"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



01/10/2025

Competência para o processo de insolvência: um indesejável equívoco legislativo (2)

 
1. Na sequência do anterior post, apresenta-se uma sugestão para a redacção do art. 7.º CIRE. A sugestão é a seguinte:

1. Para a abertura de um processo principal de insolvência é competente o tribunal do lugar do centro dos interesses principais do devedor. Na determinação do centro dos interesses principais do devedor aplica-se o estabelecido no art. 3.º do Regulamento (UE) n.º 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015.

2. No caso de o centro dos interesses principais do devedor se situar fora no território português, é competente para a abertura de um processo territorial o lugar do estabelecimento do devedor. Os efeitos do processo territorial são limitados aos bens do devedor que se encontrem em Portugal.

2. Deixam-se as seguintes notas sobre o articulado sugerido:

-- Pretende-se construir um regime universal, ou seja, um regime que seja aplicável quando o devedor tenha o centro dos interesses principais num EM (incluindo, naturalmente, Portugal) e quando isso não suceda;

-- Por uma questão de simplicidade, opta-se por regular num único preceito quer a competência internacional, quer a competência territorial; não se vislumbra nenhuma justificação para que o tribunal territorialmente competente não seja determinado em função do elemento de conexão que é relevante para a aferição da competência internacional dos tribunais portugueses; para reforçar que também se está a regular a competência territorial, optou-se por apresentar uma proposta construída na perspectiva desta competência, sendo, no entanto, claro que a competência territorial "arrasta" a competência internacional;

-- Sobre o n.º 1:

-- O proposto é totalmente compatível com o disposto no art. 3.º, n.º 1, Reg. 2015/848, dado que observa o princípio de que, quando o devedor tenha o centro dos interesses principais num EM (incluindo, naturalmente, Portugal), a competência para a abertura de um processo principal de insolvência pertence aos tribunais desse EM; é naturalmente irrelevante se o devedor tem sede ou domicílio em Espanha ou na Bélgica ou em Angola ou Singapura; 

-- A referência ao Reg. 2015/848 pode ser eliminada, sem qualquer consequência para a aplicação do preceito, dado que, seja como for, a determinação do centro dos interesses principais do devedor em Portugal, é sempre realizada segundo o estabelecido naquele diploma europeu; no entanto, a referência parece ser útil para lembrar ao aplicador a necessária unidade entre o regime interno e o regime europeu; 

-- Sobre o n.º 2:

-- Parte-se do princípio de que se considera desejável regular a competência para o processo territorial de insolvência;

-- O proposto destina-se a regular a situação na qual o centro dos interesses principais do devedor se situa fora do território português e em que, portanto, não pode ser aberto em Portugal um processo principal de insolvência;

-- Regula-se a competência para o processo territorial, independentemente de o centro dos interesses principais do devedor se situar num EM ou num Estado terceiro; assim, em comparação com o disposto no art. 3.º, n.º 2, Reg. 2015/848, o âmbito de aplicação do regime proposto é mais vasto, dado que também se aplica a devedores que tenham o centro dos interesses principais num Estado terceiro; na verdade, não se encontra nenhum motivo para regular a competência para o processo territorial de forma diferente quando o devedor tenha o centro dos interesses principais num EM ou num Estado terceiro; aliás, a identidade de regulação é mais favorável aos operadores forenses do que a construção de um regime diferenciado que não tem qualquer justificação evidente.

-- Optou-se por não propor nenhuma transposição para o direito interno do disposto no art. 3.º, n.º 4, Reg. 2015/848; o regime restritivo quanto à abertura de um processo territorial de insolvência que consta deste preceito faz sentido num espaço com legislação uniformizada e em que se pretende dar prioridade a um processo principal de insolvência que é aberto no centro dos interesses principais do devedor; pelo contrário, é discutível que esse regime de prioridade tenha justificação quando o processo principal de insolvência é aberto em qualquer outra geografia, eventualmente segundo critérios de competência completamente distintos daqueles que valem na UE; ainda assim, apesar de nenhuma regulação no plano interno, é evidente que o estabelecido no art. 3.º, n.º 4, Reg. 2015/848 deve ser aplicado pelos tribunais portugueses sempre que o processo de insolvência seja abrangido por aquele acto europeu;

-- Por uma questão de clareza, optou-se por utilizar a terminologia que é própria do Reg. 2015/848; não é conveniente utilizar no CIRE uma terminologia diferente daquela que é usada no Reg. 2015/848, dado que isso só ajuda a criar confusão no intérprete.

3. Como é claro, a alteração do disposto no art. 7.º CIRE não é tudo o que há a fazer para colocar o CIRE em consonância com o Reg. 2015/848.

4. A latere do que acima se disse, aproveita-se para esclarecer a razão pela qual o art. 3.º Reg. 2015/848, parecendo estar a regular a "competência internacional", está realmente a regular o âmbito de aplicação espacial daquele acto europeu. A razão é muito simples (e, no fundo, reconduzível à máxima de que a jurisdição determina a lei aplicável):

-- O art. 3.º, n.º 1, Reg. 2015/848 atribui competência (exclusiva) ao tribunal do lugar do centro dos interesses principais do devedor para a abertura do processo principal de insolvência; 

-- Se o devedor não tiver o centro dos interesses principais num EM, não há nenhum tribunal de um EM que seja competente para a abertura do processo principal de insolvência;

-- Logo, se o devedor não tiver o centro dos interesses principais num EM, a abertura do processo principal de insolvência só pode ocorrer num Estado terceiro, que, naturalmente, não vai aplicar o Reg. 2015/848;

-- Portanto, a circunstância de o devedor ter o centro dos seus interesses principais num EM constitui uma condição da aplicação do Reg. 2015/848. 

MTS