"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



27/09/2024

"As outras nulidades da sentença cível" -- resposta a uma crítica


1. Foi recentemente publicado na revista Julgar Online um artigo do Des. Paulo Ramos de Faria e do Dr. Nuno de Lemos Jorge intitulado "As outras nulidades da sentença cível". O artigo estabelece um diálogo profundo, além do mais, com a minha orientação sobre o regime das decisões-surpresa.

Os Autores -- que, aliás, me dirigem muito simpáticas palavras -- tiveram ainda a amabilidade de me enviar o texto do artigo antes da sua publicação. As linhas que se seguem retomam e desenvolvem (embora apenas na medida do indispensável) a resposta que então enviei aos Autores. 

2. Vou começar por uma memória pessoal. Eu não tive nenhuma intervenção na Reforma de 1995/1996, mas participei em várias sessões de divulgação da Reforma por esse país fora. Numa delas, fui mesmo apelidado de "eminência parda da Reforma" (coisas como esta nunca se esquecem!).

A matéria das decisões-surpresa era, naturalmente, um tema obrigatório nessas sessões e cedo comecei a ouvir que a violação do disposto no art. 3.º, n.º 3, CPC/61 originava uma nulidade processual inominada (art. 201.º, n.º 1, CPC/61). De imediato me pareceu que não podia ser assim, dado que isso originava que, antes de interpor qualquer recurso da decisão, havia que, primeiro, invocar a referida nulidade perante o tribunal que tinha proferido a decisão-surpresa (art. 202.º CPC/61). Como é claro, na perspectiva pragmática de que não faz sentido defender soluções sem sentido prático, a complicação era inaceitável.

A alternativa estava à vista: o vício tinha de ser analisado na perspectiva da decisão-surpresa e como um vício inerente à própria decisão-surpresa. Quer dizer: a decisão-surpresa é, ela própria, uma decisão viciada, pelo que há que estudá-la, não na perspectiva da consequência da nulidade processual decorrente da omissão de um contraditório prévio, mas antes na óptica de uma decisão que padece de um vício próprio. Como abaixo se referirá, há que considerar a distinção entre o vício que afecta a sentença como trâmite e o vício que a atinge como acto.

Porque o vício respeita à decisão, o problema a enfrentar era a taxatividade do disposto no (então) art. 668.º CPC/61. A solução foi a de qualificar a decisão-surpresa como uma decisão nula por excesso de pronúncia (art. 668.º, n.º 1, al. d), CPC/61), dado que nenhuma outra das nulidades (nominadas) da sentença parecia aplicável. O modo de impugnação da decisão-surpresa (recurso ou reclamação) era então determinado pelo disposto no art. 668.º, n.º 4, CPC/61.

Embora mantendo sempre a posição inicial, ao longo dos tempos fui procurando aperfeiçoar no Blog a minha posição. O enquadramento legal só permitia uma solução, mas importava procurar encontrar a melhor justificação para a enquadrar no disposto no actual art. 615.º CPC (correspondente ao art. 668.º CPC/61). Uma coisa são diferenças de opinião (que se combatem com argumentos), outra coisa são "ilogicidades processuais" (que se combatem sem mais). Foi uma destas "ilogicidades" que motivou o post "Por que se teima em qualificar a decisão-surpresa como uma nulidade processual?

Importa acrescentar que, para o estudo do problema das decisões-surpresa não é fácil encontrar apoio no direito comparado. Isso sucede, não porque as decisões-surpresa sejam desconhecidas de outras ordens jurídicas (art. 101 c.p.c.; § 139 (2) ZPO; § 182a öZPO), mas antes porque não se encontra nesse direito nada de semelhante ao disposto no art. 668.º CPC/61 (actual art. 615.º CPC), o que, como bem se compreende, faz toda a diferença. Nomeadamente, na Alemanha as decisões-surpresa são impugnadas em recurso (Berufung, Revision) como uma (qualquer) decisão que contém um Verfahrensmangel decorrente da violação do direito das partes à sua audição prévia (por exemplo, MüKommZPO/Fritsche (2020), § 139, 41) É coerente (e tem até implicações constitucionais), mas não tem nada a ver com o que se passa no ordenamento processual português.

