"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



17/02/2021

Jurisprudência 2020 (150)


Insolvência; qualificação;
recurso; matéria de facto; anulação da decisão


1. O sumário de RP 14/7/2020 (1467/15.8T8STS-J.P1é o seguinte:

I - A decisão que qualifica a insolvência como fortuita é vinculativa em sede de incidente de exoneração do passivo restante, obstando a que conduta que podia ter sido valorada em sede de qualificação de insolvência possa ser autonomamente relevada em sede de exoneração do passivo restante e com total indiferença face ao decidido naquele outro incidente.

II - Embora a previsão do artigo 665º do Código de Processo Civil tenha precipuamente em vista a decisão que põe fim ao processo, ou seja, em regra, a sentença, afigura-se-nos que a teleologia subjacente ao preceito determina que também seja aplicável às decisões que põem termo a um incidente que apresente a estrutura de uma causa (veja-se o nº 2, do artigo 152º do Código de Processo Civil).

III - Para efeitos de fundamentação de facto, de factos provados ou não provados, não importa o que as partes eventualmente declararam ou indicaram, mas sim o que o tribunal conclui em face da globalidade da prova documental e pessoal produzida e julga provado ou não provado.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Nos termos do disposto no artigo 185º do CIRE, a insolvência é qualificada como culposa ou fortuita, mas a qualificação atribuída não é vinculativa para efeitos da decisão de causas penais, nem das ações a que se reporta o nº 3 do artigo 82º do mesmo código.

A contrario sensu, retira-se que fora das causas penais, bem como das ações a que se reporta o nº 3, do artigo 82º do CIRE, a qualificação da insolvência é vinculativa, produzindo os efeitos próprios de qualquer decisão judicial, ou seja, caso julgado material e formal (artigos 619º, nº 1 e 620º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil).

Por outro lado, decorre do artigo 187º do CIRE que se o devedor insolvente já houver sido como tal declarado insolvente em processo anteriormente encerrado, o incidente de qualificação da insolvência só é aberto se o não tiver sido naquele processo em virtude da aprovação de um plano de pagamento aos credores [...], ou for provado que a situação de insolvência não se manteve ininterruptamente desde a data da sentença de declaração anterior. Desta previsão retira-se um efeito de consunção típico do caso julgado em matéria penal [...] e que não é de modo algum alheio ao caráter sancionatório da qualificação da insolvência com gravosas consequências patrimoniais e pessoais para os afetados por tal qualificação.

A questão da vinculatividade da decisão proferida no incidente de qualificação da insolvência em sede de incidente de exoneração do passivo restante não é jurisprudencialmente virgem, havendo um vasto lastro de decisões de tribunais superiores que se debruçaram sobre esta problemática e que se pronunciaram todos no sentido da decisão que qualificou a insolvência como fortuita ser vinculativa em sede de incidente de exoneração do passivo restante, obstando a que conduta que pudesse ser valorada em sede de qualificação de insolvência pudesse ser autonomamente relevada em sede de exoneração do passivo restante e com total indiferença face ao decidido naquele outro incidente.

Assim, sem preocupações de exaustividade, vejam-se por ordem cronológica os seguintes acórdãos, todos acessíveis na base de dados da DGSI:

- acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29 de fevereiro de 2012, proferido no processo nº 170/11.2TBMGR-C.C1;

 - acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24 de abril de 2012, proferido no processo nº 399/11.3TBSEI-E.C1;

 - acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 03 de dezembro de 2012, proferido no processo nº 1462/11.6TJVNF-D.P1;

 - acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 04 de março de 2013, proferido no processo nº 1043/12.7TBOAZ-E.P1;

 - acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11 de novembro de 2013, proferido no processo nº 4133/11.0TBMTS-F.P1;

 - acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 03 de abril de 2014, proferido no processo nº 1084/13.7TBFAF-H.G1;

 - acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 24 de abril de 2014, proferido no processo nº 159/13.7TBPTB-F.G1.

 
No caso em apreço, a matéria que o tribunal recorrido relevou para indeferir o incidente de exoneração do passivo restante já lhe estava acessível desde os começos de 2017 e se acaso entendia que era relevante para a qualificação da insolvência, bastava-lhe fazer uso dos poderes inquisitórios que lhe são facultados pelo artigo 11º do CIRE.

