"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



11/11/2025

Jurisprudência 2025 (29)


Caso julgado formal;
eficácia temporal


1. O sumário de STJ 13/2/2025 (2136/20.2T8VFX-G.L1.S1) é o seguinte: 

I. O caso julgado formal, relativo a decisões relativas a questões ou matérias que não são de mérito, tal como previsto no art. 620º, 1, do CPC, constitui-se e produz efeitos «nos precisos limites e termos em que julga» (art. 621º CPC), o que implica a determinação exacta do âmbito objectivo e extensão do conteúdo da decisão a aferir como transitada.

II. A delimitação do conteúdo («limites e termos em que julga») da decisão processual implica que se faça uma adequada interpretação do seu âmbito, de acordo com a sua fundamentação.

III. A decisão processual como caso julgado apenas se constitui no âmbito endógeno do processo desde que – se assim forem identificados num nexo de conexão e instrumentalidade – não se verifique certa condição, o decurso de certo prazo ou a prática de determinado facto, se e na medida em que esses eventos negativos possam ser qualificados como verdadeiros pressupostos dos seus limites objectivos, de acordo com a 2.ª parte do art. 621º, 1, do CPC; se se verificarem, e enquanto se verificarem, a eficácia de caso julgado não se produz e nada obsta a que se decida novamente sobre o objecto da decisão proferida, uma vez que o poder jurisdicional não se encerrou.

IV. Se a condição se verificar supervenientemente, deixando de ser a decisão proferida imodificável dentro do processo, o art. 621º do CPC permite que o alcance do caso julgado dentro do processo caduque, perdendo a sua eficácia intraprocessual, e se possa proferir nova decisão diversa da proferida, afastando-se assim o art. 625º, 2, do CPC, na situação de caso julgado formal; logo, a partir dessa nova decisão, diversa da anteriormente proferida por força da verificação da condição que foi requisito negativo da decisão originária, não temos caso julgado formal anterior que possa ser oposto (e susceptível de ofensa) a essa decisão nova e às decisões subsequentes que nela radicam, pois é perante essa nova decisão, uma vez transitada, que se passa a exigir imodificabilidade nos termos dos art. 620º, 1, e 621º do CPC.

 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

3.1. O art. 620º, 1, do CPC estatui:

«As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.»

Este caso julgado formal, relativo a decisões relativas a questões ou matérias que não são de mérito, tem como corolários fundamentais:

(i) as sentenças, acórdãos e despachos transitados têm força obrigatória de tal forma que são imodificáveis no interior do processo em que são proferidos e é inadmissível (ineficaz: art. 625º, 2, CPC) decisão posterior e/ou decisão contrária ou desrespeitadora sobre a mesma questão ou matéria sobre o qual incidiram (extinção do poder jurisdicional: art. 613º CPC);

(ii) o caso julgado constitui-se e produz efeitos «nos precisos limites e termos em que julga» (art. 621º CPC), o que implica a determinação exacta do âmbito objectivo e extensão do conteúdo da decisão a aferir como transitada [V. JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil anotado, Volume 2.º, Artigos 362.º a 626.º, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2021 (reimp.), “Artigo 620º”, págs. 752-753, “Artigo 621º”, págs. 754-755. Recentemente, não obstante as variantes dos casos concretos, Acs. do STJ de 3/5/2023, processo n.º 1182/20, 17/10/2023, processo n.º 3372/18, e de 28/1/2025, processo n.º 1572/21, sempre como Rel. RICARDO COSTA, in www.dgsi.pt.]

Assim sendo, a “ofensa de caso julgado”, como vício na modalidade de caso julgado “formal”, implicaria em termos recursivos a invocação de decisão ou decisões transitadas em julgado que contendam e/ou se sobreponham ao conteúdo e efeitos da decisão que alegadamente desrespeita a questão anteriormente decidida.

Por outro lado, a decisão processual como caso julgado apenas se constitui no âmbito endógeno do processo desde que – se assim forem identificados num nexo de conexão e instrumentalidade – não se verifique certa condição, o decurso de certo prazo ou a prática de determinado facto, se e na medida em que esses eventos negativos possam ser qualificados como verdadeiros pressupostos dos seus limites objectivos, de acordo com a 2.ª parte do art. 621º, 1, do CPC; se se verificarem, e enquanto se verificarem, a eficácia de caso julgado não se produz e nada obsta a que se decida novamente sobre o objecto da decisão proferida, uma vez que o poder jurisdicional não se encerrou [Sobre a aplicação da doutrina do art. 621º ao caso julgado formal, v., favoráveis e exemplificativos, JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, “Artigo 621º”, ob. cit., pág. 757 (em relação com a pág. 755: “visando a obtenção duma decisão diversa da proferida, quando a condição se verifique, o prazo esteja decorrido ou o facto seja praticado”).]