3. a) Passa-se agora a analisar a orientação que os Autores propõem no seu artigo. As divergências estendem-se a outros pontos da sua orientação, mas vou concentrar-me no essencial e deixar de lado o acessório.

Começo pelos pontos de convergência (que não deixam de ser significativos):

-- O vício de que padece a decisão-surpresa é um vício próprio desta decisão: "Não existe nenhuma irregularidade processual prévia à prolação da decisão-surpresa" (2.-2.1.); "Inexiste omissão de contraditório prévio à decisão; o que existe é uma decisão sem o contraditório prévio devido" (2.-2.1.; também 2-2.3.1.); foi sempre a posição que se defendeu no Blog;

-- "No processo civil, não existem «irregularidades retroativas», designadamente omissões retroativas" (2.-2.1.); também se defendeu a mesma orientação no Blog.
 
Terei, no entanto, de voltar a estes pontos, porque, se bem compreendi a posição dos Autores, estes acabam por abandonar estes postulados a favor da qualificação da decisão-surpresa como uma decisão que é nula por padecer da nulidade processual inominada estabelecida no art. 195.º, n.º 1, CPC.

b) Segundo se julga ter percebido, os principais argumentos dos Autores são o de que a decisão-surpresa decorre de um erro no "julgamento pressuponente" sobre a "decisão de decidir" (1.-1.6., 1.-1.9., 2.-2.3., 2.-2.3.1., 2.-2.3.2. e 3.-3.2; também 4.-1.1.) e o de que a decisão-surpresa contém um erro julgamento processual, que os Autores qualificam como um "erro na decisão de decidir" (4.-3.7.). 

O problema é que, no direito processual civil português, há uma diferença legal (e não apenas doutrinária) entre a decisão que padece de um error in iudicando -- que é a que contém um erro na decisão -- e a decisão que contém um error in procedendo -- que, em minha opinião, é precisamente o que acontece quando, para utilizar a (feliz) expressão dos Autores, há um "erro na decisão de decidir".

O sistema português não é unitário, mas antes dual, dado que impõe que se distinga, nomeadamente, entre uma pronúncia errada (erro na decisão) e uma omissão ou excesso de pronúncia ou uma pronúncia ultra petitum ("erro na decisão de decidir"). Tome-se como exemplo a apreciação de uma questão de competência jurisdicional. Uma coisa é o tribunal apreciar a questão da competência e (eventualmente) decidi-la mal: trata-se de um error in iudicando; outra coisa é o tribunal não apreciar a questão da competência que devia ter apreciado; trata-se de um error in procedendo (omissão de pronúncia).

Quer dizer: o sistema processual português opera com uma solução dual que distingue entre o que é decidido (bem ou mal) e o que é decidido (necessariamente mal) quando não pode ser decidido ou o que não é decidido (novamente, necessariamente mal) quando devia ter sido decidido.

4. a) A distinção entre o error in iudicando e o "erro na decisão de decidir" -- e, portanto, a impossibilidade de reconduzir este erro àquele error -- não devia suscitar nenhumas objecções. Sempre que um qualquer órgão tem uma competência decisória, pode ocorrer um error in iudicando -- quando o órgão decide mal -- ou um "erro na decisão de decidir" -- quando o órgão entende que tem competência para decidir (quando a não tem) ou quando esse órgão entende que não tem de decidir (quando não pode deixar de decidir). No fundo, a diferença é entre o erro decorrente do exercício do poder de decisão (error in iudicando) e o erro sobre o próprio poder de decisão ("erro na decisão de decidir"). Uma coisa é exercer mal um poder que se tem; outra é exercer um poder que não se tem ou deixar de exercer um poder que se tem de exercer.

