"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



09/07/2024

Jurisprudência 2023 (209)


Procedimento cautelar; contraditório diferido;
exequibilidade da decisão*


1. O sumário de RG 23/11/2023 (470/22.6T8AVV-C.G1) é o seguinte:

I - Embora seja discutível a qualificação jurídico-processual da decisão cautelar como sentença ou como despacho, certo é que, independentemente desta problemática, é inquestionável que a decisão cautelar configura uma verdadeira decisão judicial pelo que, desde que contenha, no decisório, pelo menos, um segmento de condenação constitui um título executivo nos termos do art. 703º/1a) do C.P.Civil de 2013, mesmo que seja pela equiparação decorrente do art. 705º/1 do mesmo diploma legal.

II - A natureza «provisória» das decisões proferidas nos procedimentos cautelares não contende com a sua exequibilidade.

III - Em conformidade com o estabelecido no art. 365º/2 do C.P.Civil de 2013, ao pedido principal do respectivo procedimento cautelar, é sempre possível acoplar um pedido acessório de fixação de sanção pecuniária compulsória, a qual será fixada «nos termos da lei civil» (designadamente os casos previstos no art. 829ºA/1 do C.Civil - cumprimento de obrigação de facto infungível, positivo ou negativo, não ligado a especiais qualidades científicas ou artísticas do requerido) e quando «se mostre adequada a assegurar a efetividade da providência decretada».

IV - A decisão proferida no âmbito do procedimento cautelar de restituição provisória de posse que, para além de ordenar a restituição da posse da coisa esbulhada (cuja entrega material será executada antes da notificação ao requerido para deduzir oposição ou interpor recurso), também determina a prática de certos actos ao requerido e/ou a abster-se de realizar certos actos, tudo com vista à concretização e à manutenção da posse provisória do requerente, e que fixa, ainda e concomitantemente, uma sanção pecuniária compulsória para constranger o requerido àquela prática e/ou àquela abstenção, constitui um título executivo logo que decorra o respectivo prazo de recurso ou, havendo recurso, logo que no respectivo despacho da sua admissão lhe seja fixado o efeito devolutivo.

V - A exequibilidade da decisão cautelar, quando é deferida sem a prévia audiência contraditória, é totalmente independente do prosseguimento da oposição deduzida nos termos do art. 372º/1b) do C.P.Civil de 2013 uma vez que, embora a procedência da oposição possa conduzir à sua revogação ou redução, não existe, na lei processual civil, qualquer normativo que vede a imediata produção de efeitos práticos ou jurídicos emergentes da decisão cautelar, quando foi deduzida oposição e durante o tempo da sua tramitação.

VI - A decisão proferida sobre a oposição, pese embora a previsão normativa constante da parte final do nº3 do referido art. 372º, para efeitos de recurso, é uma decisão autónoma e distinta da decisão cautelar que deferiu a providência sem a prévia audiência contraditória.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"No caso em apreço, os Embargantes/Recorrentes invocaram como um dos fundamentos dos embargos de executado (e que é o único que aqui releva) a «excepção de ineptidão do requerimento executivo por falta/insuficiência de título executivo», alegando, essencialmente, que: «a oposição deduzida ao procedimento cautelar foi julgada improcedente por decisão de 15/03/2022; apresentaram recurso a 05/04/2022 e ainda não foi objecto de despacho judicial de admissão; no dia 06/04/2022, os exequentes deram entrada da presente execução, alegando no requerimento executivo que até à data de hoje, decorreram 77 dias sobre o prazo para a retirada/demolição dos blocos e colocados na entrada sem que estes tivessem cumprido com o decidido; a decisão decretada no procedimento cautelar transitou em 05/04/2022, só a partir de 06/04/2022, os executados estavam obrigados ao cumprimento da decidido na sentença do procedimento cautelar e só a partir desta data eram condenados ao pagamento; em 06/04/2022, no dia que os exequentes entraram como requerimento executivo, não disponham de título executivo para peticionaram o valor que peticionado a título de sanção pecuniária compulsória, porque a sanção pecuniária legal só opera com o trânsito em julgado da decisão que condene na realização da prestação».

