"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



05/03/2025

Jurisprudência 2024 (119)


Processo de inventário;
avaliação de bens; licitações


1. O sumário de RG 23/5/2024 (2714/21.2T8BCL.G1) é o seguinte:

I - No actual processo de inventário, instituído pelo Lei n.º 117/19, contrariamente ao que acontecia no anterior Código de Processo Civil, o despacho determinativo da forma à partilha é proferido antes da conferência de interessados, das eventuais avaliações de bens (art.º 1114º), das licitações (art.º 1113º) e do incidente de redução de doações (art.º 1118º), destinando-se apenas a definir as quotas ideais de cada um dos interessados independentemente do resultado daquelas.

II - Para que tal despacho sobre o modo como deve ser organizada a partilha, definindo as quotas ideais de cada um dos interessados, possa ser proferido, têm de se mostrar já decididas todas as questões susceptíveis de influírem na partilha e na determinação dos bens a partilhar (art.º 1110º nº 1 al. a) do CPC).

III - No regime da comunhão geral de bens estão excluídos da comunhão os objectos de uso pessoal e exclusivo de cada um dos cônjuges (art.º 1733º, al. f) do Código Civil, doravante CC), pelo que a aliança de casamento do cônjuge marido não integra o património comum do dissolvido casal, não se atendendo ao seu valor para o cálculo das meações dos inventariados, mas apenas para o acervo da herança a partilhar deixada pelo de cujus a quem pertencia.

IV - Nos termos do art.º 2104º do CC, os descendentes que pretendam entrar na sucessão do ascendente devem restituir à massa da herança, para igualação da partilha, os bens ou valores que lhes foram doados por este: esta restituição tem o nome de colação.

V - Quando a doação é feita a favor de descendente por conta da quota disponível dos doadores, afastada se mostra a igualdade na partilha e, atento o disposto nos art.º 2113º do CC, a herdeira legitimária donatária está dispensada de colação, ou seja, para entrar na sucessão dos seus pais não tem o dever de restituir o bem doado à massa da herança, para igualação da partilha.

VI - Significa isto, que, não havendo lugar a colação, o bem comum doado já não existe no património dos doadores – a imputação de metade do valor do bem doado por morte de cada um doadores (art.º 2117º do CC), destina-se apenas ao cálculo do valor da quota disponível para aferir da eventual inoficiosidade da doação. Só os restantes bens integram o património comum e a respectiva meação, nesse património, a herança a partilhar pela por óbito da inventariada. Já a herança a partilhar por óbito do cônjuge supérstite é constituída pelo valor da sua meação, pelo bem próprio, e pela sua quota na herança de sua pré defunta esposa.

VII - Inoficiosidade da doação que nunca poderá ser invocada nem beneficiará a herdeira testamentária, aqui recorrente, mas apenas o outro herdeiro legitimário (art.º 2169º do CC. Sendo requerida a redução da doação, por meio do incidente previsto numa fase processual posterior à presente (artºs 1118º e 1119 do CPC), a mesma poderá ser reduzida no montante indispensável ao preenchimento da legítima ofendida, o que na prática leva à imputação do excesso na quota legitimária da donatária. Em princípio só haverá lugar à restituição (em regra do valor e não da coisa) se e na medida em que a doação dispensada de colação exceda o valor da quota disponível dos doadores e da quota legitimária da donatária.

VIII - Até ao início das licitações é admissível requerer-se a avaliação de bens. As licitações terão por valor base o que constar da relação de bens, ou do acordo das partes, ou o da avaliação, se for esta for requerida.

IX - Ao determinar-se que “(…) os aludidos preenchimento e composição dos quinhões hereditários serão efectuados em função dos valores das licitações, quanto aos bens que forem licitados, e dos demais valores dos restantes bens”, e não, como pretende a apelante, apenas em função do valor da avaliação, não se está a “tratar desfavoravelmente a parte que, pela sua situação económica, não possa entrar na licitação”, pois que o valor base da licitação será sempre o da avaliação, avaliação que a recorrente poderá requerer, caso discorde dos valores atribuídos na relação de bens (art.º 1114º do CPC) e o excesso da licitação será contabilizado na massa do activo a partilhar (somam-se os valores dos bens com os aumentos provenientes das licitações).

X - Só existiria tratamento desfavorável se se admitisse licitação por valor inferior, interpretação que, dada a redacção do nº 3 do art.º 1113º e a inserção sistemática do art.º 1114º, nº 1, ambos do CPC, entendemos colidir com o sentido e alcance de tais normas.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"No despacho recorrido determinou-se que “(…) os aludidos preenchimento e composição dos quinhões hereditários serão efetuados em função dos valores das licitações, quanto aos bens que forem licitados, e dos demais valores dos restantes bens”.

Segundo a recorrente, do assim determinado resulta, que, no preenchimento dos quinhões hereditários, apenas se terá em conta o valor das licitações relativamente aos bens que forem licitados, excluindo o valor atribuído pela avaliação dos mesmos.  Situação que, no entender do recorrente, corresponde a tratar desfavoravelmente a parte que, pela sua situação económica, não possa entrar na licitação, revelando-se tal interpretação inconstitucional por violação do princípio da igualdade entre as partes, previsto no n.º 1 do art.º 13º da Constituição da República Portuguesa.

