Notificação judicial avulsa;
competência material
1. O sumário de RL 8/6/2017 (235-15.1T8MFR.L1--6) é o seguinte:
– Pretendendo a Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas a notificação judicial avulsa com vista à entrega do despacho de acusação, a competência para tal acto não cabe no art. 4º do ETAF e não cumpre apreciar a relação jurídica e proceder à sua qualificação com vista a dirimir um conflito de interesses.
– Dever-se-á, por isso, atender ao disposto nos arts. 64º do CPC e 40º, nº1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário que estabelecem a competência dos Tribunais Judiciais.
– Dever-se-á, por isso, atender ao disposto nos arts. 64º do CPC e 40º, nº1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário que estabelecem a competência dos Tribunais Judiciais.
2. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"A Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas veio requerer no Tribunal de Comarca de Lisboa Oeste a notificação judicial avulsa de C, com as seguintes finalidades: Entrega do despacho de acusação e para a notificanda apresentar, querendo, a sua defesa, por escrito, no prazo de vinte dias.
Em 06.07.2015 pela Exmª Juiz a quo foi proferido o seguinte despacho:
«(..) O acto que se pretende comunicar ao requerido consubstancia-se num despacho de acusação prolatado em sede de procedimento disciplinar instaurado no exercício das atribuições da requerente.
Por outro lado, não se pode deixar de atentar na natureza jurídica da requerente, que se constitui como pessoa colectiva de Direito Público, na categoria de Associação Pública, que integra a denominada Administração Autónoma (…)
Na subespécie a que pertence a requerente, a saber, associação pública de entidades privadas, a lei confere-lhes poderes de autoridade para o exercício de determinadas funções públicas, que em princípio pertenceriam ao Estado (...)
Por fim, resta acrescentar que a estas associações se aplica o Direito Administrativo sempre que exerçam os poderes públicos que lhe foram atribuídos.
Ora, a notificação de um despacho de acusação proferido em sede de processo disciplinar consubstancia um acto do iter procedimental em apreço, que por sua vez e sem margem para quaisquer dúvidas, consubstancia a manifestação do exercício das acima referidas funções de autoridade, ou seja, manifestação do exercício de um poder público.
Do exposto resulta com clareza para este Tribunal que tudo o que se relacione com o exercício dos poderes sancionatórios sobre os associados de uma qualquer associação pública é substantivamente tema de Direito Administrativo, e processualmente da competência dos Tribunais Administrativos.
Tal resulta do vertido no artigo 1.º e 4.º, n.º 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, ínsito na Lei n.º 13/2002 de 19.02. É que o último dos preceitos encerra uma enumeração meramente exemplificativa, como é doutrina unânime, não se incluindo apenas no foro em apreço as situações jurídicas aí descritas, mas antes todas as que se reconduzam ao conceito de relação jurídica administrativa, critério constitucionalmente consagrado como atributivo de jurisdictio à ordem judicial administrativa – cfr. artigo 212.º, n.º 3 da Const. Rep. Portuguesa (…)
Mas não só: após da reforma do Processo Administrativo, este passou a ser um contencioso de plena jurisdição, ao qual se aplica subsidiariamente o Cód. Proc. Civil, o que resulta dos artigos 1.º in fine, 2.º, n.ºs 1 e 2, 23.º e 25.º, todos do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, contido na Lei n.º 15/2002 de 22.02; razão pela qual é perfeitamente admissível que naquele foro se tramitem e realizem as notificações judiciais avulsas que se reportem a relações jurídicas administrativas, pois é o mesmo o único constitucionalmente reputado como detendo o apetrechamento técnico jurídico que lhe faculta a correcta aferição, em abstracto, da validade do acto/comunicação que se pretende levar ao conhecimento de outrem.
É que não se pode olvidar que semelhante aferição é imposta pelo regime resultante do artigo 256.º do Cód. Proc. Civil: este preceito, aplicável subsidiariamente ao contencioso administrativo nos termos preditos, faz depender a realização da notificação solicitada de despacho prévio do Juiz por forma a aquilatar da validade da situação jurídica na base da qual se encontra a comunicação que se pretende empreendida mediante notificação judicial. Entendimento que prescinda de tais sumárias análise e julgamento, transforma o julgador, in casu, num mero elemento no circuito do correio, a quem nada mais se pede do que olhar para o requerimento que lhe é presente, e bem assim ordenar o seu cumprimento.
