"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



29/09/2025

Competência para o processo de insolvência: um indesejável equívoco legislativo


1. O art. 7.º CIRE estabelece, para o que agora interessa, o seguinte:

1 - É competente para o processo de insolvência o tribunal da sede ou do domicílio do devedor ou do autor da herança à data da morte, consoante os casos.

2 - É igualmente competente o tribunal do lugar em que o devedor tenha o centro dos seus principais interesses, entendendo-se por tal aquele em que ele os administre, de forma habitual e cognoscível por terceiros. [...]

4 - Se a abertura de um processo de insolvência for recusada por tribunal de um Estado-membro da União Europeia em virtude de a competência caber aos tribunais portugueses, nos termos do n.º 1 do artigo 3.º do Regulamento (UE) n.º 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, não podem estes julgar-se internacionalmente incompetentes com fundamento no facto de a competência pertencer aos tribunais desse outro Estado.

O problema sobre o qual importa reflectir respeita à articulação -- ou melhor, à falta de articulação -- entre o disposto no art. 7.º CIRE e o estabelecido no art. 3.º Reg. 2015/848. Neste art. 3.º dispõe-se, na parte que agora é relevante, o seguinte:

1. Os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro em cujo território está situado o centro dos interesses principais do devedor são competentes para abrir o processo de insolvência («processo principal de insolvência»). O centro dos interesses principais é o local em que o devedor exerce habitualmente a administração dos seus interesses de forma habitual e cognoscível por terceiros. [...]

2. No caso de o centro dos interesses principais do devedor se situar no território de um Estado-Membro, os órgãos jurisdicionais de outro Estado-Membro são competentes para abrir um processo de insolvência relativo ao referido devedor se este possuir um estabelecimento no território desse outro Estado-Membro. Os efeitos desse processo são limitados aos bens do devedor que se encontrem neste último território.

3. Se for aberto um processo de insolvência nos termos do n.º 1, qualquer processo aberto posteriormente nos termos do n.º 2 constitui um processo secundário de insolvência. [...]

O art. 3.º Reg. 2015/848 é claro em estabelecer o seguinte:

-- O processo principal de insolvência deve ser instaurado no EM do centro dos interesses principais do devedor; este processo é (tendencialmente) universal;

-- Fora do EM do centro dos interesses principais do devedor só podem ser abertos processos territoriais (n.º 2 e 4) e secundários (n.º 3).

Quer dizer: "Antes de abrir o processo de insolvência, o órgão jurisdicional competente deverá verificar oficiosamente se o centro dos interesses principais ou o estabelecimento do devedor se situa de facto na sua área de competência" (consid. (27) Reg. 2015/848). No centro dos interesses principais do devedor poderá ser aberto um processo principal; no local do estabelecimento do devedor fora do seu centro de interesses principais, um processo territorial.

2. Do exposto (tendo, naturalmente, presente o primado do direito europeu: art. 8.º, n.º 4, CRP) já decorre o enorme equívoco de que padece o disposto no art. 7.º CIRE:

-- A sede ou o domicílio do devedor referido no art. 7.º, n.º 1, CIRE não é, em si mesmo, uma conexão relevante para aferir o tribunal competente para o processo principal de insolvência; para este processo releva apenas o centro dos interesses principais do devedor (art. 3.º, n.º 1, Reg. 2015/848); por exemplo: o devedor tem sede em Portugal, mas o centro dos seus interesses principais situa-se em Espanha; os tribunais portugueses nunca são competentes para o processo principal de insolvência;

-- O carácter alternativo que o art. 7.º, n.º 2, CIRE atribui ao "lugar em que o devedor tenha o centro dos interesses principais" é incompatível com o critério que consta do art. 3.º, n.º 1, Reg. 2015/848; a conexão estabelecida através do centro dos interesses principais do devedor nunca é no Reg. 2015/848 um critério alternativo de aferição da competência; pelo contrário, ele é o critério exclusivo para determinar a competência para a abertura de um processo principal;

-- A sede ou o domicílio do devedor referido no art. 7.º, n.º 1, CIRE também não é, em si mesmo, uma conexão relevante para determinar o tribunal competente para um processo territorial; para este processo apenas é relevante o lugar do estabelecimento do devedor fora do seu centro dos interesses principais (art. 3.º, n.º 2, Reg. 2015/848).