A distinção entre o erro na decisão e o "erro na decisão de decidir" também não é alheia à vida quotidiana. Suponha-se que um cinéfilo vai ver um filme, porque está convencido de que o filme ganhou o Oscar da melhor canção; depois disso, o cinéfilo verifica que estava em erro sobre o filme que tinha ganho o Oscar; trata-se de um erro na decisão (error in iudicando). Suponha-se agora que um grupo de cinéfilos combina que todos os meses vão ver juntos um filme e que este será escolhido rotativamente por um dos membros do grupo; um destes membros informa os demais do filme do mês que escolheu; sucede, no entanto, que esse membro está em erro sobre a sua vez, dado que, nesse mês, não lhe cabe a escolha do filme; noutros termos, esse membro está em "erro na decisão de decidir".

b) Ilustrando com a observância do contraditório e, em especial, com o disposto no art. 3.º, n.º 3, CPC sobre o contraditório prévio, a dualidade constituída pelo error in iudicando e pelo error in procedendo implica o seguinte:

-- Uma coisa é o tribunal decidir que a questão já se encontra suficientemente discutida entre as partes e dispensar qualquer outro contraditório; neste caso, sucedem duas coisas: há um (eventual) error in iudicando e não há qualquer decisão-surpresa;

-- Outra coisa é o tribunal não se pronunciar sobre o exercício do contraditório e decidir a questão (processual ou material): neste caso, também sucedem duas coisas, mas totalmente diferentes: há um error in procedendo e há uma decisão-surpresa.

Do sumariamente referido já se pode concluir onde reside a minha objecção à construção dos Autores: ela dá a mesma solução a duas situações que o sistema processual impõe que se considerem distintas. Em concreto: a omissão da concessão do exercício do contraditório às partes não é tratada da mesma forma que a pronúncia errada sobre o exercício desse contraditório. Recorrendo à terminologia dos Autores: o sistema processual impõe precisamente uma distinção entre o erro na decisão e o "erro na decisão de decidir" (que, aliás, é uma óptima expressão quando utilizada em referência às nulidades da sentença).

5. a) Comungando do ponto de partida dos Autores de que a decisão-surpresa é um vício próprio e autónomo e de que não há "irregularidades retroativas", não é sem surpresa que se vê os Autores aceitarem a conjugação da decisão-surpresa com a nulidade processual inominada estatuída no art. 195.º, n.º 1, CPC (1.-1.6. e 2.-2.3.1.: "[...] o ato decisório praticado em violação do disposto na segunda parte do n.º 3 do art. 3.º, é um ato que a lei não admite, em si mesmo. Podendo esta viciação influir no exame ou na decisão da causa, a sua subsunção à fatispécie do n.º 1 do art. 195.º não deve merecer grandes reservas [...]"). 

O caminho trilhado pelos Autores fica assim claro, mas, com toda a consideração, levanta muitas dificuldades:

-- A decisão-surpresa é uma decisão que padece de um "erro na decisão de decidir", que os Autores identificam com um error in iudicando;

--
Quando se pensava que o problema estava resolvido, eis que se descobre que, afinal, a decisão-surpresa é uma decisão nula porque preenche uma das previsões da regra constante do art. 195.º, n.º 1, CPC.

Os Autores justificam esta combinação referindo que, "[e]m suma, a decisão-surpresa encontra-se viciada por um error in procedendo e compreende um error in judicando" (2.-2.3.1.). Salvo o devido respeito, trata-se de uma afirmação que em nada clarifica a análise do problema, dado que o error in procedendo e o error in iudicando não podem incidir sobre o mesmo vício, sob pena de, para além do mais, se retirar qualquer espaço para a generalidade das nulidades da sentença referidas nos art. 615.º, n.º 1, 666.º, n.º 1, e 685.º CPC.

b) A indecisão sobre a qualificação da decisão-surpresa pelos Autores torna-se patente quando os mesmos tratam da forma de impugnação dessa decisão:

-- "A prevalência da apelação como meio impugnatório [...] explica que a decisão-surpresa não caia inevitavelmente nas malhas do regime de arguição previsto no art. 195.º e seguintes, quando o recurso é admissível. Desta decisão cabe recurso (normal) por error in judicando no julgamento pressuponente (a decisão de decidir)" (2.- 2.3.2.; também 4.-2.1.);

-- "Não sendo a decisão recorrível, por a causa o não admitir, cessa o concurso aparente de meios de impugnação, sendo aplicável sem dificuldade o regime da nulidade (art. 195.º e segs.), podendo a parte prejudicada dela reclamar para o juiz do processo (art. 197.º)" (2.-2.3.2.; também 4.-2.2.).

