"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



14/11/2025

Jurisprudência 2025 (32)


Decisão-surpresa;
pressupostos, consequências*


1. O sumário de RP 10/2/2025 (279/23.0T8BAO.P1) é o seguinte:

I - Ao contrariar todo o processado anterior, sob o respetivo poder/dever de direção processual, e arredar na sentença do respetivo conhecimento determinados meios de prova já admitidos, por configurarem, no entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo, meio de prova ilícita, sem prévia audição da Autora a esse respeito (uma vez que o Réu já tinha definido a sua posição em sede de resposta à petição inicial aperfeiçoada), o Tribunal de 1ª instância proferiu verdadeira decisão surpresa, porquanto respeita a prova que se relaciona com matéria fulcral da causa de pedir da Recorrente, e que foi dada como não provada, violando o princípio do contraditório.

II - Essa decisão não está de acordo com as consequências processuais a retirar da tramitação ocorrida até ao momento, tendo sido proferida sem que a Apelante tenha tido a oportunidade de expor os seus argumentos, de forma a convencer (ou não) o Julgador da sua decisão, num momento em que não era expectável a prolação da referida decisão.

III - Neste caso, a não observância do contraditório constitui uma nulidade processual, que é consumida por uma nulidade da sentença por excesso de pronúncia - artigo 615º, nº 1, al. d), do Código de Processo Civil -, dado que, sem a prévia audição das partes, o Tribunal não podia conhecer do fundamento que utilizou na sua decisão.

IV - As circunstâncias que determinam a nulidade da sentença impedem que, no caso, o Tribunal ad quem faça uso da regra da substituição prevista no artigo 665º Código de Processo Civil.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"1 – Se a sentença proferida está inquinada de nulidade, por constituir decisão surpresa, violando o disposto no artigo 3º do Código de Processo Civil

Sustenta a Recorrente, sob as conclusões Z e AA do recurso, que ao arredar do conhecimento determinados meios de prova já produzidos, por suposta “nulidade” dos mesmos, sem prévia audição das partes a esse respeito, o Tribunal a quo proferiu verdadeira decisão surpresa, inquinada de nulidade, violando assim o artigo 3º, do Código de Processo Civil.

Em concreto, está em causa a violação do nº3, do citado preceito, nos termos do qual “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.

O citado artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, consagra expressamente o princípio do contraditório na vertente da proibição da decisão surpresa, isto é, nas palavras de José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre [Cfr. “Código de Processo Civil Anotado”, volume I, 4.ª edição, Coimbra, Almedina, 2018, pág. 31.], “a decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes”. Segundo estes autores, “antes de decidir com base em questão (de direito material ou de direito processual) de conhecimento oficioso que as partes não tenham considerado, o juiz deve convidá-las a sobre ela se pronunciarem, seja qual for a fase do processo em que tal ocorra (despacho-saneador, sentença, instância de recurso)” (ob. cit., pág. 32). [...]

Pretende-se, por esta via, evitar a formação de “decisões surpresa”, ou seja, decisões sobre questões de direito material ou de direito processual, de que o Tribunal pode conhecer oficiosamente, sem que tenham sido previamente consideradas pelas partes.

Por isso se entende que é ainda uma decorrência do princípio do contraditório a proibição de decisões surpresa, com as quais nos deparamos sempre que a solução dada pelo Tribunal a uma questão comporte uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever que fosse proferida. [...]

O exercício do contraditório dependerá sempre da verificação de uma nova abordagem jurídica da questão, decisiva para a sorte do pleito, porque relativa a factos ou questões de direito suscetíveis de virem a integrar a base da decisão, que não fosse perspetivada pelas partes, mesmo usando da diligência devida.

Com este princípio pretendeu o legislador, como já acima salientamos, impedir que as partes fossem surpreendidas com soluções de direito inesperadas, seja através do conhecimento do mérito da causa, seja no plano meramente processual.

Este entendimento amplo do princípio do contraditório, afirmado pelo nº3, do artigo 3º, do Código de Processo Civil, não afasta os poderes de subsunção ou de qualificação jurídica que o artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil confere ao juiz - tarefa em que continua a não estar sujeito às alegações das partes relativas à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito. Trata-se, apenas, de impor ao julgador o dever de, previamente ao exercício de tais poderes, proceder à audição das partes, sempre que pretenda decidir uma determinada questão, seja relativa ao mérito da causa seja meramente adjetiva, com recurso a um fundamento jurídico diverso, até então omitido nos autos e não ponderado pelas partes, mesmo usando da diligência devida.