3.2. Sobre a questão recursiva, o acórdão recorrido fundamentou como se transcreve:

“Em resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, foi produzida uma panóplia de legislação no nosso ordenamento jurídico, de que se destaca o normativo convocado na decisão proferida no âmbito do processo principal, em 28/06/2021, igualmente confirmada nessa mesma data neste apenso de liquidação: isto é, o art. 6º-E/8, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação, conferida pela Lei n° 13-B/2021, de 5 de abril.

Rezava tal preceito legal que «1 – No decurso da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, as diligências a realizar no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal regem-se pelo regime excecional e transitório previsto no presente artigo. (…) 8- Nos casos em que os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis sejam suscetíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou dos credores do insolvente, ou um prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvida a parte contrária. (...)”

Independentemente da bondade da aplicação de tal normativo à situação dos autos, que não está em discussão nesta sede recursiva, certo é que tal normativo foi revogado pelo art. 2., al. a), da Lei n.º 31/2023, de 4 de julho.

E foi então que, nesse enquadramento, por despacho proferido em 19/09/2023, o tribunal recorrido, e bem, declarou a cessação da suspensão da venda do prédio descrito sob o n.º 849/19871202, na Conservatória do Registo Predial de ..., sem prejuízo do regime geral constante, designadamente, do disposto no art. 756.º do Código de Processo Civil.

Tal despacho foi antecedido da notificação da devedora insolvente para se pronunciar sobre a cessação da suspensão da venda, em face do disposto no n.º 3 do art. 3.º do CPC, tendo a insolvente, em requerimento de 31/08/2023, requerido um prazo de 30 dias para que fosse apresentada uma proposta de cumprimento dos créditos efetivos e reclamados, alegando que se mostrava pago mais de 80% do montante objeto [de] reclamação de créditos, o que reiterou nos requerimentos de 29/11/2013 e de 30/11/2023, onde então pediu fosse suspenso o leilão em curso.

Ora, cessada a suspensão da venda, por despacho de 19/09/2023, notificado à recorrente em 29/11/2023, e indeferido o pedido de imediata suspensão do leilão em curso com a concessão do requerido prazo de 30 dias, de nenhuma patologia padece o despacho recorrido.

Ali se consignou, e bem, que considerando o disposto no art. 8.º do CIRE, inexistia fundamento legal para o requerido, razão pela qual foi indeferida a solicitada suspensão. E a prolação de tal despacho, que aprecia o pedido da recorrente, declarada que estava já cessada a suspensão da venda, não viola qualquer caso julgado formal tal como o mesmo se encontra definido pela nossa lei adjetiva, ou seja, como a insusceptibilidade de impugnação de uma decisão decorrente do seu trânsito em julgado (artigo 628.º do CPC).

Declarada cessada a suspensão da instância, decorrente do despacho de 28/06/2021, por despacho de 19/09/2023, não fere o caso julgado formado com o primeiro despacho o afirmado no despacho recorrido que nega a pretensão da recorrente de ver suspensa a venda.

Com efeito, diz o aludido art. 620.º do CPC legal que «1 – As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo. 2 – Excluem-se do disposto no número anterior os despachos previstos no artigo 630.º».

Ora, como vimos, o despacho recorrido, proferido em 04/12/2023 (que se limitou a indeferir o pedido de suspensão do leilão em curso) não violou qualquer decisão anterior proferida pelo tribunal (pois que, em momento posterior ao despacho de 28/06/2021, foi proferido o despacho de 10/07/2023 e o de 19/09/2023). Ou seja, aquando do despacho recorrido, já tinha sido proferido um anterior, a declarar cessada a suspensão da instância, declarada pelo despacho de 28/06/2021.

Por conseguinte, o lançamento do leilão eletrónico, ainda que iniciado sem que o despacho da decisão da cessação da suspensão tivesse transitado em julgado, não inquina o despacho recorrido nos termos pretendidos pela recorrente no sentido de violar o invocado caso julgado formal.” [...]

3.3. No contexto da tramitação, o despacho que foi objecto de recurso – indeferimento de suspensão do acto de lançamento de leilão para venda do prédio (art. 164º, 1, CIRE), anunciado pela AI em 26/10/2023 – já não se encontrava condicionado no seu objecto e conteúdo pelo despacho de suspensão da venda do prédio, proferido em 28/6/2021; antes se encontrava legitimado em termos cognitivos e decisórios pelo despacho de cessação da anterior decisão de suspensão da venda, proferido em 19/9/2023, o que fez com que deixasse de estar subsistente no processo a decisão sobre a suspensão da venda que pudesse ser obstáculo às decisões subsequentes, incluindo a venda a cargo do administrador da insolvência.