O que é de todo incongruente é qualificar a insolvência como fortuita e, depois, em sede de exoneração do passivo restante, convocar factos de há muito cognoscíveis para tal efeito, ao menos no entendimento do tribunal recorrido, e que não foram de todo considerados em sede de qualificação da insolvência.

Esta postura incongruente do tribunal recorrido só se percebe, a nosso ver, por algum pensamento por consequências, sem se ter uma visão completa do regime jurídico aplicável.

De facto, ainda que de forma não totalmente expressa, é notório que o tribunal a quo foi particularmente sensível aos efeitos decorrentes da afetação da recorrente pela qualificação da insolvência no processo que correu termos relativamente à sociedade D…, SA e à circunstância de em caso de deferimento do incidente de exoneração do passivo restante, na sua perspetiva, poder ficar prejudicada a condenação da aqui recorrente a indemnizar os credores naquele outro processo de insolvência.

Sucede porém que aquela responsabilidade patrimonial da ora recorrente resulta de condutas dolosas integradoras de factos ilícitos [...], por isso não abrangida pela exoneração do passivo restante, ex vi artigo 245º, nº 2, alínea b) do CIRE.

Assim, face a quanto precede, conclui-se que, tendo sido qualificada como fortuita a insolvência da recorrente, estava vedado ao tribunal recorrido lançar mão de factualidade de que podia ter feito uso em sede de qualificação de insolvência para afastar o benefício da exoneração do passivo restante por entender que a mesma indicia, com toda a probabilidade, a existência de culpa da devedora na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186º do CIRE e assim indeferir com tal fundamento o incidente de exoneração do passivo restante, ao abrigo do disposto na alínea e), do nº 1, do artigo 238º do CIRE.

Uma vez que a decisão sob censura pôs termo ao incidente de exoneração do passivo restante [...], afigura-se-nos que opera a regra da substituição constante do nº 2, do artigo 665º do Código de Processo Civil.

Na verdade, embora a previsão do artigo 665º do Código de Processo Civil tenha precipuamente em vista a decisão que põe ao processo, ou seja, em regra, a sentença, afigura-se-nos que a teleologia subjacente ao preceito determina que também seja aplicável às decisões que põem termo a um incidente que apresente a estrutura de uma causa (veja-se o nº 2, do artigo 152º do Código de Processo Civil).

Ora, o despacho recorrido, impropriamente denominado pelo legislador de despacho liminar já que precedido de contraditório, é uma decisão que aprecia do preenchimento dos pressupostos necessários ao deferimento inicial do incidente de exoneração do passivo restante e, no caso de a apreciação ser negativa, como sucedeu no caso em apreço, põe termo ao incidente.

Deste modo, conclui-se que cumpre apreciar da verificação dos pressupostos necessários ao deferimento inicial do incidente de exoneração do passivo restante, tal como previsto no nº 2, do artigo 665º do Código de Processo Civil.

No entanto, afigura-se-nos que este tribunal de recurso não dispõe dos elementos necessários para o efeito porquanto apenas foi produzida prova documental e a fundamentação de facto do tribunal recorrido enferma de insuficiências impassíveis de ser supridas em segunda instância, atento o aludido circunstancialismo probatório (veja-se a alínea c), do nº 2, do artigo 662º do Código de Processo Civil). [...]

Em conclusão, a apelação procede, devendo revogar-se a decisão recorrida de indeferimento do incidente de exoneração do passivo restante com fundamento no disposto na alínea e), do nº 1, do artigo 238º do CIRE e, uma vez que este tribunal não dispõe dos elementos necessários ao suprimento das insuficiências dos “fundamentos de facto” da decisão recorrida e necessários à prolação do despacho inicial sobre o incidente de exoneração do passivo restante, anulam-se os pontos supra elencados sob os nº 3.1.10 e 3.1.11, que se extirpam dos fundamentos de facto pelas razões antes expostas, determinando-se que se proceda ao apuramento da situação económica da recorrente, com a necessária produção de prova documental e pessoal de modo a que sejam prestados os esclarecimentos antes indicados e depois disso se profira nova decisão."

[MTS]