"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



11/07/2024

Jurisprudência 2023 (211)


Tribunais; hierarquia;
dever de acatamento


1. O sumário de STJ 7/12/2023 (2126/15.7T8AVR.P1.S2) é o seguinte:

O acórdão do Tribunal da Relação que não cumpra o decidido por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça é nulo por violação do dever de respeito de decisão de tribunal superior previsto no artigo 152.º, nº 1, do CPC, devendo ser proferido, pelo Tribunal da Relação, novo acórdão que seja conforme.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"17. Em 17.10.2023, proferiu este Supremo Tribunal um Acórdão, em que, na parte relevante, pode ler-se:

“A) Recurso principal (…)

- Da alegada nulidade por omissão de pronúncia

Dispõe-se no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC:

“É nula a sentença quando:

(…) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar”.

As alegadas questões omitidas prender-se-iam, a primeira, com a pretensão da autora de condenação das rés “a indemnizar a Autora em quantia mensal a determinar pelo tribunal segundo regras de equidade para o período compreendido entre os meses de terminus dos contratos de arrendamento (período até ao qual as Rés foram condenadas em 1ª instância a indemnizar a Autora pelo pagamento das rendas que a mesma recebia) e o mês de venda do imóvel, indemnização essa devida a título da impossibilidade que a Autora teve de arrendar o referido imóvel por força dos factos que foram imputados às Rés e que determinaram a sua responsabilidade pelo sinistro ocorrido” e, a segunda, com uma certa outra pretensão da autora deduzida a título subsidiário.

Ora, quanto à designada “primeira questão”, ela não pode autonomizar-se, ou seja, não é uma verdadeira questão.

Compulsadas as alegações da apelação, verifica-se que a autora, então apelante, invocou um dano pela privação das rendas; segundo ela, a indemnização deste dano deveria corresponder ao valor mensal das rendas efectivamente acordadas nos contratos de arrendamento desde a data do sinistro até à data da venda do prédio, mas – admitia a autora – também poderia ser calculada com base na equidade, tendo como referência o (mesmo) valor mensal de rendas que a autora receberia ao abrigo dos contratos de arrendamento durante o mesmo período. Os distintos métodos de cálculo não impedem que se veja que a questão é única e respeita à indemnização por danos não patrimoniais e, mais precisamente, por lucros cessantes.

Ora, esta questão foi bem identificada e claramente respondida no Acórdão recorrido. Lê-se aí que “[a] autora entende que deve ser indemnizada pelo valor das rendas das fracções do seu prédio desde o dia do sinistro até à venda do prédio”. E lê-se adiante que “podemos concluir que não assiste razão à autora ao pretender ser indemnizada pelos danos das rendas em consequência da resolução dos contratos de arrendamento pelos inquilinos, desde o sinistro até à venda do imóvel”.

Isto é suficiente para desatender a arguição de nulidade por omissão de pronúncia, uma vez que existe resposta (directa) à questão.

Mas, para que não haja dúvidas, pode reproduzir-se a fundamentação da resposta: “incumbia à autora provar nos termos do artigo 342º, nº 1 do CC, que estes danos ocorreram por culpa das Rés, porque se furtou à reparação ou que tiveram qualquer conduta que lhes possa ser imputável, merecedora de censura do direito, e, que protelou a resolução do litígio. Não o tendo feito, estes danos correspondentes a este hiato temporal, encontram-se fora da obrigação de indemnizar imposta às Rés por falta deste pressuposto legal- a culpa”.

Já quanto à segunda questão que a autora, ora recorrente diz que também foi “omitida”, não se pode deixar de se lhe dar razão.