Revertendo ao caso concreto, e tendo presente as considerações que antecedem, importa decidir se assiste razão à Apelante quanto invoca a surpresa da decisão proferida pelo Tribunal a quo ao arredar do conhecimento determinados meios de prova.

Em causa está a parte da motivação da sentença que a seguir se transcreve:

Para a consignação da matéria de facto o Tribunal atentou nos factos alegados pelas partes, dado o ónus que sobre as mesmas impende.

Sucede que foi alegada matéria – artigos 27.º e 28.º da Petição Inicial aperfeiçoada - referente a questões que são susceptíveis de integrar as alíneas d) a f) do artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (Lei n.º 145/2015, de 09 de Setembro). Mais, para prova do alegado foram juntas comunicações escritas.

Competindo a este Tribunal apreciar a legalidade dos meios de prova, diremos que todas as denominadas comunicações electrónicas juntas em sede de Petição Inicial e Petição Inicial aperfeiçoada, correspondem a documentos comunicados à Autora por co-interessado nos factos que aqui se dilucidam (o Sr. AI, visto que na origem dos mesmos está um acto por este praticado - pedido de coadjuvação da Autora). E do teor das aludidas comunicações se percebe que Causídico terá realizado intervenção no sentido de colocar termo ao presente litígio, tendo solicitado - não se sabe em que termos, ou porquê, mas tal tem a ver com o seu ofício - pagamento a prestações do valor reclamado pela Autora.

Em face do exposto não podem as aludidas comunicações ser admitidas como sendo meio legal de prova, e nessa senda os factos que se extrairiam dos mesmos (o teor da comunicação) não foram vertidos na matéria de facto, tanto mais que Ilustre Causídico nas aludidas comunicações, por várias vezes fez constar “Aviso: Esta mensagem é exclusivamente dirigida ao seu destinatário e contém informação confidencial e sujeita a segredo profissional, cuja divulgação não é permitida por lei. Se por erro não for o destinatário desta mensagem, agradecemos que, de forma imediata, dê conhecimento de tal facto por correio electrónico ou através de telefone (+351 ...) bem como proceda à eliminação desta mensagem e de eventuais ficheiros anexos. Sendo esse o caso, informamos ainda que a distribuição, cópia ou utilização desta mensagem, ou de qualquer ficheiro anexo, qualquer que seja a sua finalidade, são proibidas por lei”, e não autorizou (sem discutir se o poderia fazer, porquanto não releva) a divulgação de tais comunicações, e inexiste, nem foi requerida, dispensa de sigilo profissional, para utilização e consequente valoração das mesmas.

Donde, não se teve em conta o alegado em 27.º e 28.º da Petição Inicial aperfeiçoada e as comunicações (e-mail) por esta juntas com intervenção de Causídico em nome do Réu.

Sem prejuízo se dirá, que os efeitos pretendidos retirar pela Autora com tais comunicações (aceitação pelo Réu de pagamento de comissão) poderia ser conseguido por outro meio de prova, designadamente Testemunhal, ou depoimento de parte do Réu. [...]

Note-se que nos artigos 27.º e 28.º da petição inicial aperfeiçoada a Apelante alegou o seguinte:

27.º

Sendo que, pasme-se, o próprio advogado do Réu, na referida troca de emails (vide Doc. n.º 29) além de solicitar o pagamento das guias dos impostos, informa o mesmo do seguinte: «Para além disto, como já lhe transmiti, terá que pagar a comissão à leiloeira no valor de € 15.081,34 (IVA incluído).

Como é do S/ conhecimento solicitei à leiloeira o pagamento daquele valor em prestações, tendo a leiloeira solicitado o envio de um mail com a proposta de pagamento em prestações.

Nesse sentido, peço que me indique se podem entregar algum valor de entrada e quanto podem e propõem pagar por mês.»

28.º

Desde logo, facilmente se percebe que o Réu teria (e tem porque ainda não pagou) que pagar a comissão devida à Autora pela venda efetuada pela mesma.”

Mais sustenta a Apelante que o documento 29 respeita a um e-mail enviado pelo Ilustre Mandatário do Recorrido ao mesmo e que aquele, posteriormente, reencaminhou para o Administrador da Insolvência.

