"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



12/11/2025

Jurisprudência 2025 (30)


Penhora de bens;
arrendamento; inoponibilidade


1. O sumário de STJ 13/2/2025 (5178/10.2TBCSC-B.L2.S1) é o seguinte:

I. A penhora deve ser entendida como a atividade prévia à venda ou à realização da prestação que consiste na apreensão, pelo Tribunal, de bens do executado ou na colocação à sua ordem de créditos deste valor sobre terceiros e na sua afetação ao pagamento do exequente, destinando-se a individualizar os bens e direitos que respondem pelo cumprimento da obrigação pecuniária através da ação executiva.

II. É de atribuir à penhora uma função de garantia, ou seja, beneficiar o credor que promoveu a execução perante outros credores, aqueles que não tenham garantia real anterior, sendo que esta garantia pressupõe, necessariamente, uma outra função atribuída à penhora, qual seja, a função conservatória, visando assegurar a viabilidade da venda executiva dos bens ou direitos sujeitos a penhora, pretendendo-se que o bem, objeto do direito penhorado, não seja desencaminhado ou diminuído no seu valor (indisponibilidade jurídica absoluta), outrossim, pretende-se que a faculdade de disposição do direito penhorado que incide sobre o bem apreendido, e que o executado mantém na sua esfera jurídica, não possa ser exercida de modo a privar a venda do seu objeto (indisponibilidade jurídica relativa).

III. Tendo em vista que o objeto do direito penhorado não pode deixar de satisfazer o crédito do exequente, mediante a respetiva venda coerciva, não se permitindo tampouco, diminuir o seu valor, importa reconhecer que o direito substantivo civil retira da esfera jurídica do executado o direito de, após a penhora, dar de arrendamento o bem penhorado, de tal sorte que, mesmo que o seja, o contrato não é oponível na execução, ou releva para a mesma, conforme decorre da impressão literal, acompanhada da interligação e valoração do preceituado no art.º 819º do Código Civil, na redação introduzida pelo art.º 5º do Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de março.

 
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"II. 3.1. Considerada a facticidade adquirida processualmente, o Tribunal a quo fez errada subsunção jurídica da mesma, na medida em que, contrariamente ao sentenciado, impõe-se reconhecer o direito dos Embargantes/AA e BB à manutenção da vigência do ajuizado contrato de arrendamento, enquanto arrendatários do imóvel penhorado, mesmo que a outorga deste tenha ocorrido posteriormente à penhora, repristinando-se o decidido em 1ª Instância?

Cotejado o acórdão recorrido, anotamos que o Tribunal a quo, perante a facticidade demonstrada nos autos, concluiu, no segmento decisório, e para o que aqui interessa, atento o thema decidendum da presente revista, revogar a decisão proferida em 1ª Instância, e, em sua substituição, decidiu julgar totalmente improcedentes os embargos de terceiro.

O aresto escrutinado ao problematizar a questão a apreciar, qual seja, saber se o arrendamento celebrado posteriormente à penhora do respetivo imóvel é oponível ao exequente, sopesando as conclusões formuladas pelas Apelantes/Embargantes/AA e BB, no confronto com a sentença recorrida e com a pretensão jurídica formulada e respetivos fundamentos, sustentou que, se, após a penhora, o executado dispuser, onerar, ou der de arrendamento, o bem penhorado, o negócio jurídico é inoponível no âmbito da execução, não relevando para a mesma, conforme decorre do direito substantivo civil - art.º 819º do Código Civil - que determina a inoponibilidade à execução do arrendamento de bens penhorados, e do art.º 822º do mesmo diploma legal que consagra a penhora, enquanto direito real de garantia, traduzida na apreensão e conservação do bem penhorado para, por meio do produto da sua venda, obter o cumprimento coercivo da obrigação exequenda.

