"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



17/07/2024

Jurisprudência 2023 (215)


Litisconsórcio necessário natural;
intervenção principal espontânea


1. O sumário de RG 7/12/2023 (326/22.2T8VRL-B.G1) é o seguinte:

I. Numa acção em que se pede a anulação de um contrato de doação, com fundamento na coação exercida sobre o doador, e a consequente invalidade de um subsequente contrato de doação (em que o donatário do primeiro foi o doador do segundo, sendo o mesmo e único prédio assim sucessivamente transmitido), têm que ser partes no processo, quer o doador e o donatário da primeira doação, quer o doador e o donatário da segunda, por forma a que a acção obtenha o seu efeito útil normal; e, por isso, está-se perante um litisconsórcio necessário natural passivo.

II. Na mesma acção, o segundo donatário possui um interesse igual ao do primeiro donatário na sua improcedência - nomeadamente, no reconhecimento da validade da doação que primeiro beneficiou este último, já que dela depende a manutenção da validade da doação que, depois, o mesmo lhe fez.

III. Tendo o segundo donatário, inicialmente não demandado, deduzido depois da contestação incidente de intervenção principal espontânea, para passar a figurar na acção ao lado do seu primitivo réu, a cujos articulados aderiu (não alargando o objecto da lide) e que não tinha deduzido contra o autor qualquer pedido reconvencional, carece de sentido a afirmação de que o autor ficou impossibilitado de deduzir quanto a ele a defesa pessoal que possuía: inexistem novos factos, novas razões de direito, ou qualquer novo pedido, contra os quais pudesse ser feita valer a dita defesa pessoal.

IV. O incidente de intervenção principal espontânea deduzido pelo segundo donatário deverá ser admitido, por só assim se sanar a ilegitimidade resultante da anterior preterição da sua presença nos autos.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"5.2. Caso Concreto (subsunção ao Direito aplicável)
5.2.1. Relação material controvertida - Litisconsórcio necessário natural

Concretizando, verifica-se que, pretendendo a Autora (AA) reaver a propriedade de um prédio misto - que lhe fora inicialmente doado pelos Avós (em 24 de Janeiro de 2018), que depois ela própria dou ao Avô, então já viúvo (em 11.12.2018) e que este, por sua vez, veio a doar à então sua alegada companheira (em 13 de Abril de 2021) -, intentou uma acção contra o dito Avô (BB), seu inicial réu exclusivo, pedindo que:

. (a titulo principal) se anulasse o «Contrato de Doação datado de 11.1.22018, em que a A. figura como doadora e o R. como donatário» (al. a) e, por via disso, «a anulação dos negócio seguintes, assim como, o cancelamento dos respectivos registos» (al. b):

. (a título subsidiário) se revogasse «o contrato de Doação datado de 11.12.2018, em que a A. figura como doadora e o R. como donatário, por ingratidão nos termos do artigo 970.º e s.s. do C.C., e consequentemente a anulação dos negócios seguintes, assim como o cancelamento dos respetivos registos».

Logo, é indiscutível que na acção existe uma pluralidade de pedidos, cumulativos entre si, pertinentes, nomeadamente: à anulação da doação feita pela Autora (AA) ao primitivo Réu (a título principal), ou à sua revogação (a titulo subsidiário); e à consequente invalidade da doação feita depois pelo Réu (BB) à sua alegada companheira, CC. [...]

Logo, é indiscutível que apenas existe nos autos uma relação material controvertida, uma vez que, admitindo-se que a Autora (AA) pudesse ter invocado fundamentos próprios para a invalidade da doação (subsequente) que o primitivo Réu (BB) fez à sua alegada companheira, CC, optou por não o fazer, limitando o seu objecto às causas de invalidade ou de revogação da doação (prévia) que ela própria fez ao dito Réu [---].

