"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/10/2025

Jurisprudência 2025 (5)


Notificação judicial avulsa;
competência material


1. O sumário de RL 7/1/2025 (19376/24.8T8LSB.L1-7) é o seguinte:

A notificação avulsa é da competência dos tribunais administrativos, quando se destine a declarar a resolução do contrato de arrendamento, sempre que este tenha sido celebrado ao abrigo do “regime de renda acessível” (previsto no Regulamento Municipal do Direito à Habitação de Lisboa).


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"1. Competência material para a notificação avulsa, em geral

Começa a apelante a sua alegação sustentando que não cabe à jurisdição administrativa realizar notificações avulsas, por não encerrarem estas litígios, designadamente, sujeitos às normas de direito administrativo. Sem razão.

Para a decisão sobre a primeira questão suscitada, não importa imediatamente a qualificação da relação jurídica preexistente entre as partes no caso concreto (melhor, entre o município e a notificanda). Trata-se apenas de verificar se os tribunais administrativos são competentes para a tramitação de notificações avulsas, em geral, isto é, se este tipo de procedimento pode, em abstrato, correr os seus termos perante esta jurisdição.

Dispõe o n.º 1 do art.º 1.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), no que para o caso releva, que “[o]s tribunais da jurisdição administrativa (…) são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas (…), nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto”. Esta disposição reproduz, a um nível infraconstitucional, o teor do n.º 3 do art.º 212.º da CRPort.: “[c]ompete aos tribunais administrativos (…) o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas (…)”.

Por seu turno, estabelece o art.º 4.º, n.º 1, als. e) e o), do ETAF que “[c]ompete aos tribunais da jurisdição administrativa (…) a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a: // (…) e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes; // o) Relações jurídicas administrativas (…) que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores”.

Perante este quadro legal, a primeira questão que nos ocupa reconduz-se a determinar se uma notificação avulsa pode ser vista como a apreciação de um litígio. Numa nota intercalar, desde já adiantamos que assim tem sido entendido pelos Tribunais Administrativos – admitindo-se, no entanto, ser esta uma anecdotal evidence; cfr., por exemplo, o Ac. do TCAN de 12-04-2019 (00094/19.5BECBR).

A notificação avulsa inscreve-se sempre numa relação jurídica preexistente. Ou seja, conforme consta do n.º 1 do art.º 257.º do Cód. Proc. Civil, relaciona-se ela com a titularidade de um direito ou de uma faculdade do requerente (ou de quem este representa) – devendo esta posição jurídica, quando ulteriormente efetivada pela via contenciosa, ser exercida na ação própria. Sendo a notificação avulsa instrumental do exercício de um direito, não se vê razão para que não caiba aos tribunais administrativos a sua realização, quando tal direito emerge de uma relação jurídico-administrativa.

Na notificação avulsa, o recurso ao órgão de soberania tribunal para a realização de um ato jurídico é necessário ou tido por necessário pelo requerente. Afigura-se-nos que esta necessidade de recurso ao tribunal, no contexto do exercício de uma posição jurídica substantiva, ainda representa um pedido de tutela forense, a ser enquadrado num conceito lato de dirimição de um litígio.

E assim se deverão interpretar as normas do ETAF citadas: quando seja necessário recorrer ao tribunal para tutela de um direito emergente de uma relação jurídico-administrativa, deve a pretensão ser formulada perante os tribunais administrativos, independentemente da natureza e do fim da tutela pretendida – quer esta tutela seja realizada a título principal (por via de ação), quer tenha lugar por meio de um procedimento meramente instrumental (como por via de uma notificação avulsa). A não se entender assim, diversos outros procedimentos preparatórios que não se destinam a dirimir (definitivamente) o litígio poderiam ser excluídos da competência do tribunal administrativo, não obstante ser este competente para julgar a causa de que aqueles são meramente instrumentais – como a produção antecipada de prova e mesmo alguns procedimentos cautelares de âmbito meramente conservatório.

Em suma, o procedimento de notificação avulsa é da competência material dos tribunais administrativos, sempre que vise a comunicação de posições jurídicas destinadas a produzir efeitos no âmbito de uma relação jurídica administrativa − cfr. o Ac. do TCAN de 15-07-2015 (02216/15.6BEPRG). Conforme se sustenta neste acórdão, três razões justificam esta conclusão. São elas, em apertada síntese, as seguintes:

“Primeiro, porque se afigura ser essa a interpretação mais compatível com uma organização assente num modelo de dualidade de jurisdições e mais conforme com o critério constitucional de delimitação do âmbito material da jurisdição administrativa. (…)

“Segundo, porque o processo de notificação avulsa não é totalmente “neutro” ou indiferente à natureza da relação jurídica onde se pretende que venham a produzir-se os efeitos jurídicos decorrentes daquela notificação. (…)

“Terceiro, porque essa é a interpretação que mais se adequa ao regime processual que faz depender a notificação avulsa de despacho prévio (cfr. artigo 256.º/1 CPC). A exigência de despacho prévio, que se tem mantido nas sucessivas versões do Código de Processo Civil, implica que o juiz aprecie liminarmente o requerimento (…), nomeadamente, para saber se ‘o direito invocado existe abstratamente na lei’ (…)”.