Salvo o devido respeito, o vício de que padece a decisão -- error in iudicando ou nulidade processual -- não pode ser distinto em função do respectivo meio de impugnação. O correcto é precisamente o contrário: o meio de impugnação da decisão-surpresa é definido em função do vício de que a mesma padece. Assim, se a decisão-surpresa é nula porque preenche o estabelecido no art. 195.º, n.º 1, CPC, tem de se ser coerente e extrair todas as consequências (também ao nível do modo de impugnação) que decorrem dessa qualificação.

c) Apenas um apontamento suplementar. Como bem acentuam os Autores, eu não entendo que toda a decisão proferida sem a audição prévia das partes é uma decisão-surpresa. Se (num exemplo meramente académico), o juiz decide a reconvenção deduzida pelo réu antes de o autor poder ter apresentado a sua réplica, essa sentença é efectivamente nula nos termos do art. 195.º, n.º 1, CPC, dado que é proferida num momento da tramitação em que tal não é permitido. Em contrapartida, a posição dos Autores conduz a identificar, ao nível do enquadramento jurídico, uma decisão que é proferida quando a lei não o permite com uma decisão que é proferida no momento legalmente estabelecido, mas que, atendendo à falta de audição prévia das partes, conhece de matéria de que não podia conhecer. 

A verdade é que a melhor solução é aquela que não confunde um problema relativo à decisão como trâmite (nulidade processual) com um problema respeitante à decisão como acto (nulidade da decisão). Aliás, só esta distinção permite autonomizar as nulidades da sentença das nulidades processuais, o que também impede que, ao contrário do que é defendido pelos Autores, se possa entender que o que não "cabe" nas nulidades da sentença enunciadas nos art. 615.º, n.º 1, 666.º, n.º 1, e 685.º CPC possa "caber" nas nulidades processuais inominadas reguladas no art. 195.º, n.º 1, CPC. As nulidades processuais não constituem o género do qual as nulidades da sentença são uma espécie, pelo que não se pode transitar entre umas e outras.

6. O artigo em análise constitui o estudo mais completo e mais profundo sobre a problemática das decisões-surpresa realizada pela doutrina (ou pela "jurisprudência"?) portuguesa. 

No entanto, para além do que acima se referiu e sem querer utilizar um argumento ad terrorem, a construção dos Autores sobre a recondução do "erro na decisão de decidir" a um erro de julgamento, a ser transposta para outras situações previstas no art. 615.º, n.º 1, CPC, conduziria a suprimir muitas das nulidades da sentença. Afinal, não é verdade que, a propósito, da omissão de pronúncia, do excesso de pronúncia ou do julgamento ultra petitum se pode dizer que ocorre um erro de julgamento em matéria processual no sentido que os Autores dão a esta expressão, ou seja, no de um "erro na decisão de decidir"?

O artigo leva a pensar e a repensar a problemática das decisões-surpresa, mas, em minha opinião, não abala a solução coerente e simples que tenho vindo a defender: a de que a decisão-surpresa é uma decisão nula por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), 666.º, n.º 1, e 685.º CPC). Além disso, a divergência defendida pelos Autores no referido artigo em nada se reflecte em termos práticos, dado que a dualidade de modos de impugnação da decisão-surpresa -- o recurso, quando admissível, ou a reclamação, quando o recurso não for admissível -- coincide totalmente com aquela que resulta da caracterização da decisão-surpresa como uma decisão nula por excesso de pronúncia e da consequente aplicação do disposto no art. 615.º, n.º 4, CPC.

Em suma: em comparação com a orientação que venho defendendo, aquela que é preconizada pelos Autores do artigo tem uma muito discutível fundamentação teórica e acaba por fornecer uma solução que, em termos práticos, em nada difere daquela venho propondo.


MTS