1. O art. 830.º, n.º 5, CC estabelece, no âmbito de uma acção de execução específica de um contrato-promessa, o seguinte:
"No caso de contrato em que ao obrigado seja lícito invocar a excepção de não cumprimento, a acção improcede, se o requerente não consignar em depósito a sua prestação no prazo que lhe for fixado pelo tribunal".
A questão que, de forma breve, se pretende elucidar é a seguinte: qual é a função que a excepção de não cumprimento desempenha na norma que consta do art. 830.º, n.º 5, CC?
2. a) Dado que a excepção de não cumprimento (regulada no art. 428.º CC) é uma excepção peremptória (art. 576.º, n,º 3, CPC), poder-se-ia entender que a resposta teria de ser a seguinte: essa excepção deve ser invocada na contestação do réu apresentada na acção de execução específica (art. 574.º, n.º 2, CPC). Trata-se, no entanto, de uma resposta equivocada.
Se a excepção de não cumprimento tivesse de ser alegada na contestação do réu, isso significaria que, a ter alguma relevância essa invocação, o réu teria de terminar a contestação pedindo a sua absolvição do pedido (art. 576.º, n.º 3, CPC). É claro que exigir que o réu invoque a excepção, mas não tenha de formular o correspondente pedido de absolvição, é um formalismo inconsequente. Se se alega a excepção de não cumprimento e não se retira a respectiva consequência (que é a absolvição do pedido), cabe então perguntar para quê é que se invoca a excepção. Já alguma vez se interpretou o disposto no art. 574.º, n.º 2, CPC como impondo ao réu o ónus de invocar uma qualquer excepção dilatória ou peremptória, mas não o ónus de formular o correspondente pedido? É claro que não, porque uma alegação sem consequências é uma alegação inútil.
Assim, para que tudo isto faça algum sentido, a exigência da alegação da excepção de não cumprimento na contestação tem de ser acompanhada da exigência da formulação do respectivo pedido de absolvição quanto ao mérito nessa mesma contestação. Esta conclusão conduz, de imediato, à seguinte pergunta: faz sentido que o réu de uma acção de execução específica possa pedir a sua absolvição do pedido com base na circunstância de o autor ainda não ter realizado a sua contraprestação?
A resposta a esta questão só pode ser negativa. Se se concluísse que o réu de uma acção de execução específica poderia invocar a excepção de não cumprimento, isso implicaria que qualquer autor que instaurasse uma tal acção teria de ter realizado a sua contraprestação antes da propositura da acção (ou, para ser mais rigoroso, teria de a realizar, o mais tardar, até ao encerramento da discussão em 1.ª instância (art. 611.º, n.º 1, CPC)). No fundo, seria como se o que se dispõe no art. 715.º, n.º 1, CPC no âmbito do processo executivo também valesse na acção de execução específica de um contrato-promessa.
A ser assim, então a realização pelo autor da sua prestação sinalagmática seria uma condição da procedência da acção de execução específica por ele proposta. Se, por exemplo, a execução específica respeitasse a um contrato-promessa de compra e venda de um imóvel, o autor comprador teria de pagar o preço acordado antes de propor contra o vendedor a acção de execução específica (ou, pelo menos, teria de liquidar o preço até ao encerramento da discussão em 1.ª instância).
Não é difícil perceber que nada disto faz sentido, porque o autor não pode ser obrigado a realizar a sua prestação sinalagmática antes de obter a execução específica do contrato-promessa. Se assim fosse, a acção de execução específica seria uma verdadeira "auto-execução" do autor sobre ele próprio, porque, antes de obter a procedência da acção de execução específica, já tinha a obrigação de realizar a sua contraprestação.
Além disso, se o autor estivesse obrigado a realizar a sua contraprestação antes da decisão proferida na acção de execução específica, então isso significaria que, em caso de improcedência da acção, o autor passaria a ter um direito à restituição da prestação que, entretanto, tinha realizado à contraparte. Como é conhecido, o regime não é este -- e compreendem-se muito bem as razões pelas quais não pode ser este.
b) Em conclusão: qualquer exigência da alegação da exceptio non adimpleti contractus na contestação do réu que é demandado numa acção de execução específica é desprovida de sentido, dado que não é aceitável nem que se exija a alegação dessa excepção sem que haja o ónus de pedir a correspondente absolvição do pedido, nem que o réu possa pedir esta absolvição por o autor ainda não ter cumprido a contraprestação a que se encontra vinculado.
3. Com base no exposto, resta interpretar adequadamente o estabelecido no art. 830.º, n.º 5, CC. O que nele se dispõe é, afinal, o seguinte: de modo a evitar que o réu seja condenado na acção de execução específica sem que haja a garantia de que o autor realiza a sua contraprestação, o art. 830.º, n.º 5, CC permite que aquele demandado possa requerer que o autor consigne em depósito essa contraprestação (não -- note-se -- que cumpra a contraprestação).
Do afirmado decorre qual é a função da excepção de não cumprimento no disposto no art. 830.º, n.º 5, CPC: essa função é a de fundamentar o pedido formulado pelo réu de que o autor consigne em depósito a contraprestação a que está obrigado. Quer dizer: o réu pode requerer que o autor consigne em depósito a prestação a que está vinculado, porque, em caso de procedência da acção de execução específica, aquele demandado pode invocar contra aquele demandante a excepção de não cumprimento. É bem claro que o réu não alega a excepção de não cumprimento para obter a absolvição do pedido, mas antes para justificar o pedido de consignação em depósito da contraprestação do autor.
Isto também implica que, se a excepção de não cumprimento serve de fundamento ao pedido do réu de consignação em depósito da prestação do autor, então essa mesma excepção só tem de ser invocada no momento em que se requer essa consignação. Se não for reconhecido que o réu pode invocar contra o autor a excepção de não cumprimento, falta o fundamento para requerer a consignação em depósito da prestação a ser realizada pelo demandante e o requerimento deve ser indeferido.
É nesta base (simples, coerente e compreensível) que deve ser interpretada a referência à excepção de não cumprimento que consta do art. 830.º, n.º 5, CC.
MTS