Nada obsta, pois, que a notificação ora requerida possa ser da competência material dos tribunais administrativos − cfr., a propósito, o comentário sinótico de Miguel Teixeira de Sousa de 5 de dezembro de 2017, publicado no sitio blogippc.blogspot.pt, sob o título «Jurisprudência (742)». No entanto, tal competência só poderá ser afirmada, no caso, se os litígios respeitantes à relação jurídica em que se inscreve deverem ser dirimidos pela jurisdição administrativa.

Improcede, pois, a primeira ordem de conclusões apresentada pela apelante.

2. Competência material para a notificação avulsa requerida

Estabelece o art.º 64.º do Cód. Proc. Civil que “[s]ão da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”. Em ordem a determinar a competência do tribunal a quo temos, pois, de verificar se a competência para a eventual causa da qual a notificação avulsa é instrumental cabe a outra ordem jurisdicional – sendo certo que as regras de competência em razão da matéria não podem ser afastadas por vontade das partes (art.º 95.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil).

Como vimos, a competência material do tribunal a quo para efetuar a notificação avulsa requerida está dependente da qualificação da relação jurídica que intercede entre requerente (ou quem este representa) e notificando – no caso, entre o Município de Lisboa e a notificanda. Também sobre este ponto damos nota, em nova anecdotal evidence, de que os tribunais administrativos já aceitaram a sua competência para dirimir litígios em torno do programa de renda acessível do Município de Lisboa – cfr. o Ac. do TCAS de 03-10-2024 (3370/23.9BELSB-A). Vejamos se este entendimento é de acompanhar.

No que respeita às pessoas coletivas de direito público, o Direito Administrativo regula apenas necessariamente a sua atividade de gestão pública. A restante atividade destas entidades, ainda que enquadrada por normas de direito público, está sujeita às comuns regras de direito privado. Dito de outro modo, apenas as relações jurídico-administrativas (inscritas numa atividade de gestão pública) estão necessariamente sujeitas à normação própria do Direito Administrativo.

Na identificação e qualificação de uma atividade como sendo de gestão pública, é relevante conhecer o seu fim imediato. Sendo o fim prosseguido pelo ente público com a sua atuação, imediatamente, a satisfação de um interesse público específico, esta tende a inscrever-se na sua atividade de gestão pública.

Também essencial é verificar se a contratação foi obrigatoriamente submetida a procedimentos predispostos pelo Direito Administrativo, quer estejam previstos no Código dos Contratos Públicos (o que não é o caso dos autos: art.º 4.º, n.º 2, al. d), do Cód. Cont. Públicos), quer estejam contemplados em normação administrativa avulsa. Neste contexto, a normação regulamentar autárquica, sendo constituída por “normas jurídicas gerais e abstratas que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, vis[a]m produzir efeitos jurídicos externos”, não deixa de integrar o quadro legal do Direito Administrativo – cfr. os arts. 135.º e 142.º, n.º 2, do CPA.

Não assume aqui especial relevância a circunstância de o tipo contratual adotado na conclusão desse procedimento negocial ter também uma ampla regulamentação pelo direito privado. Em qualquer caso, a matriz administrativa da relação entre as partes já se encontra estabelecida, sendo identitária desta relação.

No caso dos autos, o contrato de arrendamento que constitui a relação jurídica preexistente motivadora da notificação avulsa foi celebrado ao abrigo do Regulamento Municipal do Direito à Habitação de Lisboa (RMDH), tornado público pelo Aviso n.º 19251/2019, de 29 de novembro (Diário da República n.º 230/2019, Série II), no regime de “atribuição de habitação com renda acessível”. Note-se que, elucidativamente, o nome deste ato normativo revela que o mesmo visa tutelar o direito à habitação, não sendo um mero regulamento respeitante à gestão e frutificação do parque imobiliário da autarquia através do seu arrendamento.