Logo, a decisão de indeferimento de suspensão da venda, aqui escrutinada, é proferida num arco da tramitação endoprocessual em que não já tem força obrigatória no processo a decisão de 28/6/2021, uma vez que a eficácia desta decisão se tinha esgotado com a prolação do despacho de 19/9/2023, proporcionando eficácia aos demais actos processuais que tiveram como pressuposto a cessação da suspensão de venda e precludindo a ofensa de decisão, que, não obstante ter transitado, cessou os seus efeitos por força de decisão subsequente sobre o mesmo objecto: decisão sobre a venda do prédio apreendido para a massa insolvente e em liquidação.

E por que razão se deve entender que a eficácia de tal decisão de 2021 se esgotara – assim como da decisão de 20/3/2022, tão-só confirmativa –, sendo modificável, motivando que fosse proferida decisão posterior (legítima) sobre a mesma questão?

A delimitação do conteúdo («limites e termos em que julga»: art. 621º) da decisão processual implica que se faça uma adequada interpretação do seu âmbito, de acordo com a sua fundamentação [---]

Assim sendo.

Em rigor, a decisão de 28/6/2021 foi baseada em não estar verificada a condição de superação ou de ultrapassagem da «situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19», de acordo com o regime legal transitório da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março», que instituiu então «medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemológica» (v. o respectivo art. 8º, 1). Uma vez preenchida essa condição – a superação da referida situação excepcional causada pela pandemia e suas consequências –, plasmada normativamente na revogação do art. 6.º-E/8 da Lei 1-A/2020 pelo art. 2º, a), da Lei 31/2023 (destinado à «cessação de vigência de leis publicadas no âmbito da pandemia da doença COVID-19, em razão de caducidade, de revogação tácita anterior ou de revogação pela presente lei)», o art. 621º do CPC permite que o alcance do caso julgado dentro do processo caduque e se possa proferir nova decisão diversa da proferida – afastando-se assim o art. 625º, 2, do CPC – para a situação prevista no caso julgado formal.

Com efeito, não foi por acaso que o juiz decisor no processo, desde logo, ordenou, tanto no despacho proferido em 28/6/2021 no processo principal, como no despacho proferido em 20/3/2022 no apenso de liquidação, que se abrisse conclusão “uma vez cessado o regime processual excecional e transitório estabelecido pela Lei nº 1-A/2020, de 19 de março” – ou seja, logo que verificada a condição que não estava preenchida aquando dos despachos proferidos sobre a referida suspensão do acto inerente à liquidação insolvencial.

Logo, a partir dessa nova decisão, diversa da anteriormente proferida por força da verificação da condição que foi requisito negativo da decisão originária, não temos caso julgado formal anterior que possa ser oposto (e susceptível de ofensa) a essa decisão nova e às decisões subsequentes que nela radicam, uma vez que o conteúdo decisório antes mobilizado voltou a estar na disponibilidade decisória do juiz e com novo fundamento [---].

Sendo legítima a nova decisão, a única forma de evitar que, caducada a eficácia da anterior, se estabilizem os seus efeitos no processo, é a impugnação; a ter sucesso, esta impugnação erradicaria do processo os actos emergentes dessa decisão.

Em suma:

(i) perante a decisão proferida em 19/9/2023 (cessação da suspensão da venda), uma vez transitada, é perante esta que se passa a exigir imodificabilidade nos termos dos art. 620º, 1, e 621º do CPC, fazendo esgotar por sucessão aquando da sua prolação a imodificabilidade da decisão proferida em 28/6/2021 (suspensão da venda por aplicação de regime excepcional e transitório);

(ii) não pode a Recorrente invocar ofensa do caso julgado formal constituído pela decisão de 28/6/2021, quando o caso julgado perdera a sua eficácia intraprocessual em 19/9/2023;

(iii) perante a decisão de 19/9/2023 – cessação da suspensão da venda –, a insolvente interessada e inconformada teria que impugnar esta decisão, uma vez notificada em 29/11/2023 – o que não fez –, antes optando por impugnar a decisão (com objecto mais circunscrito) de indeferimento da suspensão do leilão destinado a obter propostas de compra – que aqui se discute –, permitindo que, por aplicação do art. 628º do CPC, tal decisão de 19/9/2023 tivesse já transitado em julgado no momento da interposição do recurso de apelação (arts. 638º, 1, CPC, 9º, 1, CIRE)."

[MTS]