"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



12/06/2024

Jurisprudência 2023 (190)


Causa de pedir; qualificação jurídica
decisão-surpresa


1. O sumário de RG 2/11/2023 (186/21.0T8MTR.G1) é o seguinte:

I - O princípio do contraditório é um dos princípios basilares que enformam o processo civil, exigindo o artigo 3º n.º 3 do Código de Processo Civil que o juiz observe e cumpra ao longo do processo este principio, salvo os casos em que ressalte uma manifesta desnecessidade.

II - Tendo a Autora formulado a sua pretensão com base no instituto do enriquecimento sem causa, pretendendo o Tribunal a quo apreciar da responsabilidade civil extracontratual cabia-lhe dar a conhecer às partes que entendia ser essa a solução jurídica, de forma a observar o princípio do contraditório e a respeitar o preceituado no referido artigo 3º n.º 3, evitando a prolação de uma decisão-surpresa.

III - Para delimitar a causa de pedir “não basta a mera identidade naturalística da factualidade alegada, antes devendo considerar-se a sua relevância em face do quadro normativo aplicável e em função da espécie de tutela jurídica pretendida” pelo autor.

IV - Ainda que a factualidade alegada pela Autora possa também enquadrar uma situação de responsabilidade civil por factos ilícitos, não é indiferente para a decisão a proferir que a Autora tenha configurado a ação e fundado a sua pretensão no instituto do enriquecimento sem causa, pois que num e noutro caso (responsabilidade civil por factos ilícitos e enriquecimento sem causa) estamos perante quadros normativos qualitativamente distintos.

V - Neste caso, ao enquadrar os factos na perspetiva da responsabilidade civil o Tribunal a quo “operou convolação que extravasa o âmbito daquela tal como o definiu a Autora, acabando por conhecer de questão de que não podia tomar conhecimento”, o que determina a nulidade da sentença por excesso de pronúncia nos termos previstos na alínea d) do n.º 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil.

VI - O princípio dispositivo, impõe que se respeite a definição do litígio feita pelas partes.

VII - O instituto do enriquecimento sem causa caracteriza-se pela sua natureza subsidiária, só sendo de aplicar quando a lei não faculte ao empobrecido qualquer meio legal de ser indemnizado ou restituído (cfr. artigo 474º do Código Civil).

VIII - Tendo a Autora à disposição outros meios de tutela jurídica da situação, designadamente ação de indemnização por responsabilidade civil extracontratual, e não tendo alegado e nem provado que o dano patrimonial ressarcível em sede desta é inferior ao enriquecimento sem causa, não pode acionar a ação com base neste instituto, por força do caráter subsidiário da obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"[...] entendemos assistir razão ao Recorrente quando invoca a nulidade da sentença e a violação do principio do contraditório, sustentando que a sentença recorrida, ao condenar o Recorrente com fundamento na responsabilidade civil por factos ilícitos, constitui uma verdadeira decisão-surpresa.

Alega o Recorrente que a Autora fundou a sua pretensão no instituto do enriquecimento sem causa, indicando expressamente na petição inicial os artigos 473º, 479º e 480º, todos do Código Civil, sendo inequívoco que apenas fundou o seu pedido neste instituto, não podendo o recorrente prever que o julgador proferisse sentença declarando procedente a ação com base em responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos.

Vejamos.

Cremos ser consensual que ao tribunal se encontra vedada (salvo casos de manifesta desnecessidade) a possibilidade de conhecer de uma questão nova, não suscitada pelas partes, sem que tenha dado a possibilidade às mesmas de se pronunciarem sobre ela, o que nos remete efetivamente para a questão da decisão surpresa e suas consequências.

Decorre do artigo 3º n.º 3 do CPC que “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.

Como é consabido, o princípio do contraditório é um dos princípios basilares que enformam o processo civil, exigindo aquele preceito do juiz que observe e cumpra ao longo do processo este principio, salvo os casos em que ressalte uma manifesta desnecessidade.

