Processo de inventário;
liberalidades inoficiosas; redução; caducidade*
I. O sumário de RL 7/3/2024 (8169/23.0T8LRS.L1-2) é o seguinte:
1- O prazo de caducidade previsto no art.º 2178º do Código Civil não é aplicável à acção de inventário (nem tão pouco ao arrolamento preliminar da mesma), mas apenas e tão só à acção comum proposta pelo herdeiro contra o beneficiário de liberalidade que não seja herdeiro, visando a redução da mesma por ofensa da legítima.
2- Tendo o autor da sucessão deixado em legado ao seu cônjuge acções de uma sociedade comercial, legado esse susceptível de ofender a legítima dos demais herdeiros legitimários, o que interessa aos fins do inventário a propor é a especificação da totalidade das acções legadas, para efeitos do apuramento do valor dos bens da herança, do cálculo do valor da legítima e da correspondente redução do legado por inoficiosidade, tudo operações a realizar no âmbito desse inventário.
3- Assim, e porque o arrolamento constitui medida cautelar dependente da acção à qual interessa a especificação dos bens, sendo de decretar quando haja justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, relativamente aos quais haja de ser feita tal especificação, estando verificado o receio de dissipação da totalidade das acções legadas justifica-se o arrolamento das mesmas, na sua totalidade, para salvaguarda do referido interesse na sua especificação, em sede de inventário.
II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"Da caducidade do direito à redução do legado
Fazendo apelo ao disposto no art.º 2178º do Código Civil, e tendo presente que é de considerar a aceitação da herança pelos requerentes, pelo menos reportada ao momento da apresentação da participação fiscal identificada em 4. dos factos provados (ou seja, em 22/4/2021), sustenta a requerida, por um lado, que até ao termo do prazo de dois anos aí referido os requerentes não propuseram a “medida judicial para a redução da inoficiosidade (…) seja por que meio processual seja”, assim havendo caducado o direito a tal redução. Do mesmo modo entende que, ainda que se considere que o presente procedimento cautelar corresponde ao referido meio processual apto ao exercício do direito à redução, o referido prazo de caducidade completou-se antes de tal propositura (que ocorreu em 30/8/2023).
Contrapõem os requerentes que o disposto no art.º 2178º do Código Civil tem de ser interpretado no sentido de a acção aí prevista ser a acção comum que há-de ser intentada contra quem não é herdeiro legitimário e que, por isso, carece de legitimidade para a acção de inventário. Já no caso de se tratar da redução por inoficiosidade, relativamente ao legatário que é herdeiro legitimário, é no âmbito da acção de inventário que cabe exercer o direito à redução, e podendo o mesmo ser exercido a todo o tempo, não sendo aplicável o disposto no art.º 2178º do Código Civil.
O instituto da redução de liberalidades por inoficiosidade, previsto nos art.º 2168º e seguintes do Código Civil, está dirigido à protecção da legítima, isto é aquela porção de bens de que o autor da sucessão não podia dispor, por ser legalmente destinada aos herdeiros legitimários (art.º 2156º do Código Civil).
Como explica Pires de Lima (Código Civil anotado, volume VI, 1998, pág. 273), “a característica fundamental da inoficiosidade está, como a disposição salienta no lugar próprio, na circunstância de a liberalidade (seja ela entre vivos, seja mortis causa) ofender a legítima, excedendo o limite da quota disponível da herança”. E mais explica que se apresenta como essencial, para afirmar que se está perante uma limitação da liberdade de disposição mortis causa, “que, ao precisar o modo como se calcula a legítima (ou o valor da legítima), o artigo 2162º não tenha omitido que, para esse efeito, ao lado dos relicta, se devem também incluir os donata e também as despesas sujeitas a colação”.
Numa outra perspectiva, e como se afirma no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/12/2020 (relatado por Rijo Ferreira e disponível em www.dgsi.pt), “a inoficiosidade das liberalidades (art.º 2168º do CCiv) situa-se no âmbito das operações de partilha (cálculo do valor que cabe a cada um dos interessados em função das respectivas quotas hereditárias e preenchimento dos respectivos quinhões) e tem como função reagir à ofensa da legítima dos herdeiros legitimários”.
Assim sendo, e numa primeira abordagem interpretativa do art.º 2178º do Código Civil, parece que a “acção de redução de liberalidades inoficiosas” aí referida não se confunde com a acção especial de inventário.
Com efeito, e como resulta do disposto conjugadamente nos art.º 2102º do Código Civil e 1082º do Código de Processo Civil, é pelo inventário judicial que qualquer herdeiro faz cessar a comunhão hereditária e provoca a partilha, caso a mesma não seja alcançada extrajudicialmente por acordo de todos os interessados.
E estando-se perante a ofensa da legítima destinada aos herdeiros legitimários, o que só se logrará afirmar no âmbito das operações de partilha, não se pode afirmar que o direito à redução da liberalidade inoficiosa se tem por caducado ainda antes dessas operações de partilha, caso tenham já decorrido dois anos desde a aceitação da herança pelo(s) herdeiro(s) legitimário(s).
O que é o mesmo que afirmar que o prazo de caducidade previsto no art.º 2178º do Código Civil não é aplicável à acção de inventário, mas apenas e tão só à acção comum proposta pelo herdeiro contra o beneficiário de liberalidade que não seja herdeiro, visando a redução da mesma por ofensa da legítima.
Como se observa no acórdão de 7/12/2023 do Supremo Tribunal de Justiça (relatado por João Cura Mariano e disponível em www.dgsi.pt), não é “consensual que essa caducidade [ou seja, a caducidade a que respeita o art.º 2178º do Código Civil] ocorra quando os beneficiários das doações forem interessados na partilha da herança”.
