decisão da Relação.

Resulta do “Protocolo de Cooperação” apresentado à execução (fls. 153 vs. a 155), objeto de aprovação em reunião ordinária de 11/12/2006 da Câmara Municipal de --- (fls. 155 vs. a 157) e igualmente aprovado em sessão ordinária da Assembleia Municipal de --- realizada no dia 29/12/2006 (fls. 157 vs. a 162 vs.), ter este Município se comprometido a atribuir à Santa Casa da Misericórdia de --- um apoio financeiro de um milhão de Euros, transferindo semestralmente uma quanta de € 33.333,33, durante o período de 15 anos.

Tal quantia destinar-se-ia a comparticipar os custos com a construção, aquisição de material, conservação de espaços, entre outras despesas, com referência, por um lado, às atividades já desenvolvidas pela ora Exequente no âmbito do apoio à melhoria das condições de vida da população, através do apoio à família, proteção à infância, juventude e terceira idade, através dos equipamentos e atividades já a funcionar e, por outro, com respeito à construção de uma unidade de cuidados continuados e de uma unidade de medicina física e de reabilitação cujas obras se encontravam em fase de conclusão (cfr. cláusulas 1.ª, 2.ª e 3.ª do Protocolo).

Para além disso, previram as partes, como contrapartida, que a ora Exequente disponibilizaria gratuitamente, durante o período de 15 anos, os serviços de fisioterapia/fisiatria aos munícipes portadores do cartão municipal do idoso total, comprometendo-se, ainda, a doar ao Município um determinado prédio urbano, no qual está implantado o edifício do infantário (cláusula 4.ª do Protocolo).

Ora, atentos os termos e condições do referido Protocolo afigura-se-nos que as partes estabeleceram, efetivamente (e sem que resulte dos autos que tal seja objeto de contestação), uma verdadeira relação contratual, na medida em que são estabelecidas deveres e obrigações recíprocas que resultam de um acordo de vontades.

Estamos, assim, conforme decidiu o acórdão recorrido, perante uma relação contratual estabelecida entre um ente público, no caso uma autarquia local, como é a ora Embargante, e uma instituição particular de solidariedade social, correspondente ao Exequente, pelo que o enquadramento a fazer para efeitos de competência para a execução das obrigações assumidas no referido “Protocolo” deve ser feito à luz das disposições do ETAF que disciplinam a matéria contratual, sem prejuízo do seu enquadramento global no que se entenda ser uma relação jurídico-administrativa.

*3. [Comentário] O presente acórdão não suscita dúvidas tanto quanto ao seu conteúdo, mas mais sobre o motivo pelo qual o STJ aceitou a competência para apreciar o recurso. Com efeito, tendo a Relação considerado que os tribunais judiciais não têm competência material para apreciar a acção, porque esta pertence aos tribunais administrativos, fica sem se perceber por que razão não se aplicou o disposto no art. 101.º, n.º 2, CPC, que determina que, nesse caso, a competência para fixar o tribunal competente pertence ao Tribunal dos Conflitos.

MTS