Sendo inaceitável o entendimento consignado no parágrafo anterior, não se vislumbra qual a razão, não sendo o tribunal judicial competente para dirimir os conflitos emergentes da aplicação de sanções disciplinares aos membros de uma qualquer Ordem Profissional, aquela lhe há-de ser reconhecida somente para determinação da realização de um acto de comunicação, quando tal determinação envolve a realização de um julgamento sobre matérias substancialmente atribuídas a uma outra ordem jurisdicional.
Conclui-se, assim, que a notificação aqui solicitada deveria tê-lo sido no Tribunal Administrativo territorialmente competente, o materialmente apto a ajuizar em abstracto do bem fundado da pretensão da aqui requerente, e em face da competência material residual dos tribunais judiciais a que acima se aludiu, não resta senão concluir pela incompetência material deste Tribunal para a realização da diligência em causa.
Semelhante incompetência integra o conceito mais vasto de incompetência absoluta que consubstancia a excepção dilatória [artigos 96.º, alínea a) e 577º, alínea a) do Cód. Proc. Civil], do conhecimento oficioso em qualquer estado do processo até ao trânsito em julgado da decisão de fundo a proferir (artigos 578º e 97.º, n.º 1, ambos do Cód. Proc. Civil) e determinante, consoante haja ou não lugar a despacho liminar, do indeferimento liminar da petição inicial ou da absolvição do R. da instância (artigo 99.º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil) – neste sentido, Acórdão da Relação de Lisboa, de 05.03.2015, proc. n.º 96/14.8T2MFR. L1.
Em 06.07.2015 pela Exmª Juiz a quo foi proferido o seguinte despacho:
«(..) O acto que se pretende comunicar ao requerido consubstancia-se num despacho de acusação prolatado em sede de procedimento disciplinar instaurado no exercício das atribuições da requerente.
Por outro lado, não se pode deixar de atentar na natureza jurídica da requerente, que se constitui como pessoa colectiva de Direito Público, na categoria de Associação Pública, que integra a denominada Administração Autónoma (…)
Na subespécie a que pertence a requerente, a saber, associação pública de entidades privadas, a lei confere-lhes poderes de autoridade para o exercício de determinadas funções públicas, que em princípio pertenceriam ao Estado (...)
Por fim, resta acrescentar que a estas associações se aplica o Direito Administrativo sempre que exerçam os poderes públicos que lhe foram atribuídos.
Ora, a notificação de um despacho de acusação proferido em sede de processo disciplinar consubstancia um acto do iter procedimental em apreço, que por sua vez e sem margem para quaisquer dúvidas, consubstancia a manifestação do exercício das acima referidas funções de autoridade, ou seja, manifestação do exercício de um poder público.
Do exposto resulta com clareza para este Tribunal que tudo o que se relacione com o exercício dos poderes sancionatórios sobre os associados de uma qualquer associação pública é substantivamente tema de Direito Administrativo, e processualmente da competência dos Tribunais Administrativos.
Tal resulta do vertido no artigo 1.º e 4.º, n.º 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, ínsito na Lei n.º 13/2002 de 19.02. É que o último dos preceitos encerra uma enumeração meramente exemplificativa, como é doutrina unânime, não se incluindo apenas no foro em apreço as situações jurídicas aí descritas, mas antes todas as que se reconduzam ao conceito de relação jurídica administrativa, critério constitucionalmente consagrado como atributivo de jurisdictio à ordem judicial administrativa – cfr. artigo 212.º, n.º 3 da Const. Rep. Portuguesa (…)
Mas não só: após da reforma do Processo Administrativo, este passou a ser um contencioso de plena jurisdição, ao qual se aplica subsidiariamente o Cód. Proc. Civil, o que resulta dos artigos 1.º in fine, 2.º, n.ºs 1 e 2, 23.º e 25.º, todos do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, contido na Lei n.º 15/2002 de 22.02; razão pela qual é perfeitamente admissível que naquele foro se tramitem e realizem as notificações judiciais avulsas que se reportem a relações jurídicas administrativas, pois é o mesmo o único constitucionalmente reputado como detendo o apetrechamento técnico jurídico que lhe faculta a correcta aferição, em abstracto, da validade do acto/comunicação que se pretende levar ao conhecimento de outrem.