Por fim, verifica-se que, vindo a acção a ser julgada apenas com as suas primitivas partes (a Autora e os Herdeiros habilitados do primitivo Réu (BB), entretanto falecido), nunca poderia proceder o seu segundo pedido cumulativo (de anulação da doação feita pelo primitivo Réu à sua alegada companheira, CC), uma vez que os Herdeiros habilitados do primitivo Réu não são parte legítima quanto ao mesmo (podendo esse juízo ser ainda formulado numa eventual sentença de mérito, nos termos do art.º 608.º, n.º 1, do CPC, por a tanto não obstar o despacho saneador que julgou serem as partes legítimas, ante a sua natureza tabelar, insusceptível de transitar em julgado [Neste sentido (uniforme, na doutrina e na jurisprudência): Ac. da RL, de 01.10.2014, Teresa Pardal, Processo n.º 4654/06.6TBCSC.L1-6; Ac. da RG, de 15,12.2019, José Alberto Moreira Dias, Processo n.º 858/15.9T8VNF-A.G1; ou Ac. do STJ, de 28.06.2023, Maria José Mouro, Processo n.º 164/21.0T8GMR.G1.S1.]).

De seguida, a Autora (AA) teria que intentar uma nova acção, contra a actual proprietária do prédio misto cuja propriedade pretende reaver, alegando de novo tudo quanto aduzira na primeira (já que, não tendo aquela tido intervenção nesta, não lhe seria oponível o caso julgado formado entre as suas partes, conforme art.ºs 581.º e 621.º, do CPC); e nela poderia soçobrar na eventual prova que tivesse produzido na primeira, isto é, poderia então não ver anulada a doação por si feita ao seu avô (conforme ali antes reconhecido).

Logo, é indiscutível que, face à concreta definição da presente acção feita pela Autora (AA), sem a presença da actual proprietária do prédio misto cuja propriedade pretender reaver, não se consegue lograr uma composição definitiva entre as partes (quanto a todos os pedidos cumulativos formulados, quer a título principal, quer a título subsidiário), e potencialmente obsta-se a uma solução uniforme entre os interessados (face à incerta decisão a obter em segunda acção em que apenas aquela fosse demandada).

Concluindo, a natureza da relação material controvertida nos autos exige, para que a acção produza o seu efeito útil normal, a simultânea presença na mesma, quer do primitivo Réu (donatário no primeiro contrato de doação que se pretende anular), quer de CC (donatária no segundo contrato de doação que se pretende ver invalidado, como efeito daquela prévia anulação), estando-se em presença de um litisconsórcio necessário natural [No mesmo sentido (em hipótese não igual mas equiparável para este efeito), Ac. da RG, de 05.11.2020, Sandra Melo, Processo n.º 1307/16.0T8BRG.G1 (com citação de outra jurisprudência conforme), onde se lê que, na «ação em que se pede a declaração de nulidade de um contrato de compra e venda, com fundamento na sua simulação, e a entrega dos bens objeto daquele contrato que já foram adquiridos por terceiros, têm que ser partes quer os simuladores, quer os terceiros adquirentes, por não estar em causa apenas a nulidade do primeiro contrato de compra e venda, mas o seu efeito perante os demais adquirentes a quem se pretende impor a restituição do bem com esse fundamento: é, pois, um litisconsórcio necessário natural passivo». [...]]
*
5.2.2. Interesse igual ao do primitivo Réu

Concretizando novamente, verifica-se que a referida CC veio, de forma espontânea, requerer a sua intervenção nos autos, para passar a intervir nos mesmos ao lado dos Herdeiros do primitivo Réu (BB), fazendo seus os respectivos articulados (isto é, aderindo a eles).

Verifica-se ainda que a mesma possui um interesse igual ao do primitivo Réu (BB) na improcedência da acção, nomeadamente no reconhecimento da validade da doação de prédio misto que foi feita àquele pela Autora (AA), já que dela depende a manutenção da validade da doação que, depois, aquele lhe fez do mesmo prédio misto.

Logo, e face a tudo o que se deixou já dito, é indiscutível que CC não só podia, como devia, intervir de forma espontânea nos autos, para passar a intervir neles como ré, por forma a sanar a ilegitimidade passiva da acção.

