"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



11/11/2024

Jurisprudência 2024 (45)


Direito de usufruto; 
extinção; hipoteca


I. O sumário de RC 2/2/2024 (1660/21.4T8ACB-A.C1) é o seguinte:

1. - Enquanto limitação/compressão ao direito de propriedade (plena), o direito de usufruto extingue-se pela reunião do usufruto e da propriedade na mesma pessoa, como no caso de o usufrutuário adquirir a nua propriedade.

2. - Por regra, se a hipoteca tiver por objeto o direito de usufruto, considera-se extinta com a extinção deste direito.

3. - Todavia, assim não é se a extinção do usufruto resultar de aquisição da (nua) propriedade por parte do usufrutuário (reunião na esfera jurídica deste de todos os poderes correspondentes), caso em que a garantia hipotecária subsiste, como se a extinção daquele direito real se não tivesse verificado.

4. - Num tal caso, penhorado na execução o direito de usufruto objeto de hipoteca, direito esse pertencente ao executado, que depois veio a adquirir a nua propriedade, a execução hipotecária deve prosseguir, com vista à satisfação do interesse do credor garantido, não se justificando, pois, a extinção da instância executiva por inutilidade superveniente da lide.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"1. - Da extinção do direito de usufruto e consequente extinção da garantia hipotecária

Cabe sindicar a impugnada fundamentação jurídica da decisão recorrida, a determinante da procedência dos embargos de executado, com decorrente extinção da execução, por inutilidade superveniente da lide, tudo assentando na diagnosticada extinção do direito de usufruto, a determinar, como entendido pelo Tribunal a quo, a extinção da garantia hipotecária, âmbito em que a Exequente/Apelante, por seu lado, vê flagrante violação do disposto no art.º 699.º, n.º 3, do NCPCiv., motivo pelo qual peticiona a revogação daquela decisão impugnada.

Entendeu aquele Tribunal, na sua fundamentação de direito:

«Temos, assim, que a hipoteca a favor da exequente que incidia sobre a nua propriedade do imóvel foi cancelada e que a executada (usufrutuária do mesmo) adquiriu o imóvel por compra em processo de insolvência, ou seja, passou a ser sua proprietária.

Ora, nos termos do artigo 1476.º, n.º 1, alínea b), do CC, o usufruto extinguiu-se por a executada ter adquirido a propriedade do imóvel nos autos de insolvência dos mutuários.

Compreende-se tal solução uma vez que, reunindo-se o usufruto e a propriedade na mesma pessoa, o usufruto deixa de ser autonomizável, não se vislumbrando de que forma possa subsistir a penhora do usufruto ou ser realizada a sua venda.

Por outro lado, a hipoteca foi cancelada quanto à nua propriedade do imóvel, pelo que, sendo o registo da hipoteca constitutivo, a mesma deixou de subsistir (artigo 867.º do CC).

Assim, porque a execução apenas corria contra a executada por a mesma ser usufrutuária do imóvel sobre o qual impendia hipoteca a favor da exequente (artigo 54.º, n.º 2, do CPC), tal hipoteca foi cancelada quanto à nua propriedade e o usufruto extinguiu-se quando a executada adquiriu a propriedade do imóvel, afigura-se-nos que a execução não poderá continuar a correr contra a executada.

Com efeito, não sendo a executada mutuária e fundando-se a execução contra si apenas na hipoteca, verifica-se que esta não poderá prosseguir nem quanto à nua propriedade (uma vez que a hipoteca foi cancelada nesta parte), nem quanto ao usufruto (que se extinguiu, nos termos já referidos).

Verifica-se, pois, uma inutilidade superveniente dos autos de execução, que cumpre declarar.». [...]

Vejamos. [...]

É consabido que o usufruto «é o direito de gozar temporária e plenamente uma coisa ou direito alheio, sem alterar a sua forma ou substância» (noção disponibilizada pelo art.º 1439.º do CCiv.), podendo «ser constituído por contrato, testamento, usucapião ou disposição da lei» (art.º 1440.º do mesmo Cód.) e abrangendo, quanto ao seu âmbito, designadamente, «todos os direitos inerentes à coisa usufruída» (art.º 1449.º do mesmo Cód.). [...]

Com interesse para o caso dos autos, dispõe ainda o art.º 699.º do CCiv. (sobre “Hipoteca e usufruto”):

«1. Extinguindo-se o usufruto constituído sobre a coisa hipotecada, o direito do credor hipotecário passa a exercer-se sobre a coisa, como se o usufruto nunca tivesse sido constituído.