Revela-nos a “nota justificativa” preambular RMDH que o regime do acesso à habitação com renda acessível tem por fim imediato a satisfação da atribuição do município lisbonense de promoção do direito constitucional à habitação – cfr. o art.º 23.º, n.º 2, al. i), do Anexo I à Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro (que aprova o regime jurídico das autarquias locais). O fim dos contratos celebrados ao abrigo deste regulamento municipal é, pois, diretamente, satisfazer um interesse público – não sendo meramente instrumental da atividade quotidiana do município.

Neste contexto, a edilidade não arrenda o património autárquico com o fim de o rendibilizar (explorá-lo economicamente), mas sim como meio de proporcionar aos munícipes carenciados o acesso à habitação. O escopo do arrendamento sujeito ao regime do acesso à habitação com renda acessível não é, pois, substancialmente distinto do arrendamento sujeito ao “regime de arrendamento apoiado” ou da atribuição do “subsídio municipal ao arrendamento acessível” – sobre a competência para conhecer de litígios em torno de contratos celebrados ao abrigo de diferentes regimes respeitante ao arrendamento destinado a tutelar o direto à habitação, cfr. os Acs. do TConf. de 26-06-2014 (040/13), de 11-12-2013 (049/13), de 29-04-2014 (065/13), de 22-03-2023 (020/21) e de 15-11-2023 (09/23).

Neste regulamento municipal são, designadamente, definidas as regras de contratação a observar na celebração de contratos de arrendamento sujeitos ao regime do acesso à habitação com renda acessível (art.º 1.º, 5.º a 7.º e 26.º a 41.º do RMDH). Dispõe também esta normação autárquica sobre o valor da renda a pagar pelos arrendatários (art.º 26.º, n.º 3, do RMDH). Às questões não previstas no RMDH, aplicam-se subsidiariamente, prevalecentemente, as disposições da Lei n.º 81/2014, de 19 de dezembro (que estabelece o regime do arrendamento apoiado para habitação e regula a atribuição de habitações neste regime), diploma este que estabelece que autarquias locais podem aprovar “regulamentação própria visando adaptar a presente lei às realidades física e social existentes” – cfr. os arts. 2.º, n.º 4, e 60.º, n.º 2, do RMDH.

Ora, a utilização obrigatória, como procedimento pré-contratual num arrendamento, de um concurso público (um “concurso por sorteio”) “implica o recurso a normas de direito público, já que no âmbito do direito privado não existe qualquer limitação de escolha dos outorgantes com quem se pretende celebrar estes contratos” – cfr. o Ac. do TConf. de 03-12-2015 (026/15); cfr., ainda, o Ac. do TRP de 28-10-2021 (84272/20.2YIPRT.P1). O mesmo se diga da fixação do valor da renda e dos requisitos da possibilidade de renovação do arrendamento: no âmbito do direito privado vale apenas a vontade das partes livre e validamente formada. Estas condicionantes da contratação são, de resto, referidas nos considerandos iniciais e no clausulado do contrato de arrendamento invocado pela requerente, conforme consta do ponto 3 – dos factos assentes (arts. 4.º, n.º 4, 5.º, n.º 1, e 12.º (proémio)).

Afigura-se-nos, pois, claro que a relação que se constitui entre o município e os candidatos à concessão de um arrendamento com “com renda acessível”, a partir do momento da apresentação das candidaturas, não é uma mera relação de direito privado. O mesmo é dizer que cabe aos tribunais administrativos conhecer dos litígios respeitantes à relação locatícia, sempre que o contrato de arrendamento tenha sido celebrado pelo município ao abrigo do “regime de renda acessível” (previsto no Regulamento Municipal do Direito à Habitação de Lisboa)

Resta acrescentar que não vale aqui o argumento, invocado pela apelante, de acordo com o qual se encontra prevista a competência dos tribunais administrativos para “conhecer das matérias relativas à invalidade ou cessação dos contratos de arrendamento apoiado” – cfr. o n.º 3 do art.º 17.º da já referida Lei n.º 81/2014 –, inexistindo idêntica disposição no ato normativo que estabelece o regime de “atribuição de habitação com renda acessível”. Como é evidente, o RMDH, sendo um mero regulamento municipal, nunca poderia dispor sobre as regras de competência dos tribunais – cfr. os arts. 110.º, 112.º e 165.º, n.º 1, al. p) da CRPort..

Em conclusão, cabendo à jurisdição administrativa, no caso, conhecer dos litígios respeitantes à relação locatícia preexistente, à mesma jurisdição também cabe a realização da notificação avulsa instrumental à tutela da posição jurídica do município, defendida pela apelante. Deve a decisão do tribunal a quo ser mantida."

[MTS]