Com efeito, e como ficou afirmado no acórdão de 9/4/2002 do Supremo Tribunal de Justiça (relatado por Armando Lourenço, igualmente referido pelos requerentes e disponível em www.dgsi.pt), “sendo o donatário herdeiro legitimário, a redução só em processo de inventário podia [pode] ter lugar”, uma vez que “a redução exige que se proceda a um inventário e à fixação do valor da herança e a uma distribuição dos bens que tenha em conta o efeito das alienações gratuitas na legítima”. Pelo que se concluiu que o “artigo 2178º, CC não é aplicável às situações em que o beneficiário da titularidade seja herdeiro legitimário”. [...]
É certo que no acórdão de 19/10/2017 deste Tribunal da Relação de Lisboa (relatado por António Santos e disponível em www.dgsi.pt), ficou afirmado que “o prazo de caducidade definido no art.º 2178, do Código Civil, tem aplicação outrossim no caso em que o donatário é herdeiro legitimário e sendo a questão suscitada em processo especial de inventário”. Do mesmo modo, no anterior acórdão de 6/10/2011 deste Tribunal da Relação de Lisboa (relatado por Jorge Leal e disponível em www.dgsi.pt) havia ficado afirmado que “a caducidade da acção de redução de doações inoficiosas, prevista no art.º 2178.º do Código Civil, pode ser invocada por qualquer beneficiário da liberalidade, seja ou não herdeiro do doador”.
Todavia, não é possível acompanhar a argumentação aí expressa, para concluir pela aplicação do prazo de caducidade a que respeita o art.º 2178º do Código Civil ao exercício do direito de redução de liberalidades inoficiosas que tenham por beneficiário herdeiro legitimário, e que deva ser exercido em sede de inventário.
Com efeito, o que aí se sustenta é que da doutrina de Alberto dos Reis (R.L.J., ano 85º, pág. 243) emergia que o preceito legal em causa, ao tempo (o art.º 1503º do Código Civil de Seabra), era “letra morta”, porque interpretado no sentido de não ter aplicação, já que a redução sempre carecia de ser pedida em processo de inventário. E como através da redacção do art.º 2178º do Código Civil actual “não se terá querido tomar posição quanto à forma processual do exercício do direito à redução das liberalidades inoficiosas, matéria menos adequada a figurar numa codificação de direito substantivo (…), daí não se pode concluir que se tenha querido preservar a ideia de que a caducidade do direito à redução das liberalidades só beneficia donatários terceiros, ou seja, não herdeiros do doador”, porque “o legislador em parte alguma expressa essa distinção (sendo certo que o intérprete deve presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados – n.º 3 do art.º 9.º do CC), cuja razão de ser não se descortinaria, face às razões de segurança e certeza que tanto interessam a terceiros como aos herdeiros” (as citações são do referido acórdão de 6/10/2011).
Sucede, todavia, que na mencionada interpretação do art.º 2178º do Código Civil não se atentou correctamente à intenção do legislador, tal como a mesma resulta da opção por uma redacção do preceito em sentido distinto da expressa no anteprojecto apresentado por Inocêncio Galvão Telles. Assim, e voltando a citar o referido acórdão de 6/10/2011, se “no seu anteprojecto da parte de Direito das Sucessões do futuro Código Civil o Prof. Inocêncio Galvão Telles incluiu o art.º 184.º, o qual, sob a epígrafe “Prazo de caducidade”, estabelecia que “A anulação ou redução de liberalidades inoficiosas só pode ser pedida em processo de inventário; e o direito a obtê-la caduca se o inventário não for requerido dentro de dois anos a contar da aceitação da herança pelo herdeiro legitimário” (“Direito das Sucessões, anteprojecto de uma Parte do futuro Código Civil Português”, Separata do BMJ n.º 54, 1956)”, daí resultando “claro que a redução das liberalidades inoficiosas só podia operar no âmbito do processo de inventário e bem assim que a tramitação do inventário era compatível com a caducidade do direito à redução”, e se esse texto do anteprojecto não veio a ser consagrado no art.º 2178º do Código Civil, antes ficando a constar do preceito em questão que a “acção de redução de liberalidades inoficiosas caduca dentro de dois anos, a contar da aceitação da herança pelo herdeiro legitimário”, tal só pode significar que o legislador tomou posição, no sentido de não aplicar tal prazo de caducidade à acção especial de inventário, mas apenas à acção declarativa comum, já que, de contrário, utilizaria o texto do anteprojecto ou, no limite, referia tão só o exercício do direito de redução, sem qualificar o meio processual apto a esse exercício.
Ou seja, verificando-se que os requerentes e a requerida são herdeiros legitimários e que a requerida é legatária de bens da herança, não é aplicável ao exercício do direito à redução desse legado por ofensa da legítima o prazo de caducidade a que respeita o art.º 2178º do Código Civil, face a tudo o acima exposto.
Pelo que, visando-se através do presente procedimento cautelar assegurar o exercício efectivo (e futuro) do direito em questão, através do arrolamento dos bens da herança que foram objecto de tal legado, logo se alcança que não se verifica a caducidade do exercício de tal direito, ainda que por via deste meio cautelar e provisório.
O que equivale a afirmar a improcedência das conclusões do recurso da requerida, no que respeita a esta questão da caducidade do direito dos requerentes à redução do legado por inoficiosidade."
*III. [Comentário] Conforme se refere no voto de vencido, em M. Teixeira de Sousa / C. Lopes do Rego / A. Abrantes Geraldes / P. Pinheiro Torres, O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil (Coimbra 2020), 124 s., acompanha-se a orientação que fez vencimento no acórdão.
MTS