"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



11/06/2024

Jurisprudência 2023 (189)


Execução para prestação de facto;
citação do executado, citação no estrangeiro*


I. O sumário de RC 7/11/2023 (1827/21.5T8ACB-D.C1) é o seguinte:

1. - Embora a execução fundada em sentença seja tramitada (de forma autónoma) nos próprios autos da ação declarativa, seguindo-se, por isso, à sentença condenatória a ação executiva, a instância declarativa finda, extinguindo-se, com o julgamento (por o seu objeto se esgotar com o trânsito em julgado da sentença condenatória), iniciando-se uma nova instância – a executiva – com a apresentação do requerimento executivo.

2. - Todavia, por razões de simplicidade, nas execuções de sentença para pagamento de quantia certa e para entrega de coisa certa não há lugar à citação do executado, mas à sua notificação para cabal exercício do princípio do contraditório.

3. - Não assim, nas execuções de sentença para prestação de facto, onde é sempre necessária a citação do executado, como no caso dos autos, razão pela qual não pode colher aplicação o disposto no art.º 247.º, n.º 1, do NCPCiv. em termos de a citação dos executados ser substituída por uma notificação na pessoa do mandatário judicial (constituído na ação declarativa).

4. - A citação postal do executado pessoa singular deve ser intentada no domicílio indicado pelo exequente, para ali se endereçando a respetiva carta com aviso de receção, que pode ser entregue, nas condições legais, ao citando ou a qualquer outra pessoa que se encontre na residência e declare estar em condições de pronta entrega àquele.

5. - Assinado, nos moldes legais, pelo recetor – mesmo que terceiro – o respetivo aviso de receção, a citação considera-se efetuada na pessoa do citando, presumindo-se que ocorreu oportuna entrega ao destinatário, se tal citação houver sido dirigida para residência ou local de trabalho do citanto, como indicado no requerimento executivo, cabendo, então, a este último ilidir a presunção legal, demonstrando o contrário, isto é, que a carta não lhe foi entregue.

6. - Não assim quando, como no caso, foi indicada pelo exequente residência do executado no estrangeiro – âmbito em que devia ser observado o disposto no art.º 239.º, n.ºs 1 a 3, do NCPCiv. – e este foi, não obstante, citado por via postal para endereço em Portugal, com o aviso de receção a ser assinado por outrem, cuja identidade não foi transmitida ao citando/executado, vícios/irregularidades estes que, comprometendo o adequado exercício do princípio do contraditório, determinam a nulidade da citação, por inobservância de formalidades relevantes legalmente prescritas.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"1. - De notar, desde logo, que o Exequente veio defender, neste âmbito, que nem sequer era caso de citação da parte executada, ao argumentar que, tratando-se de execução de sentença nos próprios autos, se aplica o disposto no art.º 247.º, n.º 1, do NCPCiv., segundo o qual as notificações às partes em processos pendentes são feitas na pessoa dos seus mandatários judiciais.

Quer dizer, o processo (da ação declarativa, onde ocorreu a condenação) continuaria pendente, razão pela qual a instauração da execução e o respetivo contraditório se bastariam com uma notificação à parte demandada (agora executada), na pessoa do respetivo mandatário judicial, para deduzir, querendo, oposição à execução.

Esta linha de argumentação, embora tempestivamente suscitada, não foi expressamente apreciada nos autos, não lhe fazendo referência clara, neste âmbito, a decisão recorrida.

Todavia, tratando-se de questão pertinente para a decisão quanto à invocada nulidade da citação, deverá agora ser apreciada, pela Relação, com vista à boa decisão do recurso interposto, não obstante não ter sido apresentada contra-alegação recursiva.

Assim:

Dispõe, quanto ao que aqui importa, o art.º 85.º, n.º 1, do NCPCiv. que, na execução de decisão proferida por tribunais portugueses, o requerimento executivo é apresentado no processo em que aquela foi proferida, correndo a execução nos próprios autos e sendo tramitada de forma autónoma.

Por sua vez, quanto à citação do devedor em execução para prestação de facto, preceitua o n.º 2 do art.º 868.º do mesmo Cód. que o devedor é citado para, em 20 dias, deduzir oposição à execução, mediante embargos, podendo o fundamento da oposição consistir, ainda que a execução se funde em sentença, no cumprimento posterior da obrigação, provado por qualquer meio.

Da conjugação destes dois preceitos legais, logo poderá retirar-se que, fundando-se a execução em sentença, desde que esteja em causa prestação coerciva de facto, a instância executiva, uma vez finda a ação/instância declarativa, tem tramitação autónoma, embora correndo nos próprios/mesmos autos, o que não obsta a que o devedor seja citado para a ação executiva que se inicia, determinando a lei, expressamente, que o devedor haja de ser citado, assim se dando observância às exigências do indeclinável princípio do contraditório.