3. a) Do que se disse pode começar por se concluir o seguinte:

-- Sempre que o devedor tenha o centro dos seus interesses principais num EM, apenas os tribunais desse EM são competentes para o processo principal de insolvência; a sede ou o domicílio do devedor que não coincida com o centro dos interesses principais é irrelevante para a aferição da competência para o processo principal (art. 3.º, n.º 1, Reg. 2015/848);

-- Se o devedor tiver o seu centro de interesses principais num EM e um estabelecimento num outro EM, no lugar deste estabelecimento pode ser aberto um processo territorial (art. 3.º, n.º 2, Reg. 2015/848); a este propósito não pode deixar de se chamar a atenção para o mais que problemático (aliás, também no sentido da remissão que dele consta) art. 294.º, n.º 2, CIRE, que padece de uma manifesta falta de articulação com o disposto no art. 3.º, n.º 2, Reg. 1215/848;
 
-- Portanto, o disposto no art. 7.º, n.º 1, CIRE é totalmente incompatível com o estatuído no art. 3.º, n.º 1, 2 e 4, Reg. 2015/848, dado que a mera sede ou o mero domicílio do devedor não é relevante para aferir a competência nem para o processo principal, nem para o processo territorial.

b) Do que se expôs pode ainda concluir-se o seguinte: 

-- A alternatividade entre a sede do devedor (art. 7.º, n.º 1, CIRE) e o centro dos interesses principais do devedor (art. 7.º, n.º 2, CIRE) só pode significar que aquela sede não coincide com este centro; esta alternatividade é incompatível com a presunção estabelecida no art. 3.º, n.º 1, § 2.º. Reg. 2015/848: "No caso de sociedades e pessoas coletivas, presume-se, até prova em contrário, que o centro dos interesses principais é o local da respetiva sede estatutária"; ora, quando a sede não coincide com o centro dos interesses principais do devedor, aquela sede nunca pode ser um elemento de conexão relevante para determinar a competência para o processo principal de insolvência;

-- É incoerente que o art. 7.º, n.º 4, CIRE estabeleça que, se um tribunal de um outro EM considerar que, porque o devedor tem o centro dos seus interesses principais em Portugal, os tribunais portugueses são competentes e que estes tribunais estão vinculados a essa decisão do tribunal estrangeiro, sem que, ao mesmo tempo, se imponha que os tribunais portugueses devam aplicar o critério do centro dos interesses principais do devedor para aferir a sua própria competência; não faz sentido que os tribunais de outros EMs possam impor a competência dos tribunais portugueses com base na conexão estabelecida através do centro dos interesses principais do devedor e que os tribunais portugueses não tenham de aplicar esse mesmo critério na aferição da sua própria competência;

-- O disposto no art. 7.º, n.º 1, CIRE só pode ser aplicado na hipótese de o devedor não ter o centro dos seus interesses principais em nenhum EM; aliás, o mesmo pode ser dito do estabelecido no art. 63.º, al. e), CPC; mesmo assim, o estatuído nesses preceitos não deixa de ser muito discutível, dado que se estabelece um critério de aferição da competência que, sem dificuldade, pode ser qualificado não só como exorbitante, mas também como destituído de sentido prático: por que razão a mera sede ou o mero domicílio do devedor em Portugal há-de justificar a competência dos tribunais portugueses para um processo de insolvência, se, afinal, o devedor exerce habitualmente a sua actividade fora de Portugal?; como vai ser possível agredir o património do devedor que se encontre num país estrangeiro?

c) Sem procurar adivinhar, antes partindo de indícios que resultam do disposto no art. 7.º CIRE (entre outros preceitos), parece poder concluir-se que o legislador se esqueceu de dois dados muito simples: o Reg. 2015/848 é aplicável sempre que o devedor tenha o centro dos interesses principais num EM; o tribunal do centro dos interesses principais do devedor é o único competente para a abertura de um processo principal de insolvência. Sendo assim, quanto a devedores com o centro dos interesses principais num EM, não pode haver no direito interno dos EMs nenhumas regras que contendam com as referidas premissas. A observância deste critério orientador teria poupado o legislador a enormes confusões.

4. Não é este o momento para fazer uma análise aprofundada do disposto no art. 3.º Reg. 2015/848 sobre a "competência internacional" (mas que, na realidade, determina o âmbito de aplicação espacial do Reg. 2015/848). Qualquer comentário ao Reg. 2015/848 fornece elementos úteis sobre esta matéria. Para efeitos da elaboração da presente nota consultou-se Rauscher, EuZPR-EuIPR/Mäsch (2022), Art. 3 EuInsVO.

MTS