"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



18/07/2024

Jurisprudência 2023 (216)


Dupla conforme;
"fundamentação essencialmente diferente"*

1. O sumário de STJ 19/12/2023 (2808/19.4T8PTM.E1.S1) é o seguinte:

I – O aditamento de um ponto à factualidade provada, que não teve reflexo na decisão final, com o objetivo de explicitar o conteúdo de um documento junto aos autos que não foi impugnado, não é apto a descaraterizar a dupla conformidade.

II – Não basta para afastar o obstáculo da dupla conforme impeditivo do recurso de revista, nos termos do n.º 3 do artigo 671.º do CPC, que a sentença e o acórdão apresentem fundamentação diferente; exige-se que essa diferença seja essencial.

III – A diferença de fundamentação entre o tribunal de 1.ª instância e o acórdão recorrido não é essencial, se o acórdão recorrido decidiu negar a indemnização à autora, por ter entendido que da matéria de facto decorre que houve justa causa de exoneração da administradora de condomínio, nos termos do n.º 3 do artigo 1435.º do Código Civil, e a sentença, prescindindo de qualquer consideração de direito acerca da noção de justa causa (mas tendo fixado os factos integradores do conceito de justa causa), entendeu, com base no n.º 1 do artigo 1435.º do Código Civil, que a exoneração exercida através de deliberação da assembleia geral de condóminos, desde que não impugnada, não faz nascer na esfera jurídica da autora o direito de indemnização.

IV – Para apreender o sentido da fundamentação, é necessário proceder a uma interpretação dos fundamentos da sentença e do acórdão recorrido.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"6.4. Relativamente à matéria de direito, a decisão do acórdão recorrido baseou-se na aplicação do n.º 3 do artigo 1435.º do Código Civil, relativo à exoneração do administrador de condomínio, concluindo que o réu logrou demonstrar que houve justa causa para a exoneração, não tendo por isso de pagar qualquer indemnização:

«(…) Nesse caso, mercê do n.º 3 do artigo 1435.º do CC, é claro que ao condómino incumbe o ónus de alegar e provar factualidade que integre qualquer um dos dois fundamentos que podem servir de base à possibilidade excecionalmente conferida pelo mencionado preceito, de exoneração contenciosa do administrador: a prática de irregularidades ou a atuação com negligência no exercício das funções que lhe foram cometidas, conforme previsto no segmento final do referido artigo legal

A questão que os autos convocam, está em saber se, por não constar no n.º 1 do preceito idêntica exigência, a exoneração do administrador pela assembleia de condóminos é ou não livre.

Na sentença recorrida, acolheu-se a posição expressa pelo réu condomínio de que, competindo aos condóminos, reunidos em assembleia, decidir a eleição e exoneração do administrador, “sem que a norma exija a necessidade de apresentação de qualquer fundamento”, já que só nas situações do n.º 3, “é que deve ser demonstrado fundamento para a exoneração, a justa causa, quando se mostre que praticou irregularidades ou agiu com negligência no exercício das suas funções”. Nesse pressuposto, concluiu que no “caso dos autos, a assembleia deliberou, a deliberação não veio a ser impugnada e, por isso, tem-se como assente, sem que tenha surgido na esfera jurídica do réu a obrigação de indemnizar a autora”.

Sendo certo que, aparentemente, a lei distingue ambas as situações, referindo a necessidade de invocação de justa causa para a destituição do administrador apenas nas situações em que a mesma não seja deliberada pela assembleia, e seja peticionada ao tribunal, a verdade é que, casos existem em que outros princípios do ordenamento jurídico, designadamente da liberdade contratual, eficácia dos contratos e boa fé, interpelam a uma interpretação que não se contenha dentro da literalidade do preceito e se adeque às distintas situações em presença, tratando de forma diversa o que é efetivamente diferente.

Assim, a afirmação de que o administrador pode ser exonerado pela assembleia a qualquer tempo, sem necessidade de invocação de justa causa, não significa sempre que a exoneração sem justa causa não possa dar lugar a indemnização. Por outras palavras, uma coisa é a assembleia dos condóminos poder fazer cessar unilateralmente o mandato conferido ao administrador antes do seu termo, outra é que esse seja uma espécie de poder discricionário que nunca confere à contraparte, independentemente da sua qualidade, o direito a indemnização. (…) [...]