No contraditório àquela petição inicial aperfeiçoada o Réu, nos artigos 13º a 15º, invocou o seguinte:

13º

Cabendo salientar que é absolutamente ilícita, por violadora do dever de segredo profissional a que estão vinculados os Advogados o alegado em 27º PI assim como a junção do doc. 29, o qual deve ser desentranhado dos autos.

14.º

Trata-se de grosseira violação do segredo profissional e, como tal, de prova ilícita, que nada pode provar em juízo – cfr. Art. 92º E.O.A.

15.º

Consubstanciando ainda grave ilícito disciplinar e, como tal, devendo extrair-se certidão dos autos remetendo-se a mesma à Ordem dos Advogados, para os competentes fins disciplinares”.

Conforme se consignou no relatório deste acórdão, na decisão de 7 de maio de 2024, o Tribunal recorrido dispensou a audiência prévia, proferiu despacho saneador, identificou o objeto do litígio, enunciou os temas da prova, admitiu os requerimentos probatórios e agendou a audiência de julgamento.

Nesse despacho, quanto à prova documental, o Tribunal a quo decidiu nos seguintes termos:

Da produção de prova

> Da Prova documental

Ao abrigo do artigo 423.º do Código Processo Civil, por a sua junção se mostrar legal e tempestiva, não se revelarem impertinentes ou desnecessários e se afigurarem, em abstracto, úteis à descoberta da verdade admitem-se os documentos juntos com os articulados (iniciais e aperfeiçoados).”

Perante este despacho, sustenta a Apelante que o Tribunal recorrido, até à prolação da sentença apelada, em momento algum manifestou recusa em aceitar os documentos, admitindo-os plenamente.

É certo que a admissão de documentos não se confunde com a sua valoração.

No entanto, no caso concreto, perante o que havia sido alegado pelo Réu em sede de contraditório à petição inicial aperfeiçoada, não tendo o Tribunal de 1ª instância ordenado o desentranhamento do documento 29 nem tecido qualquer consideração relativamente à invocada violação do dever de segredo profissional que aquele documento (bem como as demais comunicações eletrónicas juntas aos autos) poderia configurar, afigura-se-nos legítimo concluir que tal despacho, ao admitir todos os documentos juntos com os articulados, tenha criado nas partes e, em particular, na Apelante, a convicção de que os mesmos seriam efetivamente considerados na decisão final e, nessa medida, acabou por conduzir a Recorrente a não requerer o que tivesse por conveniente, como seja, caso assim o entendesse, a dispensa de sigilo profissional para utilização e consequente valoração daquele documento (e das demais comunicações eletrónicas juntas aos autos), ou a produzir outros meios de prova.

Ao contrariar, desse modo, todo o processado anterior, sob o respetivo poder/dever de direção processual e, do mesmo modo, ao posteriormente, arredar do respetivo conhecimento determinados meios de prova já admitidos, por configurarem, no entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo, meio de prova ilícita, sem prévia audição da Autora a esse respeito (uma vez que o Réu já tinha definido a sua posição em sede de resposta à petição inicial aperfeiçoada), o Tribunal de 1º instância proferiu verdadeira decisão surpresa, porquanto respeita a prova que se relaciona com matéria fulcral da causa de pedir da Recorrente, e que foi dada como não provada sob a alínea a), relativa ao conhecimento e aceitação por parte do Réu das condições gerais da venda dos imóveis que este adquiriu no âmbito da insolvência, em que foram declarados insolventes os seu pais.

Perante a prolação de tal decisão surpresa, é legítimo concluir que o Tribunal violou o princípio do contraditório.

Sustenta a Recorrente que essa omissão do exercício do contraditório por parte do Tribunal recorrido, ao arredar na sentença a valoração de determinados meios de prova já produzidos, por suposta nulidade dos mesmos, sem prévia audição das partes a esse respeito, sendo uma verdadeira decisão surpresa, inquina a sentença de nulidade, não concretizando se estamos perante uma nulidade processual ou uma nulidade da sentença. [...]

Na lição cristalina de Miguel Teixeira de Sousa, tendo em vista distinguir uma nulidade processual das nulidades da sentença, dir-se-á que “Todo o processo comporta um procedimento, ou seja, um conjunto de actos do tribunal e das partes. Cada um destes actos pode ser visto por duas ópticas distintas:

- Como trâmite, isto é, como acto pertencente a uma tramitação processual;

- Como acto do tribunal ou da parte, ou seja, como expressão de uma decisão do tribunal ou de uma posição da parte.

