I. O sumário de RC 20/2/2024 (1822/23.0T8CVL.C1) é o seguinte:
1. A restituição provisória de posse tem natureza antecipatória, assegurando a satisfação provisória do possuidor e deverá ter lugar quando o juiz se convença da séria probabilidade da verificação dos requisitos da posse e do esbulho violento (art.ºs 368º, n.º 1 e 378º, do CPC), dependendo, pois, da verificação cumulativa de três requisitos: a posse, o esbulho e a violência.
Alegou, em síntese: é dona do referido veículo automóvel, que se encontrava na sua posse exclusiva desde 01.6.2023; terminou a relação de namoro com o requerido no dia 27.10.2023; então, este tirou-lhe a chave do veículo com recurso a força física e recusou devolver-lha; desconhece a localização da viatura, agora, já registada em nome da mãe do requerido, sem que a requerente assinasse declaração de venda.
Determinou-se a não audição prévia do requerido.
É possuidor esbulhado quem foi privado da posse (enquanto poder de disponibilidade fáctica ou empírica de determinado bem) que tinha e que é impedido de continuar a exercer (foi colocado em condições de não poder continuar a exercer a posse; o possuidor ficou privado do exercício ou da possibilidade de exercício dos poderes correspondentes à sua posse), e, em regra, o Réu/requerido/esbulhador terá de restituir a coisa, fazendo cessar a posse iniciada com o esbulho. [---]
A coação moral, na hipótese de esbulho, ocorre quando o possuidor da coisa é forçado à sua privação pelo receio de um mal de que foi ilicitamente ameaçado, mal esse que tanto pode respeitar à sua pessoa como à sua honra ou fazenda ou de terceiro (art.º 255º do CC), enquanto a coação física supõe a completa ausência de vontade por parte daquele a quem a posse foi usurpada. [---]
7. Não suscita qualquer dúvida que o uso de violência sobre as pessoas, quer seja pelo uso da força física, quer seja através da coação moral, pelas formas da intimação e da ameaça, é relevante para, caracterizando o esbulho como violento, fundamentar o deferimento do procedimento cautelar de restituição provisória de posse.
Considerando-se que a violência a que se refere o art.º 1261º do CC tem de exercer-se sobre as pessoas, e não apenas sobre as coisas que constituem um obstáculo à privação da posse (e a ameaça pode respeitar às pessoas ou aos bens, mas há de exercer-se sobre a pessoa do coato), as dúvidas podem-se colocar no tocante à violência sobre as coisas.
Embora estejamos perante questão não isenta de dificuldades (algumas das quais, cremos, poderão ser ultrapassadas se tivermos uma real/adequada configuração da situação controvertida), afigura-se defensável, como regra, o entendimento de que a violência contra as coisas só é relevante se com ela se pretende intimidar, direta ou indiretamente, a vítima da mesma, não devendo, por isso, qualificar-se como tal os meros atos de destruição ou danificação desprovidos de qualquer intuito de influenciar psicologicamente o possuidor - a violência sobre as coisas que estorvam a privação apenas relevará para este fim quando o agente usou, pelo menos de dolo eventual, quando previu, como normal consequência da sua conduta, que iria constranger psicologicamente o possuidor e, todavia, não se absteve de a assumir, conformando-se com o resultado. [---]
8. A referida perspetiva quanto à utilização do procedimento cautelar de restituição provisória de posse, numa interpretação restritiva dos preceitos que o preveem, justifica-se pela diminuição das garantias de defesa do requerido, que não é chamado a defender-se e a contraditar os factos e as provas do requerente previamente à decisão e pela desnecessidade da existência de qualquer prejuízo do requerente - a utilização do procedimento cautelar de restituição provisória da posse, pela diminuição de garantias de defesa do requerido e pela desnecessidade de existência de qualquer prejuízo do requerente, só deve ser permitida em casos em que a violência atingiu pessoas, e não quando apenas se exerceu sobre coisas, pois só aquelas situações revestem uma gravidade que justifica a utilização daquele meio de intervenção draconiano. [---]
9. Ante o descrito enquadramento normativo e a factualidade indiciada em II. 1., supra, antolha-se evidente que a requerente não demonstrou os requisitos do presente procedimento cautelar, desde logo, que tinha a “posse” (concreta e efetiva) do veículo, a sua disponibilidade fática ou empírica, atuando “por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real” (art.º 1251º do CC) sobre o mesmo. [---]
Por outro lado, também não vemos configurado um esbulho violento, uma vez que o desapossamento, a ter existido, foi obtido através de uma ação que não incidiu sobre a requerente, já que não se verificou diretamente qualquer ofensa física à pessoa desta, nem se verificou, direta ou reflexamente, qualquer ofensa psicológica à sua liberdade de determinação, colocando-a na impossibilidade material de agir, ou inibindo-lhe qualquer capacidade de reação, por receio de algum mal.
Tendo em conta a factualidade indiciada e a previsão dos art.ºs 1282º do CC e 377º do CPC, concluiu-se, assim, pela não verificação dos pressupostos/requisitos de que depende o deferimento do procedimento cautelar de restituição provisória de posse.
III. [Comentário] Admite-se que a RC (bem como a 1.ª instância) decidiu bem, atendendo ao que foi alegado e provado no procedimento cautelar. Não se exclui que o tipo de situação que foi alegada pela requerente possa fundamentar, noutras circunstâncias, a procedência da providência de restituição provisória da posse.
MTS