Outro entendimento permitiria o absurdo do seu direito de propriedade sobre um prédio misto poder vir a ser invalidado numa acção judicial em que não lhe fora dada previamente a possibilidade de intervir, exercendo sobre os factos alegados e o direito invocado para aquele efeito o seu garantido - constitucionalmente (art.ºs 20.º, n.º 1 e n.º 4, e 32.º, n.º 5, da CRP ) e infra-constitucionalmente (art.º 3.º, do CPC) - direito de contraditório. [...]
*
5.2.3. Impossibilidade de apresentar defesa pessoal - Inaplicável

Concretizando uma derradeira vez, verifica-se que, tendo-se a Autora (AA) oposto ao deferimento do incidente de intervenção principal espontâneo, fê-lo alegando: basear-se o mesmo em factos falsos (concretamente, o não ter vivido a pretendida Interveniente em união de facto com o primitivo Réu (BB) durante os dois anos e meio atestados pela Junta e Freguesia da sua área de residência); e já não poder deduzir quanto a outros factos defesa pessoal que teria contra aquela (concretamente, consubstanciar a doação que a beneficiou uma liberalidade inoficiosa, já que, sendo o prédio misto dela objecto o único bem que o doador - entretanto falecido - possuía, ofenderia a legítima dos herdeiros legitimários).

Verifica-se ainda que o Tribunal a quo, considerando as razões por ela aduzidas, indeferiu a intervenção principal espontânea pretendida por CC, por considerar que, na fase em que os autos se encontravam, não se facultava a «possibilidade de defesa da Autora no que concerne à posição da requerente enquanto adquirente do objecto da doação cuja invalidade pretende ver reconhecida nos autos».

Contudo, não se pode subscrever um tal juízo [...].

Precisando, dir-se-á que o único facto com relevância para fundar a intervenção pretendida por CC é a sua actual qualidade de proprietária do prédio misto objecto das sucessivas doações em causa nos autos (tendo sido a própria Autora quem a revelou logo na petição inicial), sendo totalmente despiciendo para este efeito se viveu ou não viveu, e por quanto tempo, em condições análogas às de cônjuges, com o primitivo Réu (BB).

É igualmente irrelevante que a pretendida Interveniente não tenha requerido antes a  sua intervenção nos autos (como a Autora igualmente alegou na sua oposição ao incidente): sabendo aquela que o primitivo Réu (BB) aí se encontrava e efectivamente disposto a sustentar a validade da doação que a neta lhe fizera (de que dependia a validade daquela outra com que depois a beneficiou), apenas se sentiu compelida a intervir na acção após o seu decesso, suspeitando que as pessoas que seriam habilitadas para nela prosseguirem em seu nome não diligenciariam pela prova da validade das ditas e sucessivas doações.

Dir-se-á ainda que, tendo a pretendida Interveniente aderido aos articulados do primitivo Réu (BB), não alargou objectivamente a acção, isto é, não aduziu quaisquer argumentos novos (de facto ou de direito), nem formulou qualquer pedido, que impusessem que a Autora (AA) pudesse exercer sobre eles o respectivo contraditório (que manifestamente aqui reclama como inaliável direito de quem possa vir a ter os seus interesses prejudicados por uma qualquer decisão judicial).

Por fim, dir-se-á que, não tendo o primitivo Réu (BB) deduzido qualquer pedido reconvencional contra a Autora (AA), carece totalmente de sentido a sua afirmação de que a mera intervenção, por adesão aos articulados daquele (sobre os quais exerceu oportunamente o seu direito de contraditório), por parte da pretendida Interveniente, a impede, nesta fase dos autos, de deduzir prévia defesa pessoal de que dispõe quanto a ela.

Impor-se-ia, assim, a pergunta: a que novos factos, a que novas razões de direito, ou a que novo pedido, é oponível aquela anunciada defesa pessoal sua (se nenhuns primeiros foram alegados, nenhumas segundas foram aduzidas e nenhum terceiro foi formulado)?

As eventuais razões que assistam à Autora (AA), quanto a uma pretensa inoficiosidade da doação de prédio misto feita pelo primitivo Réu (BB) à pretendida Interveniente, ficaram, por sua livre e exclusiva escolha, arredadas do objecto da presente acção. Logo, a sua desconsideração neste momento não consubstancia qualquer frustração de defesa pessoal que pudesse opor à pretendida Interveniente, mas sim o legal e devido respeito pela prévia definição da instância que ela própria fez."

[MTS]