Como referem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, o n.º 1 do art.º 85.º do NCPCiv. reporta-se, «à determinação, já não do tribunal, mas sim do processo no qual a execução é tramitada, estabelecendo a regra de que o é nos autos da ação em que a decisão (na 1.º instância) foi proferida» (Cfr. Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.º, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, p. 193.).

E complementam Abrantes Geraldes e outros (V. Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, ps. 111 e seg.), enfatizando que a execução fundada em sentença «é tramitada, se bem que de forma autónoma, nos autos da ação declarativa», com a indicação de se tratar de um «pormenor de natureza formal, pouco relevante para a eficácia da ação executiva», significando que «à sentença condenatória se segue, sem hiatos, a execução coerciva», mas sem colidir, no campo adjetivo, com «o facto de a instância declarativa se extinguir com o julgamento, iniciando-se uma nova instância – a executiva – com a apresentação do requerimento executivo (…)».

Assim sendo, extinta a ação/instância declarativa, cujo objeto se esgotou com o trânsito em julgado da sentença condenatória, inicia-se, embora nos mesmos autos, a ação/instância executiva, ou seja, uma instância diversa, na medida em que uma ação declarativa difere, pela sua natureza e finalidade, de uma ação executiva. [...]

Tratando-se, embora, de uma nova ação/instância, que se iniciou após a extinção da instância declarativa – a qual, uma vez extinta/finda, já não pode considerar-se pendente/subsistente –, pretendeu, pois, o legislador que, nestes dois tipos de execução de sentença, não houvesse citação do executado, mas apenas a sua notificação da pendência da execução e, nessa senda, para observância do contraditório, mormente dedução de oposição à execução.

Não assim, porém, quando se trate de execução de sentença para prestação de facto – como in casu –, como logo resulta do disposto nos art.ºs 626.º, n.º 4, e 868.º, n.º 2, ambos do NCPCiv., caso em que terá necessariamente de haver citação do executado, a não poder ser substituída por mera notificação para atuação do princípio do contraditório (Como bem referem Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, [Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2014], p. 621, na execução de sentença para prestação de facto «há sempre lugar à citação do executado», como impõem os n.ºs 4 do art.º 626.º e 2 do art.º 868.º, esclarecendo tais autores quais os motivos da diferença de regime perante as execuções para pagamento de quantia certa e para entrega de coisa certa.

Daí que não colha aplicação, contrariamente ao pretendido pelo Exequente, salvo o respeito devido, o disposto no art.º 247.º, n.º 1, do NCPCiv., em termos de a notificação à parte/executados em processo pendente ser efetuada na pessoa do mandatário judicial constituído, o que tornaria dispensável a citação para dedução de oposição à execução de sentença para prestação de facto.

Este, aliás, o subjacente entendimento sufragado, nos autos executivos, pelo Tribunal de 1.ª instância, ao considerar – sem impugnação nesta parte – que «a presente execução tem por fim a prestação de facto, sendo o título executivo sentença condenatória judicial», âmbito em que «o executado foi citado por via postal registada em 11-03-2022» (destaques aditados). Isto é, não se prescindiu da citação (em vez de mera notificação).

Em suma, no caso era indispensável a citação da parte executada para, querendo, exercer o seu direito de defesa perante a execução interposta, termos em que improcede a argumentação do Exequente em contrário.

2. - Defende o Recorrente que estão preenchidos os pressupostos legais da nulidade da sua citação.

Afirma, assim, por um lado, que a procuração forense por si outorgada – conferindo poderes forenses gerais, somente – não consente uma citação na pessoa da mandatária judicial do Executado/Apelante, por faltarem os necessários poderes especiais para o efeito, e, bem assim, que também não poderia efetuar-se a citação na pessoa do representante fiscal nomeado por tal Executado, uma vez que não cabem ao representante fiscal poderes de representação legal, mas apenas perante a Administração Tributária.

E, por outro lado, acrescenta que a citação deve ser enviada para a residência ou local de trabalho do citando, sendo necessário que a pessoa que assina o A/R declare estar em condições de entregar todos os elementos recebidos da citação ao dito citando, não constando, porém, dos autos qualquer prova desta menção ao assinante do A/R.

Apreciando. [...] 

Resta a questão da invalidade daquela citação – a que se reporta a decisão recorrida – dirigida ao Executado/citando, recebida/assinada por outrem, com A/R junto aos autos, dizendo o Apelante que não foi dirigida para a sua morada/residência, uma vez que reside na Noruega, e não em Portugal (designadamente, em ...).

Ora, deve começar por dizer-se que no requerimento executivo o Executado AA é identificado – pelo Exequente – como residente na Noruega, com indicação de morada em ... 11 ... ..., Noruega (ponto fáctico 5).