O Tribunal recorrido apreendeu a real conflitualidade subjacente à demanda trazida a Juízo tendo proferido aresto, fazendo apelo a um enquadramento jurídico-normativo posto em crise com a interposição da presente revista, sustentação jurídica que, de resto, adiantamos desde já, acompanhamos.

O nosso ordenamento jurídico, assumindo o princípio segundo o qual o património do devedor é a garantia ge­ral do credor, estabelece que pelo cumprimento de uma obrigação respondem, em regra, todos os bens do devedor suscetíveis de penhora - art.º 601º do Código Civil - .

A responsabilidade patrimonial do devedor não atribui ao credor a direito de se apropriar dos bens daquele ou de se substituir ao devedor na recuperação dos seus créditos sobre terceiras, isto é, não lhe concede faculdade de se satisfazer diretamente à custa do património do devedor mediante a apropriação dos bens ou a exigência da satisfação dos créditos que pertencem a este sujeito, mas, tão só, concede ao credor a faculdade de executar o património do devedor, isto é, de fazer penhorar bens e direitos deste titular passivo com vista à sua posterior venda ou cobrança - art.º 817º do Código Civil - .

Entendemos a penhora como a atividade prévia à venda ou à realização da prestação que consiste na apreensão, pelo Tribunal, de bens do executado ou na colocação à sua ordem de créditos deste valor sobre terceiros e na sua afetação ao pagamento do exequente.

A penhora destina-se a individualizar os bens e direitos que respondem pelo cumprimento da obrigação pecuniária através da ação executiva, significando que a penhora só se justifica enquanto a obrigação exequenda subsistir e a execução estiver pen­dente.

Decorre também do direito substantivo civil - art.º 822º do Código Civil - atribuir à penhora uma função de garantia, ou seja, beneficiar o credor que promoveu a execução perante outros credores, aqueles que não tenham garantia real anterior, sendo que esta garantia pressupõe, necessariamente, uma outra função atribuída à penhora, qual seja, a função conservatória, visando assegurar a viabilidade da venda executiva dos bens ou direitos sujeitos a penhora, pretendendo-se que o bem, objeto do direito penhorado, não seja desencaminhado ou diminuído no seu valor (indisponibilidade jurídica absoluta), outrossim, pretende-se que a faculdade de disposição do direito penhorado que incide sobre o bem apreendido, e que o executado mantém na sua esfera jurídica, não possa ser exercida de modo a privar a venda do seu objeto (indisponibilidade jurídica relativa).

Donde, se após a penhora, o executado der de arrendamento, o bem penhorado, e assumindo que o objeto do direito penhorado não pode deixar de satisfazer o crédito do exequente, mediante a respetiva venda coerciva, ou, tampouco, pode ser diminuído o seu valor, importa considerar o normativo substantivo civil que, claramente, retira da esfera jurídica do executado o direito de, após a penhora, dar de arrendamento o bem penhorado, de tal sorte que, mesmo que o seja, o contrato não é oponível na execução, ou releva para a mesma.

Na verdade, como bem adianta o Tribunal recorrido, “Estatui o art. 819º do Código Civil: “Sem prejuízo das regras do registo, são inoponíveis em relação à execução os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados.”

Esta redação resulta da reforma de 2003, acrescentando-se aos anteriores atos de “disposição” e “oneração” já no artigo consagrados, o contrato de “arrendamento”.

A consagração expressa do contrato de arrendamento no preceito significou assim que o legislador o quis integrar no lote dos atos jurídicos e contratos realizados/outorgados pelo executado, após a penhora, os quais considera inoponíveis na execução.

O que bem se compreende, pois que este negócio tem virtualidade para frustrar ou, ao menos, prejudicar os efeitos que se pretendem para o ato da penhora.”

Em abono do reconhecimento desta orientação, importa realçar que na interpretação das leis, conforme decorre do direito substantivo civil: “o interprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” - art.º 9º n.º 3 do Código Civil - .