É que não se pode olvidar que semelhante aferição é imposta pelo regime resultante do artigo 256.º do Cód. Proc. Civil: este preceito, aplicável subsidiariamente ao contencioso administrativo nos termos preditos, faz depender a realização da notificação solicitada de despacho prévio do Juiz por forma a aquilatar da validade da situação jurídica na base da qual se encontra a comunicação que se pretende empreendida mediante notificação judicial. Entendimento que prescinda de tais sumárias análise e julgamento, transforma o julgador, in casu, num mero elemento no circuito do correio, a quem nada mais se pede do que olhar para o requerimento que lhe é presente, e bem assim ordenar o seu cumprimento.
Sendo inaceitável o entendimento consignado no parágrafo anterior, não se vislumbra qual a razão, não sendo o tribunal judicial competente para dirimir os conflitos emergentes da aplicação de sanções disciplinares aos membros de uma qualquer Ordem Profissional, aquela lhe há-de ser reconhecida somente para determinação da realização de um acto de comunicação, quando tal determinação envolve a realização de um julgamento sobre matérias substancialmente atribuídas a uma outra ordem jurisdicional.
Conclui-se, assim, que a notificação aqui solicitada deveria tê-lo sido no Tribunal Administrativo territorialmente competente, o materialmente apto a ajuizar em abstracto do bem fundado da pretensão da aqui requerente, e em face da competência material residual dos tribunais judiciais a que acima se aludiu, não resta senão concluir pela incompetência material deste Tribunal para a realização da diligência em causa.
Semelhante incompetência integra o conceito mais vasto de incompetência absoluta que consubstancia a excepção dilatória [artigos 96.º, alínea a) e 577º, alínea a) do Cód. Proc. Civil], do conhecimento oficioso em qualquer estado do processo até ao trânsito em julgado da decisão de fundo a proferir (artigos 578º e 97.º, n.º 1, ambos do Cód. Proc. Civil) e determinante, consoante haja ou não lugar a despacho liminar, do indeferimento liminar da petição inicial ou da absolvição do R. da instância (artigo 99.º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil) – neste sentido, Acórdão da Relação de Lisboa, de 05.03.2015, proc. n.º 96/14.8T2MFR. L1.
Donde, nos termos dos dispositivos legais acima referidos, declaro este Tribunal absolutamente incompetente em razão da matéria para apreciar da viabilidade em abstracto da diligência solicitada e, consequentemente, para a executar, o que determina, dada a natureza liminar do presente, o indeferimento liminar da pretensão deduzida [cfr. ainda artigos 256.º, 99.º, n.º 1, 590.º, n.º 1, 576.º, n.ºs 1 e 2, e 278º, n.º 1, alínea a), todos do Cód. Proc. Civil].»
A requerente recorreu desta decisão [...]
II–Importa solucionar no âmbito do presente recurso se a notificação judicial avulsa pretendida é da competência dos Tribunais Administrativos.
III–Apreciação:
A questão da competência material para a prática da pretendida notificação judicial avulsa não tem sido resolvida de forma uniforme pela jurisprudência.
No sentido da decisão recorrida, o Acórdão da Relação de Lisboa de 05.03.2015 ( indicado na referida decisão) - www.dgsi.pt refere: Se a competência do tribunal administrativo se deve aferir em função, essencialmente, das acima referidas normas de atribuição, conjugadas com a análise da estrutura da relação jurídica subjacente ao direito invocado, tal como ela é delimitada pela parte, bem como pelo pedido efectuado ao tribunal, e se para dirimir os conflitos emergentes da aplicação de sanções disciplinares aos membros de uma qualquer Ordem Profissional não podem deixar de ser competentes os Tribunais Administrativos, então ter-se-á de concluir que são estes mesmos tribunais que serão competentes para levar ao conhecimento de um associado dessa Ordem o despacho de acusação sancionatória proferido em sede de procedimento disciplinar instaurado no exercício das atribuições da requerente.
Assim, e sob pena de se ter de concluir que todas notificações judiciais avulsas serão da competência dos tribunais judiciais, com o inevitável prejuízo na administração da justiça que resulta destes estarem, naturalmente, menos apetrechados técnico juridicamente do que os tribunais das demais ordens jurisdicionais para aferirem da validade formal e da existência em abstracto do direito subjacente ao respectivo requerimento, bem como da legitimidade do requerente e do destinatário, entende-se assistir razão ao Exmo juiz a quo quando concluiu pela incompetência em razão da matéria dos tribunais judiciais, para apreciar da viabilidade em abstracto da diligência solicitada e, consequentemente, para a executar, determinando o indeferimento liminar da pretensão deduzida e a atribuiu aos tribunais administrativos.»