Como se consigna no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/07/2018 (Processo n.º 177/15.0T8CPV-A.P1.S1, Relator Helder Roque, disponível em www.dgsi.pt)  “[d]o princípio do contraditório decorre a regra fundamental da proibição da indefesa, em função da qual nenhuma decisão, mesmo interlocutória, deve ser tomada, pelo tribunal, sem que, previamente, tenha sido dada às partes ampla e efetiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar”.

Porém, a decisão-surpresa respeita à a solução jurídica que as partes não tinham a obrigação de prever, para evitar que sejam confrontadas com decisões com que não poderiam contar, e não com os fundamentos não expectáveis de decisões que já eram previsíveis, “não se confundindo a decisão-surpresa com a suposição que as partes possam ter concebido quanto ao destino final do pleito, nem com a expectativa que possam ter realizado quanto à decisão, quer de facto, quer de direito, sendo certo que, pelo menos, de modo implícito, a poderiam ou tiveram em conta, designadamente, quando lhes foi apresentada uma versão fáctica não contrariada e que, manifestamente, não consentiria outro entendimento”, conforme se refere no citado acórdão de 12/07/2018 .

In casu, a Autora veio formular a sua pretensão com base no enriquecimento sem causa e, ainda que fosse licito ao Tribunal a quo apreciar da responsabilidade civil extracontratual (o que entendemos não ser conforme adiante iremos explanar) cabia-lhe sempre dar a conhecer às partes que entendia ser essa a solução jurídica, de forma a observar o princípio do contraditório, respeitando o preceituado no referido artigo 3º n.º 3 do CPC.

Assim sendo, deveria sempre o Tribunal a quo antes de proferir a sentença, ter notificado as partes, em obediência ao estabelecido neste preceito, advertindo-as para a intenção de vir a conhecer do pedido da Autora com fundamento em responsabilidade civil extracontratual por fatos ilícitos, e não com base no instituto do enriquecimento sem causa invocado pela Autora.

No caso dos presentes autos o Recorrente não teve efetivamente a oportunidade de debater a questão da responsabilidade civil extracontratual, não se podendo afirmar que a decisão proferida pelo Tribunal a quo era ou devia ser previsível, sendo por isso de concluir que a decisão recorrida constitui uma decisão surpresa com violação do princípio do contraditório, sendo, por isso, nula.

Mas, a sentença recorrida é nula, não só por violação do principio do contraditório, mas também por ter o Tribunal a quo conhecido de causa de pedir diversa da que fora invocada pela Autora nos presentes autos, apreciando e decidindo à luz da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, quando a Autora reconduzira os factos ao instituto do enriquecimento sem causa, nele fundando a sua pretensão, conforme decorre expressamente do alegado na petição inicial:

“Como resulta do supra exposto, sem causa justificativa, o réu locupletou-se com quantia superior a 30.000,75 €, à custa do património do da herança autora e de sua esposa BB e, consequentemente, dos seus legítimos herdeiros e sucessores, que ficaram empobrecidos na medida do correspondente enriquecimento sem causa daquele.

Por isso, está o réu obrigado a restituir à herança autora a referida importância (30.000,000 €), como também a pagar os respetivos juros legais a contar da recusa da restituição, uma vez que tem e sempre teve pleno conhecimento da falta de causa do seu enriquecimento (Art.s 473º, 479º e 480º do Cód. Civil)” (cfr. artigos 38º e 39º da petição inicial).

A este propósito importa ter presente o que deve entender-se por causa de pedir.

Decorre do preceituado no artigo 581º n.º 4, do CPC (relativamente aos requisitos da litispendência e do caso julgado) que há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico; nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas ações constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.

Contudo, como se escreve no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/09/2018 (Processo n.º 21852/15.4T8PRT.S1, Relator Tomé Gomes, disponível em www.dgsi.pt“(…) a causa de pedir, legalmente definida (art.º 581.º, n.º 4, do CPC) como facto jurídico de que procede a pretensão deduzida, consubstancia-se numa factualidade alegada como fundamento do efeito prático-jurídico pretendido, factualidade esta que não deve ser destituída de qualquer valoração jurídica, mas sim relevante no quadro das soluções de direito plausíveis a que o tribunal deva atender ao abrigo do art.º 5.º, n.º 3, e nos limites do art.º 609.º, n.º 1, do CPC, independentemente da coloração jurídica dada pelo autor (…).