Cremos que a apelante está a configurar a hipótese de os bens serem licitados por valor inferior ao da avaliação.

Sem prejuízo do que a seguir se expenderá, cremos que a parte final do despacho recorrido ultrapassa as questões que se impunha conhecer nesta fase, pois só subsequentemente se colocarão as questões relativas ao preenchimento e composição dos quinhões hereditários (artºs. 1111º a 1120º nº 1 do CPC), o que, contudo, não sindicaremos, por extravasar o objecto do recurso.

Apreciando

Numa fase posterior à determinação da forma à partilha, já em sede de elaboração do mapa da partilha, notificados os interessados para apresentarem proposta de mapa da partilha, da qual constem os direitos de cada interessado e o preenchimento dos seus quinhões, de acordo com o despacho determinativo da partilha e os elementos resultantes da conferência de interessados, estabelece o art.º 1120º nº 3 do CPC:

Para a formação do mapa determina-se, em primeiro lugar, a importância total do ativo, somando-se os valores de cada espécie de bens conforme as avaliações e licitações efetuadas e deduzindo-se as dívidas, legados e encargos que devam ser abatidos, após o que se determina o montante da quota de cada interessado e a parte que lhe cabe em cada espécie de bens, e por fim faz-se o preenchimento de cada quota com referência às verbas ou lotes dos bens relacionados.

Redacção que não difere da prevista no art.º 1375º nº 2 do antigo CPC (Para a formação do mapa acha-se, em primeiro lugar, a importância total do activo, somando-se os valores de cada espécie de bens conforme as avaliações e licitações efectuadas e deduzindo-se as dívidas, legados e encargos que devam ser abatidos; em seguida, determina-se o montante da quota de cada interessado e a parte que lhe cabe em cada espécie de bens; por fim, faz-se o preenchimento de cada quota com referência aos números das verbas da descrição)

Entendemos que, neste conspecto, não há razões para divergir de doutrina e jurisprudência, há muito firmadas no domínio do anterior CPC, no sentido de que se somam os valores dos bens (resultante de avaliação ou acordo das partes) com o aumento eventualmente resultante das licitações [Ver a título meramente exemplificativo uma das fórmulas sugeridas por João António Lopes Cardoso em Partilhas Judiciais, 4º edição (1990) Vol. II, pág. 382: “somam-se os valores dos bens descritos com o aumento proveniente das licitações”, a mesma expressão se usando nas fórmulas a fls. 383, 388, etc.]. É esse o sentido da norma actual que não diverge da anterior.

Efectivamente, nos termos do art.º 1114º nº 1 do CPC:

1 - Até à abertura das licitações, qualquer interessado pode requerer a avaliação de bens, devendo indicar aqueles sobre os quais pretende que recaia a avaliação e as razões da não aceitação do valor que lhes é atribuído.
2 - O deferimento do requerimento de avaliação suspende as licitações até à fixação definitiva do valor dos bens.

Sobre as licitações rege o art.º 1113º e sobre o excesso de licitação o art.º 1116º, ambos do CPC.

Intuindo-se que o valor base de tal licitação será o da avaliação.

Neste sentido diz-se no sumário do acórdão do TRC de 20-9-2016 (proc. n.º748/06.6TBLMG.C1) in www.dgsi.pt: 

«(…) 2. A faculdade de os interessados reclamarem contra o valor dos bens antes das licitações não visa senão evitar que a base de licitação esteja acentuadamente falseada - a base de licitação, a concretização desta e o valor final da herança a partilhar são pressupostos de que depende, obviamente, a partilha que se pretende equitativa e justa; a justa determinação do valor constitui regra de imperativa aceitação, pois é mercê dela que vai atribuir-se a cada um aquilo a que tem legítimo direito.

3. O n.º 1 do art.º 1362º, do CPC, limitou o momento até ao qual é admissível o requerimento de avaliação de bens (“até ao início das licitações”) de modo a evitar a inutilização de licitações já efectuadas, em consonância com os princípios da economia e da boa fé processual.

4. Não sendo deduzida reclamação até ao início das licitações (contra eventuais excessos da avaliação) e/ou na falta de acordo dos interessados para uma nova alteração do valor dos bens, o valor da avaliação constituirá a base de partida das licitações

Jurisprudência que se mantém actual, por não ter sido introduzida alteração nesta matéria com a Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro.

Assim sendo, não se vislumbra como possa a recorrente ser prejudicada, pois que o valor base da licitação será sempre o da avaliação, avaliação que poderá requerer, caso discorde dos valores atribuídos na relação de bens (art.º 1114º do CPC).

A posterior licitação partirá desse valor, e, se o bem for licitado por valor superior, o acréscimo relevará para o valor a partilhar e concomitantemente, para o valor dos quinhões hereditários, cujo preenchimento e composição terá de ser efectuado em função dos valores das licitações, quanto aos bens que forem licitados, ou da avaliação relativamente aos que o não forem, como dispõe o art.º 1120º nº 3 do CPC.

Pelo exposto, não acompanhamos as conclusões da apelante, por o despacho em crise não colidir com o direito à igualdade das partes."

[MTS]