2. Se a hipoteca tiver por objecto o direito de usufruto, considera-se extinta com a extinção deste direito.

3. Porém, se a extinção do usufruto resultar (…) da transferência dos direitos do usufrutuário para o proprietário, ou da aquisição da propriedade por parte daquelea hipoteca subsiste, como se a extinção do direito se não tivesse verificado.» (destaques aditados).

Aproveitando novamente os ensinamentos de Pires de Lima e Antunes Varela, pode dizer-se que, constituída a hipoteca sobre a propriedade (hipótese do n.º 1 daquele art.º 699.º), «extinto o usufruto, o direito do credor hipotecário passa a exercer-se sobre a coisa», como se nunca tivesse existido usufruto, por este ter uma «natureza de simples limitação ao direito de propriedade» (é «uma restrição que desaparece») ([Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., Coimbra, 1987], p. 721.] 

Já a norma do n.º 3 do mesmo art.º 699.º contempla quer a hipótese de constituição de hipoteca sobre a propriedade, quer, ainda, a de constituição da garantia hipotecária sobre o usufruto ( Vide, op. cit., ps. 721 e 722, referindo que a disposição do n.º 3 «é aplicável aos dois casos referidos».]

Assim, em qualquer desses casos é fora de dúvida que, ocorrendo a extinção do usufruto por aquisição da propriedade por parte do usufrutuário (do mesmo modo que na hipótese de transferência dos direitos do usufrutuário para o proprietário), a hipoteca subsiste, como se a extinção do direito se não tivesse verificado.

Ou seja, extinguindo-se o direito real de usufruto, por via da aquisição da nua propriedade pelo usufrutuário (no caso, a Executada), que se torna, assim, proprietário pleno (por reunião de poderes numa mesma pessoa), a lei impõe que a hipoteca constituída subsista, como se a extinção do direito não tivesse acontecido, num escopo protetivo da posição do credor hipotecário, que não deve ser prejudicado por tal reunião.

Dito de outro modo, se a posição da Executada/garante fica reforçada, que passa de (mera) usufrutuária, a (plena) proprietária, por adquirir a nua propriedade [refere a Executada/Embargante que «Adquiriu a nua propriedade por venda judicial» (---)], o que leva ao desaparecimento da limitação ao direito de propriedade (extinção do usufruto), tal reforço de posição não pode redundar em desfavor do credor garantido/hipotecário, não se justificando a extinção da hipoteca, tal como subsistente ao tempo da mencionada reunião.

Se a hipoteca incide sobre o direito de usufruto e o garante (usufrutuário) se torna (pleno) proprietário, somando ao usufruto a nua propriedade (reunindo ambos), tal não pode desobrigá-lo da garantia prestada, em prejuízo do respetivo credor.

A garantia/hipoteca deve, então, permanecer, sob pena de se castigar injustificadamente o credor e se beneficiar sem motivo o garante, cuja posição (de garante hipotecário) em nada fica posta em causa por aquele passar/ascender, por reunião, de mero usufrutuário a pleno proprietário (sabido que o usufruto, enquanto limitação, se contém dentro da esfera do direito de propriedade).

É certo que a limitação do direito de propriedade cessa, extinguindo-se o usufruto, enquanto limitação/compressão a esse direito dominial, que, assim, se expande, por reunião [art.º 1476.º, n.º 1, al.ª b), aludido].

Mas tal não pode redundar na extinção da garantia/hipoteca previamente constituída: a extinção do usufruto só vem reforçar a posição do garante, assim obtido o dominium (conferido pela propriedade plena), que não pode, por isso, ficar desobrigado perante o credor, merecendo este, salvo o devido respeito, a proteção de antemão conferida ao seu crédito – como crédito garantido –, medida esta pelo direito de usufruto, e não mais, cuja hipoteca se mostra registada, quanto ao imóvel, por apenas ter sido cancelada relativamente à nua propriedade, registo esse anterior ao registo da aquisição do direito de usufruto, havendo ainda registo da penhora do usufruto a favor da Exequente, só posteriormente se dando a dita reunião, sem virtualidade, pois, para afetar/prejudicar a posição do credor hipotecário (---).

Em suma, não pode acompanhar-se a argumentação de pendor extintivo do Tribunal recorrido, antes assumindo preponderância as conclusões em contrário da Apelante, havendo, pois, de considerar-se que subsiste a garantia hipotecária, medida pelo direito de usufruto do imóvel."

[MTS]