Donde que devesse a citação ser intentada para essa morada no estrangeiro [cfr. art.ºs 228.º, n.º 1, e 239.º, ambos do NCPCiv. e conclusões d) e g) do Apelante], como foi, embora sem resultado positivo visível (cfr. ponto fáctico 1).

Com efeito, a citação por via postal, através de carta registada com aviso de receção, deve ser dirigida, nos termos legais, ao citando e endereçada para a sua residência ou local de trabalho, no caso de pessoa singular, contendo, para além do mais, a “advertência, dirigida ao terceiro que a receba, de que a não entrega ao citando, logo que possível, o fará incorrer em responsabilidade, em termos equiparados aos da litigância de má fé” (art.º 228.º, n.º 1, citado, tal como o anterior art.º 236.º, n.º 1, do CPCiv. revogado).

Importa, pois, a residência do citando tal como indicada pela contraparte, a quem incumbe identificar o demandado/executado, incluindo a especificação sobre o local/residência onde deverá ser citado [cfr. art.º 724.º, n.º 1, al.ª a), do NCPCiv., tal como, no pretérito, o anterior art.º 810.º, n.º 1, al.ª a), do CPCiv. revogado], cabendo ao demandante/exequente o impulso processual (inicial ou subsequente) tendente à realização da citação, mormente quanto ao local onde deve ser conseguida.

Porém, in casu, a citação considerou-se efetuada, por via postal, em Portugal (...), em percurso não convergente com o disposto no n.º 3 daquele art.º 239.º do NCPCiv.. [...]

Ou seja, comunicou-se ao citando «AA», para morada diversa da residência indicada no requerimento executivo, e mediante «Advertência em virtude da citação não ter sido feita na própria pessoa» (a sua pessoa), nos «termos do disposto no art.º 233.º do Código de Processo Civil», que ficava «notificado de que se considera citado na pessoa de AA (…), que recebeu a citação e duplicados legais.».

Quer dizer, declarava-se ao citando, por não citado na sua própria pessoa, que, afinal, foi citado numa pessoa cujo nome é o seu, pessoa essa que recebeu o expediente notificatório, quando quem recebeu esse expediente foi, comprovadamente, CC, pessoa cuja relação com o Executado se desconhece.

Como resulta óbvio, o citando não acedeu a esse A/R, assinado por outrem, desse modo não lhe tendo sido veiculado o nome/identidade de quem o tenha assinado e recebido o respetivo expediente de citação  [---]

Haverá, pois, irregularidade na citação, à luz das imposições do preceito do art.º 233.º do NCPCiv., visto o que consta das suas diversas alíneas, mormente a al.ª d), que impõe a comunicação ao citando da identidade da pessoa em quem a citação foi realizada.

Irregularidade esta que acresce à desconformidade resultante de a citação ser dada como consumada em Portugal, em vez de na residência, na Noruega, indicada no requerimento inicial (cfr. art.º 228.º, n.º 1, do NCPCiv.), e para onde também foi intentada a citação, sem que se houvesse seguido, todavia, o percurso normativo a que alude o art.º 239.º, n.º 3, do NCPCiv..

Irregularidades determinantes, assim – vista a dimensão/relevância da(s) falta(s) cometida(s) –, da nulidade do ato da citação, por força do disposto no art.º 191.º, n.ºs 1 e 4, do NCPCiv., por o vício/falta cometido poder prejudicar a defesa do citado, já que não se lhe indicou a identidade da pessoa em quem, em seu lugar, foi realizado o ato, aquela pessoa que recebera a citação e duplicados legais e que lhos devia entregar (desconhecendo-se se o fez, pelo que não está afastada a hipótese de o não ter feito), para além da desconformidade do local de realização do ato da citação.

Não se mostrando que tenham sido observadas as exigências legais aludidas quanto ao essencial ato processual da citação, e visto o mencionado equívoco/erro de identidade no âmbito notificatório a que alude o referido art.º 233.º, deve a citação ter-se por inválida, havendo, por isso, de ser repetida."

III. [Comentário] Importa ter presente que a citação do executado não poderia ser realizada nos termos do art. 239.º, n.º 2 e 3, CPC, dado que havia que aplicar -- como decorre do art. 239.º, n.º 1, CPC -- a CCitNot. Note.se também que a Noruega declarou não aceitar a remessa por via postal de actos judiciais referida no art. 10.º. al. a), CCitNot (aqui).

Portanto, o que se verificou não foi uma violação do disposto no art. 239.º, n.º 2 e 3, CPC, mas antes uma violação da CCitNot. Só uma citação que cumpre as exigências estabelecidas por este instrumento internacional pode ser uma citação válida.

MTS