As conclusões da apelação relevantes para este ponto são as seguintes:

“XI) Mesmo partilhando o entendimento constante da douta sentença recorrida no que a esta questão específica diz respeito, sempre a mesma padeceria de erro de cálculo, uma vez que na douta sentença recorrida estabelece-se como mês de cessação de ambos os contratos de arrendamento o mês de Junho de 2014 e, nessa medida, o cálculo do valor indemnizatório para ambos os contratos faz-se por referência a 3 meses de renda;

XII) No que se refere ao R/C, visto que sendo o contrato em causa por um ano e tendo-se iniciado em 01.08.2013, o seu terminus aconteceria em Julho de 2014 e não em Junho de 2014 conforme decorre da douta sentença proferida, pelo que o valor indemnizatório a atribuir à Autora a título de lucros cessantes e por referência ao valor peticionado a título de rendas, mesmo seguindo o entendimento do tribunal recorrido, ascenderia a € 1.200,00 relativamente ao 1º andar (€ 400,00*3) e a € 1.300,00 (€ 325,00*4) relativamente ao R/C, num total de € 2.500,00”.

A autora punha aqui uma questão em sentido próprio, ainda que a título subsidiário, i.e., para o caso de não proceder – como não procedeu – o seu pedido de consideração do período (mais extenso) até à transmissão do imóvel e permanecer – como permaneceu – a decisão de só se computar no cálculo da indemnização o período (mais curto) até à cessação dos contratos de arrendamento.

Lido atentamente o Acórdão, não se encontrou resposta a esta questão subsidiária. Ora, considerando que a questão principal suscitada na apelação da autora foi julgada improcedente, cumpria, com efeito, responder-lhe.

Acresce que nem no Acórdão que decidiu as nulidades arguidas foi possível encontrar alusão à questão – rectius: ao facto de ela ter sido ou não respondida –, o que parece confirmar que ela terá sido, de facto, omitida.

Cumpre, assim, anular o Acórdão recorrido e determinar a remessa dos autos ao Tribunal a quo para que aí se conheça da questão subsidiária suscitada no recurso de apelação interposto pela autora (cfr. conclusões XI e XII da apelação). [...]

*
III. DECISÃO

Pelo exposto, decide-se anular o Acórdão recorrido e determinar, nos termos do artigo 684.º, n.º 2, do CPC, a remessa dos autos ao Tribunal da Relação, para que, se possível, os mesmos juízes:

a) procedam ao suprimento da omissão nos termos acima explicitados; e

b) após suprimento da omissão, profiram decisão de mérito.

*
Custas conforme o decidido a final”.

18. Baixados os autos, proferiam os Exmos. Desembargadores do Tribunal da Relação do Porto Acórdão em Conferência com o seguinte teor, na parte relevante:

Nas alegações de recurso de revista a autora AA veio alegar a nulidade, nos termos dos art. 515º, nº 1, d) e 674º, nº 1, d) do CPC por omissão de pronúncia do acórdão recorrido alegando que este não conheceu do valor das rendas dos contratos de arrendamento vigente na data do sinistro tendo por objecto o imóvel do prédio que ruiu em consequência de obras levadas a cabo pela Ré. Mais alegam que o acórdão decidiu uma condenação ilíquida ao relegar para incidente de liquidação a desvalorização do imóvel em consequência deste facto, sendo certo que existem no processo todos os elementos para a sua condenação liquida.

As Rés recorreram de revista a título subordinado.

Sustentaram que no processo existem elementos para condenação em valor fixo, sendo desnecessário o incidente posterior de liquidação. Têm no entanto posição diferente quanto ao seu valor.

As nulidades foram conhecidas nos seguintes termos:

“Decidindo.

Entendemos que o acórdão não padece das apontadas nulidades porquanto existe apreciação sobre tais questões.

Não resultou provado se a privação das rendas em consequência da extinção dos contratos ficou a dever-se a conduta das Rés. Na verdade posteriormente ao “acidente”, a Autora não provou que as Rés protelaram o litígio ou se a dificuldade de resolução ficou a dever-se a conduta sua. É à autora que incumbe a prova de todos os pressupostos da responsabilidade civil previstos no art. 483º concretamente quanto à culpa e ao nexo de causalidade uma vez que estamos no âmbito de responsabilidade extracontratual- cfr. facto nº 31.