A este propósito, Pires de Lima e Antunes Varela, in, Código Civil anotado, Volume I, página 16, em anotação ao aludido preceito substantivo civil sustentam que “o sentido decisivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal, do relatório do diploma ou dos próprios trabalhos preparatórios”, destacando-se, por isso, que na exegese da lei, descortinando o respetivo sentido e alcance, não se deverá atender somente à letra da lei, sendo pacificamente aceite que na respetiva interpretação também intervêm elementos lógicos, de ordem sistemática (condizente à ordem jurídica em que se integra a norma jurídica a interpretar, importando a consideração da unidade do sistema jurídico), histórica (reconhecimento e consideração dos acontecimentos históricos que aclaram a criação da lei, concretamente, os trabalhos preparatórios e todo a realidade social que envolveu o seu aparecimento) e racional ou teleológica (a razão de ser da lei sustentada na respetiva justificação e no objetivo pretendido com a sua criação).

A interpretação da lei exige, assim, a consideração do elemento literal que necessariamente encerra o primeiro passo, todavia, importa atender que deverá ser obrigatoriamente acompanhado daqueles enunciados elementos lógicos, que integram “todos os restantes factores a que se pode recorrer para determinar o sentido da norma”, nas palavras de Oliveira Ascensão, in, O Direito Introdução e Teoria Geral, 13ª Edição Refundida, página 407, que afirma ainda, a propósito, “Antes devemos distinguir uma apreensão literal do texto, que é o primeiro e necessário momento de toda interpretação da lei, pois a letra é o ponto de partida. Procede-se já a interpretação, mas a interpretação não fica ainda completa. Há só uma primeira reacção em face da fonte, e não o apuramento do sentido, E ainda que venha a concluir-se que esse sentido é de facto coincidente com a impressão literal, isso só se tomou possível graças a uma tarefa de interligação e valoração, que excede o domínio literal”, ibidem, página 406, o que, de resto, se identifica com o pensamento de Baptista Machado, in, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1994, páginas 181 e 182 quando declara “Convém salientar, porém, que o elemento gramatical (“letra da lei”) e o elemento lógico (“espírito da lei”) têm sempre que ser utilizados conjuntamente. Não pode haver, pois, uma modalidade de interpretação gramatical e uma outra lógica; pois é evidente que o enunciado linguístico que é a “letra da lei” é apenas um significante, portador de um sentido (“espírito”) para que nos remete.”

Interiorizados estes ensinamentos, e revertendo ao caso sub iudice, acentuamos que o legislador disse o que queria ao incluir, aditando, no art.º 819º do Código Civil, na redação introduzida pelo art.º 5º do Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de março, aos anteriores atos de “disposição” e “oneração” dos bens penhorados, inoponíveis em relação à execução, o contrato de “arrendamento” que tem por objeto aqueles mesmos bens penhorados.

Ou seja, a impressão literal, acompanhada da interligação e valoração do preceituado no art.º 819º do Código Civil, na redação introduzida na reforma de 2023 (art.º 5º do Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de março), impõe o reconhecimento de que, se, após a penhora, o executado der de arrendamento o bem penhorado, o negócio jurídico é inoponível no âmbito da execução, não relevando para a mesma.

E não se diga, salvo o devido respeito por opinião contrária, como sustentam os Recorrentes/Embargantes/AA e BB que, a não ser levada a cabo uma interpretação restritiva da norma contida no art.º 819º do Código Civil, na redação introduzida na reforma de 2023 (art.º 5º do Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de março), excluindo a sua aplicação a arrendamentos habitacionais, incorrer-se-á em inconstitucionalidade, por violação do disposto nos artºs. 65º n.º 1 e 26º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.

A vertente mais significativa do direito a habitação enquanto “direito económico social e cultural” contém-se na sua dimensão positiva, isto é, no direito dos cidadãos às medidas e prestações estaduais adequadas à concretização do objetivo ali enunciado, o direito a obter uma habitação adequada e condigna a realização da condição humana, em termos de preservar a intimidade pessoal e a privacidade familiar.