No acto perspectivado como trâmite, considera-se não só a pertença do acto a uma certa tramitação processual, como o momento em que o acto deve ou pode ser praticado nesta tramitação.

Em contrapartida, no acto perspectivado como expressão de uma decisão do tribunal ou de uma posição da parte, o que se considera é o conteúdo que o acto tem de ter ou não pode ter.

Do disposto no art. 195.º, n.º 1, do CPC decorre que se verifica uma nulidade processual quando seja praticado um acto não previsto na tramitação legal ou judicialmente definida ou quando seja omitido um acto que é imposto por essa tramitação.

Isto demonstra que a nulidade processual se refere ao acto como trâmite, e não ao acto como expressão da decisão do tribunal ou da posição da parte. O acto até pode ter um conteúdo totalmente legal, mas se for praticado pelo tribunal ou pela parte numa tramitação que o não comporta ou fora do momento fixado nesta tramitação, o tribunal ou a parte comete uma nulidade processual.

Em suma: a nulidade processual tem a ver com o acto como trâmite de uma tramitação processual, não com o conteúdo do acto praticado pelo tribunal ou pela parte.

É, aliás, fácil comprovar, em função do direito positivo, o que acaba de se afirmar:

- A única nulidade processual nominada que decorre do conteúdo do acto é a ineptidão da petição inicial (cf. art. 186.º); mas não é certamente por acaso que esta nulidade é também a única que constitui uma excepção dilatória (cf. art. 186.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, al. b), e 577.º, al, b), CPC);

- As nulidades da sentença e dos acórdãos decorrem do conteúdo destes actos do tribunal, dado que estas decisões não têm o conteúdo que deviam ter ou têm um conteúdo que não podem ter (cf. art. 615.º, 666.º, n.º 1, e 685.º CPC); também não é por acaso que estas nulidades não são reconduzidas às nulidades processuais reguladas nos art.ºs 186.º a 202.º CPC.” - O que é uma nulidade processual? In Blog do IPPC, 18-04-2018, disponível em https://blogippc.blogspot.com/search?q=nulidade+processual.

No caso concreto, como já supra se consignou, a Apelante dirige a sua impugnação ao conteúdo da sentença que não teve em consideração o alegado nos artigos 27º e 28º da petição inicial aperfeiçoada e não valorou as comunicações eletrónicas juntas como documento nº 29, por entender que não são meio de prova legal, pois que a sua valoração violaria o dever de segredo profissional, a que aludem as alíneas d) a f) do artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei nº 145/2015, de 9 de setembro, uma vez que não existe, nem foi requerida dispensa de sigilo profissional para a utilização e consequente valoração daquelas comunicações. Fê-lo sem prévia audição da Autora a esse respeito (uma vez que o Réu já tinha definido a sua posição em sede de resposta à petição inicial aperfeiçoada), e, nessa medida, ante o exposto, concluímos, como já acima se consignou, que tal decisão proferida constituiu uma decisão surpresa, em violação do disposto no artigo 3º, nº 3 do Código de Processo Civil.

Não é pacífica na jurisprudência a questão de saber se a prolação de uma decisão surpresa, com violação do princípio do contraditório, constitui uma nulidade processual, nos termos do artigo 195º, nº 1, do Código de Processo Civil, ou uma nulidade da própria decisão, por excesso de pronúncia, em conformidade com o disposto no artigo 615º, nº 1, d), do Código de Processo Civil.

Como diz António Abrantes Geraldes in Recurso em Processo Civil, 7ª ed., pág. 24, “a expressão usual segundo a qual «das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se» aparenta uma simplicidade que não condiz com o que a prática judiciária revela. Importa, pois distinguir as nulidades de procedimento das nulidades de julgamento, uma vez que, nos termos do art. 615º, nº 4, quando estas últimas decorram de qualquer dos vícios da sentença assinalados nas als. b) a e) do nº 1, a sua invocação deve ser feita em sede de recurso, restringindo-se a reclamação para o próprio tribunal quando se trate de decisão irrecorrível”.