O Acórdão da Relação de Lisboa de 03.04.2014 e a decisão de 01.07.2009- www.dgsi.pt perfilharam entendimento diverso.
De acordo com este último Acórdão: Não estando em discussão qualquer relação jurídica invocada pela recorrente, não pode o critério da pretensão deduzida em juízo, que será sempre aferido em face da análise da estrutura da relação jurídica subjacente ao direito invocado, ser determinante para a determinação da competência material do tribunal, a qual se afere, como é sabido, pela articulação da causa de pedir e do pedido formulados pela parte, sendo que a causa, na notificação judicial avulsa em apreciação, se reduz à actividade a exercer conducente a dar conhecimento ao notificando de que pode apresentar a sua defesa, por escrito, no prazo de vinte dias a contar da notificação.
Ora, os tribunais judiciais são a regra dentro da organização judiciária, gozando de uma competência não discriminada, sendo os restantes tribunais a excepção, com a respectiva competência limitada às matérias que lhes são especialmente atribuídas.
Assim sendo, face à regra do carácter residual da competência dos tribunais comuns, de acordo com as normas legais supra referidas a este respeito, consistindo a pretensão dos autos, simplesmente, em se requerer que se dê conhecimento de certo facto ao notificando, não sendo processualmente exigido que, subjacente a tal notificação preexista sequer uma relação jurídica entre a requerente e o notificando, a competência material para proceder à requerida notificação judicial avulsa pertence ao tribunal recorrido.»
Vejamos.
De acordo com o disposto no art. 64º do CPC, são da competência dos Tribunais Judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
Estabelece ainda o art. 40º, nº1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário (lei 62/2013, de 26 de Agosto) que os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
Quanto aos Tribunais Administrativos e Fiscais estatui o art. 212º, nº3 da CRP:.«Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.»
O Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais estabelece o art. 4º o âmbito da jurisdição.
Para o caso que ora nos ocupa relevam as alíneas a) e d) do nº 1 do citado preceito legal que estabelecem a competência da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:
a) - Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais; [...]
d) - Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos.
Ora, a notificação judicial avulsa pretendida não se enquadra nas citadas alíneas do art. 4º do ETAF.
Conforme refere o professor Lebre de Freitas in “Código de Processo Civil Anotado”, em anotação ao pretérito art. 261º do CPC (que corresponde ao art. 256º do actual CPC): «Através da notificação avulsa, pode ser transmitida uma declaração de vontade (incluindo a de que o destinatário pratique um acto, exerça um direito ou cumpra dever) ou uma declaração de ciência (dá-se conhecimento ao destinatário da prática dum acto ou da ocorrência dum facto com relevância jurídica).»
Estatui o art. 257º, nº 1 do CPC que «as notificações avulsas não admitem oposição, devendo os direitos respectivos ser exercidos nas acções próprias.»
É certo que o acto não deverá ser ordenado se a notificação for ilegal ou imoral. Mas não cumpre ao Tribunal apreciar a relação jurídica e proceder à sua qualificação com vista a dirimir um conflito de interesses.
O que significa que, na nossa perspectiva, a notificação em apreço será da competência dos Tribunais Judiciais, nos termos dos citados arts. 64º do CPC e 40º, nº1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário."
3. [Comentário] O acórdão tem um voto de vencida do seguinte teor: "Julgaria improcedente o recurso e confirmaria na íntegra a decisão da 1ª Instância, pelos fundamentos que dela constam, com os quais concordo inteiramente".
Também se adere à solução proposta pelo tribunal da 1.ª instância, nomeadamente com o argumento de que não é impossível incluir a notificação judicial avulsa no disposto no art. 4.º, n.º 1, al. a), ETAF: a competência para a tutela de direitos fundamentais e de outros direitos e interesses legalmente protegidos no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais também se estende aos actos de notificação que são necessários para essa tutela. Além disso, não se vislumbra nenhuma necessidade de apenas os tribunais judiciais terem competência para a realização de notificações judiciais avulsas.
MTS