Ao contrário, a chamada dimensão negativa do direito a habitação, traduz-se num mero dever de abstenção do Estado e de terceiros em ordem a não praticarem atos que possam prejudicar a efetiva realização daquele direito.

O Tribunal Constitucional vem afirmando, repetidamente, que, no plano desta vertente do direito a habitação não pode aceitar-se como constitucionalmente exigível que a realização daquele direito esteja dependente de limitações intoleráveis e desproporcionadas de direitos de terceiros (que não o Estado), direitos esses, porventura também constitucionalmente consagrados.

Seja qual for a natureza de direito à habitação, ele não confere ao cidadão um direito imediato a uma prestação efetiva, tendo como único sujeito passivo o Estado - e as regiões autónomas e os municípios - e nunca, ao menos em princípios, os proprietários ou senhorios, para além de que o cidadão só pode exigir o seu cumprimento nas condições e termos definidos pela lei, no caso, impor-se-á o acatamento da lei substantiva civil - art.º 819º do Código Civil - como vimos de discretear. O reconhecimento do direito à habitação não pode implicar que os arrendatários disponham das mesmas, sem qualquer limitação.

De igual modo, não distinguimos como se pode apontar a inconstitucionalidade do art.º 819º do Código Civil, na redação introduzida na reforma de 2023 (art.º 5º do Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de março), quando não interpretado restritivamente, excluindo a sua aplicação a arrendamentos habitacionais, por violação do disposto no art.º 26º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa que textua: “A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.”

Não divisamos, com a interpretação e aplicação da norma que vimos de consignar, qualquer violação de outros direitos pessoais consagrados constitucionalmente (art.º 26º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa).

A leitura jurisdicional do art.º 819º do Código Civil, na redação introduzida na reforma de 2023 (art.º 5º do Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de março), com a interpretação dela feita, no sentido de não excluir a sua aplicação a arrendamentos habitacionais, que, no fundo, coincide com a solução legalmente expressa, não afronta qualquer norma, princípio ou parâmetro constitucional.

Pelo exposto, na improcedência das conclusões retiradas das alegações, trazidas à discussão pelos Recorrentes/Embargantes/AA e BB, não reconhecemos à respetiva argumentação, virtualidade bastante no sentido de alterar o destino da demanda, traçado no Tribunal recorrido."


*3. [Conclusões] O STJ decidiu segundo o direito e, portanto, bem.

No entanto, ao contrário do que seria de esperar, isto não é tudo o que se pode dizer sobre o acórdão do STJ. Nas conclusões das suas alegações, o recorrente afirmou o seguinte:

"3) Não obstante o douto acórdão de uniformização de jurisprudência do STJ n.º 2/2021, de 5 de Agosto, se refira a uma situação em que o contrato de arrendamento foi celebrado após a hipoteca mas ainda antes da penhora do locado, a verdade é que as razões que então levaram o Tribunal a decidir pela prevalência do arrendamento habitacional sobre a hipoteca aplicam-se, no essência, também à penhora [...]."

Não pode deixar de se dar razão ao Recorrente. Seria contra a unidade do sistema jurídico que o contrato de arrendamento celebrado após a hipoteca do imóvel houvesse de subsistir e que esse mesmo contrato, quando concluído depois da penhora do imóvel, tivesse de caducar. Recorde-se que, quando haja bens do devedor onerados com uma garantia real, a penhora inicia-se por esses bens (art. 752.º, n.º 1, CPC), pelo que o que vale para bens arrendados depois da penhora tem de valer para bens arrendados depois da hipoteca e que, posteriormente, vão ser bens penhorados.

Nesta base, não se sabe o que se há-de estranhar mais: se a infeliz uniformização de jurisprudência que consta do Ac. STJ 2/2021, se o proferimento de um acórdão que, em termos sistemáticos, contraria essa uniformização.

MTS