Mas se para algumas situações a resposta se apresenta como pacífica, outras há em que a solução não se apresenta tão clara. É o caso, por exemplo, “quando é cometida alguma nulidade de conhecimento oficioso ou em que é o próprio juiz que, ao proferir a sentença, omite uma formalidade de cumprimento obrigatório, como ocorre com o respeito pelo princípio do contraditório destinado a evitar decisões-surpresa (art. 3.º, nº 3). Nestes casos, em que a nulidade é revelada apenas através da prolação da decisão com que a parte é confrontada, a sujeição ao regime geral das nulidades processuais, nos termos dos arts. 195.º e 199.º, levaria a que a decisão que a deferisse se repercutiria na invalidação da sentença, com a vantagem adicional de tal ser determinado pelo próprio juiz, fora das exigências dos encargos (inclusive financeiros) inerentes à interposição de recurso. Porém, tal solução defronta-se com o enorme impedimento constituído pela regra, praticamente inultrapassável, ínsita no art, 613º, à qual presidem razões de certeza e de segurança jurídica que levam a que, uma vez proferida a sentença (ou qualquer decisão), fica esgotado o poder jurisdicional, de modo que, sendo admissível recurso, é exclusivamente por essa via que pode ser alcançada a revogação ou a modificação da decisão. Perante esta dificuldade, parece mais seguro assentar que, sempre que o juiz, ao proferir alguma decisão, se abstenha de apreciar uma situação irregular ou omita uma formalidade imposta por lei, a parte interessada deve reagir através da interposição de recurso sustentado na nulidade da própria decisão, nos termos do art. 615.º, al. d). Afinal, designadamente quando a sentença traduza para a parte uma verdadeira decisão-surpresa (não precedida do contraditório imposto pelo art. 3.º, nº 3), a mesma nem sequer dispôs da possibilidade de arguir a nulidade processual correspondente à omissão do ato, pelo que o recurso constitui a via ajustada a recompor a situação, integrando-se no seu objecto a arguição daquela nulidade” [Cf. [ A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 2018), pág. 25 e 26; no mesmo sentido Teixeira de Sousa, em https//blogipp.blogspot.com, citado na nota de rodapé de pág. 26.]

No caso concreto, entendemos que ao prolatar aquela decisão surpresa, com violação do princípio do contraditório, o Tribunal a quo incorreu simultaneamente numa nulidade processual (prevista no artigo 195º, nº1, do Código de Processo Civil) e numa nulidade da sentença por excesso de pronuncia (prevista no artigo 615º, nº1, al. d), do Código de Processo Civil) [Neste sentido, cf. vd., entre outros os Acs. RP 15-12-2021, p. 2577/20.5T8AGD-A.P1; bem como e STJ 23-06-2016 (Abrantes Geraldes), p. 1937/15.8T8BCL.S1.]. Isto porque tal nulidade apenas se revelou com a prolação da sentença, pelo que a falta de contraditório, neste caso, constitui uma nulidade que se projeta na decisão, subsumível à previsão do art. 615º, nº 1, d) do Código de Processo Civil (nulidade da decisão por excesso de pronúncia)."

*3. [Comentário] O acórdão tem as seguintes declarações de voto (que, curiosamente, fazem maioria e tornam a Relatora realmente vencida):

"Anabela Morais [Com declaração de voto:

Voto a decisão, mas com diversa fundamentação jurídica. Acompanho a orientação que a violação do princípio do contraditório constitui nulidade processual, nos termos do artigo 195º, nº 1, do CPC. O contraditório constitui um procedimento que deve ser adoptado antes da prolacção da decisão, consubstanciando violação da lei a sua inobservância. Assim, respeitando sempre entendimento diverso, entendo que a violação das normas processuais que impõem o contraditório, tornando a decisão ilegal, tem como consequência a sua revogação e substituição pela determinação do cumprimento do procedimento omitido, com prejuízo dos demais actos incompatíveis que tenham sido praticados em primeira instância.]

Eugénia Cunha [Com declaração de voto:

Acompanho a declaração de voto da Exma Sra Desembargadora 1ª adjunta.]"

Como se tem repetidamente dito neste Blog (por exemplo, aqui), esta orientação é incompatível com quaisquer poderes da Relação para apreciar o vício relativo à decisão-surpresa. Com efeito, se a nulidade fosse apenas a nulidade inominada do art. 195.º, n.º 1, CPC, então o meio de reacção da parte teria de ser a reclamação para o tribunal que cometeu a nulidade (art. 196.º CPC). Isto implicaria necessariamente que a Relação teria de concluir que a parte recorrente não utilizou o meio processual adequado para reagir contra o vício.

Aliás, a orientação de que a decisão-surpresa é uma decisão nula por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC) foi contruída precisamente para obstar a que a parte tivesse de começar a impugnação da decisão através de uma reclamação dirigida ao tribunal que a proferiu.

MTS