In casu, configurando a eleição da empresa autora, que leva a cabo a administração de condomínios profissionalmente, a concomitante celebração de um contrato de prestação de serviços, ao qual se aplicam, com as necessárias adaptações, as disposições sobre o contrato de mandato, na modalidade de mandato oneroso, com representação (artigos 1154.º a 1156.º, 1158.º, n.º 2, todos do CC), contrato que estava vigente à data em que, por carta de 17.06.2019, o condomínio ora recorrido, comunicou à empresa ora recorrente, que por deliberação da assembleia extraordinária de condóminos, reunida no dia 18 de maio de 2019, havia deliberado a exoneração da autora da qualidade de administradora do condomínio, para a qual havia sido eleita pela assembleia de condóminos que teve lugar no dia 14 de dezembro de 2017, para exercer as referidas funções pelo período de cinco anos, com início no dia 1 de janeiro de 2018 e termo a 31 de dezembro de 2021, dúvidas não existem que com aquela exoneração fez cessar o contrato que vinculava ambas as partes unilateralmente antes do respetivo termo [---] [...]

Ora, ao administrador do condomínio estão cometidas as funções elencadas no artigo 1436.º do CC e outras que lhe sejam atribuídas pela assembleia.

Não lhe tendo esta cometido à administradora assunção dos encargos em causa, que obrigam o condomínio futuramente, nem tendo deliberado a redução da receita, tal como decidida pela administração ao isentar de quotas condómino com tão elevada proporção nas partes comuns, violou de forma grave os deveres legais e contratuais que sobre si impendiam atenta a específica função exercida, de tal forma que não tornou inexigível ao condomínio a manutenção da relação contratual.

Conclui-se, portanto, pela existência de justa causa de exoneração, que constitui facto impeditivo do direito de indemnização invocado pela autora, tornando consequentemente inútil apreciar se a sua alegação era ou não bastante à procedência da pretensão formulada. (…)»

6.5. Já a sentença do tribunal de 1.ª instância, como esclarece o acórdão recorrido, não se pronunciou sobre a existência ou não de justa causa para a exoneração, pois entendeu que este ato não carece de se basear em justa causa para ser lícito praticá-lo, não tendo por isso surgido na esfera jurídica da administradora de condomínio qualquer direito de indemnização:

«Daqui resulta que compete aos condóminos, reunidos em assembleia (cuja regulação, incluindo quanto ao tempo, está prevista nos arts. 1431.º e 1432.º do Código Civil), decidir a eleição do administrador (neste caso, pelo período de cinco anos), mas também exonerá-lo, sem que a norma exija a necessidade de apresentação de qualquer fundamento.

Considerando que existem regras para a aprovação de uma proposta e convertê-la em deliberação, pode suceder que, não sendo aprovada, qualquer um dos condóminos possa requerer a exoneração do administrador por outra via e aí, em minoria, qualquer condómino pode vir a Tribunal requerer a exoneração judicial do administrador. Só nesta situação é que deve ser demonstrado fundamento para a exoneração, a justa causa, quando se mostre que praticou irregularidades ou agiu com negligência no exercício das suas funções – art. 1433.º, n.º 3.

No caso dos autos, a assembleia deliberou, a deliberação não veio a ser impugnada e, por isso, tem-se como assente, sem que tenha surgido na esfera jurídica do réu a obrigação de indemnizar a autora».

6.6. Para apreender o sentido da fundamentação, é necessário proceder a uma interpretação dos fundamentos da sentença e do acórdão recorrido.

Ora, confrontadas as fundamentações de direito das instâncias, verifica-se que ambas se reportam às consequências indemnizatórias do ato de exoneração da administradora de condomínio, tendo ambas decidido pela inexistência de qualquer indemnização.

O tribunal de 1.ª instância baseou essa decisão no n.º 1 do artigo 1435.º do Código Civil e na circunstância de ninguém ter impugnado a deliberação de exoneração.

Já o Tribunal da Relação, analisando com mais profundidade a questão, entendeu que a exoneração sem invocação de justa causa não significa sempre que a exoneração não possa dar lugar a indemnização, tendo optado por fundamentar a não concessão de qualquer direito de indemnização à autora na existência de justa causa para a exoneração nos termos do n.º 3 do artigo 1435.º do Código Civil, porque os factos integradores do conceito se encontram provados (pontos 26, 27, 29 e 30 da matéria de facto provada).