Nessa conformidade, a causa de pedir pode ser, analiticamente, configurada por dois vetores complementares:

a) – o seu perfil normativo, que a doutrina designa por causa de pedir próxima (…), traçado não em função da qualificação jurídica dada pelo autor, mas à luz do quadro das soluções de direito plausíveis que ao tribunal cumpre, a final, convocar, em função do efeito prático-jurídico pretendido;

b) – o seu substrato factológico, também designado por causa de pedir remota (…), o qual é preenchido, segundo um critério empírico-normativo, em função do tipo de factualidade desenhada, em abstrato, na factis species aplicável, tendo ainda em conta os critérios de repartição do ónus da prova formulados a partir do sobredito efeito prático-jurídico”.

Assim, como aí se refere, para delimitar a causa de pedir, não basta a mera identidade naturalística da factualidade alegada, antes devendo considerar-se a sua relevância em face do quadro normativo aplicável e em função da espécie de tutela jurídica pretendida (sublinhado nosso).

O referido artigo 581º n.º 4 acolhe a designada doutrina da substanciação, segundo a qual a causa de pedir deve ser preenchida com os factos essenciais causantes do efeito jurídico pretendido.

A este propósito Abrantes Geraldes (Temas da Reforma de Processo Civil, Vol. I, Almedina, 2.ª Edição, Coimbra, 1998, p. 192-193) considera que neste preceito o legislador fez uma opção clara ente dois sistemas possíveis: o da individualização ou o da substanciação da causa de pedir e que “a opção pela teoria da substanciação implica para o autor a necessidade de articular os factos de onde deriva a sua pretensão, formando-se o objeto do processo e, por arrastamento, o caso julgado, apenas relativamente aos factos integradores da causa de pedir invocada”.

Sendo consabido que, em regra, a distinção de causas de pedir é feita através da conjugação da factualidade concretamente alegada com o quadro normativo aplicável, não podemos desconsiderar que em certos casos uma mesma factualidade pode configurar distintos quadros normativos, sujeitos a diversos modos de tutela jurídica e, nestes casos, a distinção terá de ser feita em função do designado “vetor normativo da causa de pedir”.

Por isso, ainda que ao tribunal incumba proceder às qualificações jurídicas que tiver por corretas (cfr. artigo 5º n.º 3 do CPC), essa liberdade de qualificação não pode “permitir uma convolação qualificativa tão ampla que conduza a um modo de tutela de conteúdo essencialmente diferente do visado pelo autor, extravasando o limite da condenação prescrito no art.º 609.º, n.º 1, do CPC e atentando contra os princípios do dispositivo e do contraditório, em função dos quais as partes pautaram a configuração do litígio e a discussão da causa” (v. o citado acórdão de 18/09/2018).

Neste sentido Lebre de Freitas (“Caso julgado e causa de pedir, O enriquecimento sem causa perante o artigo 1229.º do Código Civil”, Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de maio de 2006, in ROA 2006, Ano 66, Vol. III, p. 8 [...]) afirma o seguinte: “Ora, embora a causa de pedir seja integrada por factos concretos, está hoje abandonada a ideia de que ela se possa delimitar segundo critérios meramente naturalísticos, o que a conduziria à impossibilidade de a circunscrever em termos jurídicos. Fora o caso de concurso de normas meramente aparente, dois complexos de factos, cada um dos quais integre a previsão duma norma jurídica constitutiva de direitos, só constituirão a mesma causa de pedir se o núcleo essencial das duas normas for o mesmo”.

