1. No sumário de um acórdão de uma das Relações pode ler-se o seguinte:
-- "Na providência cautelar comum, o fundado receio de lesão grave e de difícil reparação implica que [o] dano tenha uma gravidade assinalável de tal forma que a sua reparação posterior seja inviável ou mesmo meramente difícil";-- "Relativamente aos interesses meramente pecuniários, a reparabilidade da lesão afere-se pela suficiência ou insuficiência do património do requerido ou pelo perigo do desaparecimento ou diminuição relevante dessa garantia patrimonial".
Com a devida consideração, não se pode aceitar nenhuma destas afirmações (que talvez não sejam da responsabilidade dos subscritores do acórdão).
2. Na fundamentação do acórdão encontra-se a seguinte afirmação:
"[...] não basta, para o deferimento da providência [cautelar], que se conclua pela possibilidade de o requerente poder vir a sofrer um qualquer dano."
Salvo o devido respeito, não é correcto dizer-se que as providências cautelares se destinam a prevenir um dano que o requerente pode vir a sofrer, ou seja, um dano futuro. As providências cautelares destinam-se a evitar o dano -- dano presente, talvez se possa dizer -- que ocorrerá para o requerente se a providência não for decretada. É, aliás, isso que resulta do disposto no art. 2.º, n.º 2, CPC, dado se estatui expressamente que as providências cautelares se destinam a "acautelar o efeito útil da ação" principal. Como se sabe, uma das formas de obviar a esta inutilidade é antecipar na tutela cautelar a tutela definitiva que vai ser obtida através da acção principal.
Assim, se, por exemplo, através de um procedimento cautelar comum, um interessado requer a reparação urgente de um muro que se encontra numa cota superior à da sua habitação e que ameaça desabar sobre esta, o que interessa considerar para aferir o periculum in mora é o dano que pode ocorrer se a providência não for decretada, não o dano que o requerente terá depois de o muro ter desabado sobre a sua habitação.
Procurando ser claro: o periculum in mora é apreciado pelo dano que o não decretamento da providência causa ao requerente, não pelo dano que a actuação ilícita do requerido inflige a esse requerente.
3. A afirmação da Relação sobre o dano a que se refere a providência cautelar e pela qual se afere o periculum in mora conduz a uma segunda afirmação, salvo melhor opinião, igualmente muito discutível:
Procurando ser claro: o periculum in mora é apreciado pelo dano que o não decretamento da providência causa ao requerente, não pelo dano que a actuação ilícita do requerido inflige a esse requerente.
3. A afirmação da Relação sobre o dano a que se refere a providência cautelar e pela qual se afere o periculum in mora conduz a uma segunda afirmação, salvo melhor opinião, igualmente muito discutível:
"Tal dano tem de revestir uma gravidade assinalável, ser penoso e importante de tal forma que a sua reparação posterior seja inviável ou mesmo meramente difícil."
Basta pensar num exemplo simples para se verificar que não pode ser assim. Imagine-se (para não repetir o exemplo anterior) que, num procedimento cautelar, alguém que é afectado pela poluição sonora provocada por uma oficina requer que esta tome as medidas necessárias para terminar essa poluição. Como é evidente, não teria sentido dizer que não há nenhum periculum in mora, porque os prejuízos sofridos pelo requerente com a referida poluição podem sempre vir a ser ressarcidos (eventualmente, apenas quando a oficina venha a ser condenada a fazê-lo no termo de um processo declarativo).
Repete-se: o periculum in mora é aferido pelo prejuízo que resulta para o requerente do não decretamento da providência cautelar. O que o tribunal tem de fazer é verificar qual o prejuízo que o requerente vai sofrer se a providência não for decretada, não fazer nenhuns prognósticos sobre a reparação dos prejuízos que o comportamento ilícito do requerido causa ao requerente. Suponha-se, por exemplo, que o requerente de uma providência cautelar pede a cessação de uma actividade de concorrência desleal; o que o tribunal tem de averiguar é qual o prejuízo que o requerente sofre se não ocorrer a cessação imediata da actividade concorrencial, não se a reparação do prejuízo decorrente da continuação dessa actividade pelo requerido é "inviável ou mesmo meramente difícil".
Repete-se: o periculum in mora é aferido pelo prejuízo que resulta para o requerente do não decretamento da providência cautelar. O que o tribunal tem de fazer é verificar qual o prejuízo que o requerente vai sofrer se a providência não for decretada, não fazer nenhuns prognósticos sobre a reparação dos prejuízos que o comportamento ilícito do requerido causa ao requerente. Suponha-se, por exemplo, que o requerente de uma providência cautelar pede a cessação de uma actividade de concorrência desleal; o que o tribunal tem de averiguar é qual o prejuízo que o requerente sofre se não ocorrer a cessação imediata da actividade concorrencial, não se a reparação do prejuízo decorrente da continuação dessa actividade pelo requerido é "inviável ou mesmo meramente difícil".
4. No caso concreto, a Relação limitou-se a decidir que "os autos [devem] prosseguir os seus regulares termos com a produção de prova pertinente que ao caso couber, decidindo-se depois em conformidade e em função do quadro factual que da produção dessa prova venha a resultar", ou seja, acabou por não tomar posição sobre o preenchimento do requisito do periculum in mora.
Efectivamente, a Relação termina concluindo o seguinte:
"Perante [...]a alegação factual [do requerente] torna-se evidente que, a provar-se, pode preencher o requisito do “periculum in mora”, na ponderação que se venha a fazer das condições económicas dos requeridos como acima se deu nota, razão pela qual o processo devia ter prosseguido os seus termos com a produção de prova e inerente fixação do quadro factual daí resultante."
Esta afirmação só pode partir do equívoco (infelizmente comum) de que, se os requeridos tiverem boa situação financeira, não se verifica nenhum periculum in mora. Como é claro, não é assim. Se o requerente pretende a reparação imediata dos ascensores do prédio, não tem nenhum sentido dizer que não há periculum in mora, porque o proprietário pode suportar todos os danos sofridos pelo requerente.
Repete-se o que acima se referiu: o periculum in mora é apreciado pelo dano que resulta para o requerente do não decretamento da providência, não pelo dano que a actuação ilícita do requerido causa ao requerente (e menos ainda por prognósticos sobre a ressarcibilidade deste dano). Nesta óptica, as providências cautelares comuns destinar-se-iam a prevenir a eventual dificuldade da reparação devida pela prática de actos ilícitos, o que, manifestamente, não corresponde à sua finalidade.
Repete-se o que acima se referiu: o periculum in mora é apreciado pelo dano que resulta para o requerente do não decretamento da providência, não pelo dano que a actuação ilícita do requerido causa ao requerente (e menos ainda por prognósticos sobre a ressarcibilidade deste dano). Nesta óptica, as providências cautelares comuns destinar-se-iam a prevenir a eventual dificuldade da reparação devida pela prática de actos ilícitos, o que, manifestamente, não corresponde à sua finalidade.
5. Em caso de interesse, remete-se para MTS, CPC online, Art. 362.º a 409.º (2025/09), Art. 362.º, n.º 6 ss., onde a matéria respeitante ao periculum in mora é tratada com algum desenvolvimento.
MTS