As Rés pretenderam resolver o litígio decorrente do desmoronamento e fizeram à autora uma proposta para a sua compra que recusou pedindo um valor superior ao de mercado.

Assim se a autora vendeu o imóvel por preço inferior ao que as Rés pediram, não pode pedir o valor da sua desvalorização, pois que recusou o seu valor anteriormente Por outro lado as alegações das partes que traduzem o valor do imóvel, enquanto materializem factos relevantes obedecem aos critérios do artº 5º do CPC, não podendo sem mais ser atendidos nesta fase. O tribunal apreciará em momento posterior de incidente de liquidação.

Ao abrigo do disposto no art. 617º, nº 1 ex vi 666º do CPC, improcedem as invocadas nulidades”.

*
Os autos foram remetidos ao STJ que conhecendo as nulidades, por entender que era uma concreta questão colocada ainda que a título subsidiário, remeteu os autos a fim de ser conhecida os pontos das alegações formuladas em XI) e XII), com a seguinte redação:

“XI) Mesmo partilhando o entendimento constante da douta sentença recorrida no que a esta questão específica diz respeito, sempre a mesma padeceria de erro de cálculo, uma vez que na douta sentença recorrida estabelece-se como mês de cessação de ambos os contratos de arrendamento o mês de Junho de 2014 e, nessa medida, o cálculo do valor indemnizatório para ambos os contratos faz-se por referência a 3 meses de renda;

XII) No que se refere ao R/C, visto que sendo o contrato em causa por um ano e tendo-se iniciado em 01.08.2013, o seu terminus aconteceria em Julho de 2014 e não em Junho de 2014 conforme decorre da douta sentença proferida, pelo que o valor indemnizatório a atribuir à Autora a título de lucros cessantes e por referência ao valor peticionado a título de rendas, mesmo seguindo o entendimento do tribunal recorrido, ascenderia a € 1.200,00 relativamente ao 1º andar (€ 400,00*3) e a € 1.300,00 (€ 325,00*4) relativamente ao R/C, num total de € 2.500,002.

Entendemos que esta questão foi conhecida. O acórdão colocado em crise entendeu não atender às alegações da apelante/autora quanto às rendas mantendo-se o decidido na sentença recorrida a este respeito, e, não alterado ou revogado pelo acórdão proferido.

*
Subam os autos ao STJ”.

*

A situação, em síntese, é a seguinte: o Supremo Tribunal de Justiça proferiu, nos presente autos, um Acórdão anulando o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto por omissão de pronúncia quanto à questão formulada nas conclusões XI e XII do recurso de apelação da autora e determinando a remessa dos autos ao Tribunal da Relação do Porto, para que aí se procedesse ao respectivo suprimento e, após tal suprimento, se proferisse decisão de mérito; sobem agora os autos por determinação de Acórdão do Tribunal da Relação do Porto em que se afirma que a questão em causa foi conhecida.

Esta decisão do Tribunal da Relação do Porto, já transitada em julgado, é incompatível, porque contraditória, com aquela decisão do Supremo Tribunal de Justiça, transitada, também ela, em julgado.

Dispondo-se no artigo 152.º, n.º 1, do CPC que “[o]s juízes têm o dever de administrar justiça, proferindo despacho ou sentença sobre as matérias pendentes e cumprindo, nos termos da lei, as decisões dos tribunais superiores”, cabia ao Tribunal da Relação do Porto ter proferido acórdão em conformidade com o decidido por este Supremo Tribunal.

Não o tendo feito, não pode deixar de se concluir que o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto configura incumprimento do dever de respeito de decisão de tribunal superior previsto no artigo 152.º, nº 1, do CPC e, configurando incumprimento deste dever de respeito, é nulo, devendo ser proferido, pelo Tribunal da Relação do Porto, novo Acórdão que seja conforme.

Entende-se ainda ser adequado dar conhecimento ao Conselho Superior da Magistratura para os efeitos considerados convenientes."

[MTS]