Também Teixeira de Sousa (“Algumas questões sobre o ónus de alegação e de impugnação em processo civil”, in Scientia Iuridica, Tomo LXII, n.º 332, 2013, p. 395 e ss., apud o citado acórdão de 18/09/2018) considera que “[a] causa de pedir é constituída pelos factos necessários para individualizar a pretensão material alegada. O critério para delimitar a causa de pedir é necessariamente jurídico. É a previsão de uma regra jurídica que fornece os elementos para a construção de uma causa de pedir. (…) Os factos que constituem a causa de pedir devem preencher uma determinada previsão legal, isto é, devem ser subsumíveis a uma regra jurídica: eles não são factos “brutos”, mas factos “institucionais”, isto é, factos construídos como tal por uma regra jurídica. Isto demonstra que o recorte da causa de pedir é realizado pelo direito material: são as previsões das regras materiais que delimitam as causas de pedir, pelo que, em abstrato, há tantas causas de pedir quantas as previsões legais”.

Assim, e regressando ao caso concreto, ainda que a factualidade alegada pela Autora possa enquadrar uma situação de responsabilidade civil por factos ilícitos, não é indiferente para a decisão a proferir que a Autora tenha configurado a ação e fundado a sua pretensão no instituto do enriquecimento sem causa, pois que num e noutro caso (responsabilidade civil por factos ilícitos e enriquecimento sem causa) estamos perante quadros normativos qualitativamente distintos.

Do exposto decorre que, na sentença recorrida, ao enquadrar os factos na perspetiva da responsabilidade civil, o Tribunal a quo “operou convolação que extravasa o âmbito daquela tal como o definiu o autor, acabando por conhecer de questão de que não podia tomar conhecimento”.

É esta também a conclusão a que se chegou no acórdão do Supremo tribunal de Justiça de 24/01/2019 (Processo n.º 948/14.5TVLSB.L1.S1, Relatora Rosa Ribeiro Coelho, também disponível em www.dgsi.pt), onde se tratou idêntica questão e que aqui seguimos de perto.

Conforme se escreve neste acórdão “[o] art. 474º, afirmando a subsidiariedade do enriquecimento sem causa face a outro instituto, nomeadamente a responsabilidade civil, ao qual possa ser reconduzido o mesmo conjunto de factos que também preencha os requisitos daquele, aponta para a impossibilidade de se recorrer ao primeiro por o segundo ser, no caso, configurável.

 Assim, em hipóteses como esta – que é a dos autos -, é de adotar, a ideia acima transcrita de Teixeira de Sousa – igualmente presente no ensinamento de Lebre de Freitas –, justificando-se, por isso, e tal como se disse no acórdão deste STJ de 18.9.2018, dar destaque, na configuração da causa de pedir concretamente invocada, ao vetor normativo seguido pelo autor, o que, no caso, aponta para a valoração dos factos enquanto integradores de um enriquecimento cuja restituição se pretende com a propositura da ação.

Assim definida a causa de pedir da presente ação, é de concluir que a sentença, ao valorar os factos na perspetiva da responsabilidade civil - e apesar de parecer ser permitida pela liberdade de qualificação jurídica consagrada no nº 3 do art. 5º do CPC -, operou convolação que extravasa o âmbito daquela tal como o definiu o autor, acabando por conhecer de questão de que não podia tomar conhecimento”.

Considerando aqui a definição de causa de pedir a que nos referimos, e sendo de dar relevo ao vetor normativo seguido pelo Autora, temos de concluir que não estamos perante uma mera qualificação jurídica distinta, tal como é permitida pelo n.º 3 do artigo 5º do CPC, mas de se decidir por uma pretensão qualitativamente distinta da formulada pela Autora, e nem sequer por esta deduzida, “quer quanto à relação jurídica material controvertida, quer quanto ao próprio efeito pretendido, e portanto fora do perímetro da vinculação temática do tribunal, nos termos decorrentes dos artigos 5.º, n.º 1, 260.º, 609.º e 611.º do CPC” (v. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/01/2017, Processo n.º 873/10.9T2AVR.P1.S1, Relator Tomé Gomes, disponível em www.dgsi.pt). [...]

É, por isso, de concluir que a sentença enferma da nulidade de excesso de pronúncia nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615º do CPC ao condenar o Réu com base na responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, quando a Autora configurou a ação com base no instituto do enriquecimento sem causa e, com base neste, deduziu a sua pretensão."

[MTS]