Como se admitiu no despacho reclamado a fundamentação das instâncias é parcialmente distinta, pois que a sentença do tribunal de 1.ª instância bastou-se com a não impugnação da deliberação da assembleia de condóminos para que não tenha surgido qualquer indemnização na esfera jurídica da administradora de condomínio, enquanto o Tribunal da Relação exigiu justa causa e considerou que a matéria de facto dada como provada pela sentença integrava este conceito indeterminado.

Mas não basta para afastar o obstáculo da dupla conforme impeditivo do recurso de revista, nos termos do n.º 3 do artigo 671.º do CPC, que a sentença e o acórdão apresentem fundamentação diferente; exige-se que essa diferença seja essencial (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16-06-2016, proc. n.º 551/13.7TVPRT.P1.S1).

A lei exige para considerar quebrada a dupla conformidade que essa diferença de fundamentação seja essencial, isto é, que se reporte a institutos jurídicos distintos ou a doutrinas inovatórias. Ora, no caso concreto, não estão em causa institutos jurídicos autónomos, nem normas ou interpretações normativas totalmente diversas. O que sucedeu foi que o acórdão recorrido desenvolveu, em termos doutrinários, a questão da exoneração da administração de condomínio, elencando várias hipóteses de solução e caminhos argumentativos distintos, enquanto a sentença, porque analisou de forma mais sumária a questão doutrinal, prescindiu de qualquer consideração de direito acerca da noção de justa causa, a qual, contudo, como afirmou o acórdão recorrido, resultava da matéria de facto dada como provada pelo tribunal de 1.ª instância.

A diferença de fundamentação entre o tribunal de 1.ª instância e o acórdão recorrido não é essencial, se o acórdão recorrido decidiu negar a indemnização à autora, por ter entendido que da matéria de facto decorre que houve justa causa de exoneração da administradora de condomínio, nos termos do n.º 3 do artigo 1435.º do Código Civil, e a sentença, prescindindo de qualquer consideração de direito acerca da noção de justa causa (mas tendo fixado os factos integradores do conceito de justa causa), entendeu, com base no n.º 1 do artigo 1435.º do Código Civil, que a exoneração exercida através de deliberação da assembleia geral de condóminos, desde que não impugnada, não faz nascer na esfera jurídica da autora o direito de indemnização.

6.7. Assim, não pode afirmar-se que estamos perante um acórdão da Relação que «(…)se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1.ª instância» (cfr. Acórdão 28-05-2015, proc. n.º 1340/08.6TBFIG.C1.S1).

A esta luz, conclui-se que as diferenças assinaladas entre os fundamentos aduzidos pelas instâncias não se consideram essenciais. Não se justifica, pois, a quebra da dupla conformidade."


*3. [Comentário] a) Salvo o devido respeito, não se acompanha a orientação defendida no acórdão. É claro que as instâncias utilizaram fundamentos distintos para considerarem a acção improcedente:

-- A 1.ª instância julgou a acção de indemnização improcedente com o fundamento de que a exoneração do administrador não necessita da invocação de justa causa;

-- A Relação julgou a mesma acção improcedente com o fundamento de que houve justa causa para a exoneração do administrador.

A questão que se pode suscitar é a de saber se a segunda fundamentação é "essencialmente diferente" da primeira (art. 671.º, n.º 3, CPC). Salvo melhor opinião, é bastante diferente entender que não é necessária a existência de uma justa causa para a exoneração do administrador e considerar que, no caso concreto, houve justa causa para essa exoneração. A diferença torna-se patente se se tiver presente que, se o autor tivesse invocado cada um desses fundamentos como causa de pedir do pedido indemnizatório, um desses fundamentos teria necessariamente de ser subsidiário do outro. Dito de outro modo: esses fundamentos são incompatíveis entre si.

b) Pode não se gostar do resultado da solução acima defendida. A bem dizer, isso não constitui uma crítica a essa solução, mas antes uma demonstração de que a dupla conformidade é um mau critério para filtrar o acesso ao STJ.

MTS