Na sentença ora recorrida, o Tribunal a quo considerou, fundamentalmente, que “em alguns casos, como o presente, em que a decisão proferida e a sua concretização pressupõem uma prestação de facto por parte dos requeridos e tendo sido fixada uma sanção a pagar pelos requeridos em caso de incumprimento, como o que está em causa é o pagamento de uma quantia certa, o requerente tem o ónus de impulsionar a sua execução, sob pena de ineficácia do procedimento. Por isso, não se pode deixar de concluir que a decisão proferida no procedimento cautelar encerra uma verdadeira decisão judicial, nos termos e para os efeitos do disposto pelos artigos 703º alínea a) e 705º do C.P.C. (…) tendo a decisão proferida no âmbito do procedimento cautelar de restituição provisória de posse aqui em causa, fixado uma sanção pecuniária compulsória a valer após a notificação aos requeridos, tal decisão não pode deixar de constituir título executivo bastante à execução para pagamento de quantia certa, no caso, da sanção pecuniária compulsória (…) De salientar que a circunstância da decisão não ter transitado em julgado, não obstava à sua imediata execução (…)”.

Em sede de recurso, os Embargantes/Recorrentes vêm defender, essencialmente, que «apresentaram recurso a 05/04/2022 da decisão proferida a 15/03/2022, recurso que entrou tempestivamente e foi admitido, sendo atribuído efeito devolutivo ao recurso», «só a partir de 06/04/2022, os tinham que cumprir o decretado na decisão proferida na providência cautelar e só a partir desta data e não antes porquanto até então a decisão ainda não havia transitado em julgado», «só a partir desta data eram condenados ao pagamento de €100,00 por cada dia de atraso no cumprimento do ordenado dos recorridos não terem acesso ao caminho de servidão», «em 06/04/2022, no dia que os recorridos entraram com o requerimento executivo, não disponham de título executivo para peticionaram o valor peticionado a título de sanção pecuniária compulsória, porque a sanção pecuniária legal só opere com o trânsito em julgado da decisão que condene na realização da prestação», e «no dia que entrou o requerimento executivo os recorrentes não estavam em incumprimento, nem violado o decidido na sentença proferida, dai também inexistir para os recorridos, título executivo» (cfr. conclusões 14ª a 24ª).

Cumpre dizer, desde já, que não assiste qualquer razão aos Embargantes/Recorrentes, que, aliás, incorrem em vários equívocos. Concretizando.

Importa começar por ter presente que, como já se havia referido, nem em sede de embargos nem em sede de recurso, os Embargantes/Recorrentes colocam em causa que a decisão cautelar (nomeadamente, no que respeita ao segmento condenatório em que fixa a sanção pecuniária compulsória) não configure uma «sentença condenatória» nos termos do disposto nos arts. 703º/1a) e 705º/1 do C.P.Civil de 2013.

Limitam-se a colocar em causa a sua exequibilidade antes de ter decorrido o prazo de recurso da decisão que julgou improcedente a oposição que deduziram.

É precisamente neste «ponto» que os Embargantes/Recorrentes incorrem num enorme equívoco: a decisão cautelar dada à execução, como é inequívoco e supra já se explicou, foi a decisão proferida na data de 10/12/2021 (a qual decretou a restituição provisória da posse e, para além do mais, fixou a obrigação acessória constituída pela sanção pecuniária compulsória que agora se pretende executar) e não a decisão que julgou improcedente a oposição deduzida e que foi proferida na data de 15/03/2022o recurso interposto na data de 05/04/2022 visa a impugnação desta segunda decisão e não daquela primeira.

Ou seja: citados na data de 11/01/2022 da decisão que decretou a providência cautelar na data de 10/12/2021 [como resulta da consulta electrónica do apenso A)], para os efeitos dos arts. 366º/6 e 372º/1 do C.P.Civil de 2013 (exercício do contraditório subsequente ao decretamento da providência) e sendo-lhes lícito, em alternativa, «recorrer, nos termos gerais, do despacho que a decretou» (quando entenda que, face aos elementos apurados, não devia ter sido deferida) ou «deduzir oposição» (quando pretenda alegar factos ou produzir meios de prova não tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da providência ou determinem a sua redução), os Embargados/Recorrentes não interpuseram recurso da decisão cautelar, tendo sim deduzido oposição.

Logo, não tendo a decisão cautelar dada à execução sido objecto de impugnação judicial através de recurso, a qual já configurava uma sentença/decisão condenatória nos termos do art. 704º/1 do C.P.Civil de 2013, a mesma passou também a constituir título executivo logo que decorreu o respectivo prazo de recurso, isto é, na data de 27/01/2022 (o termo do prazo de 15 dias previsto no art. 638º/1 do C.P.Civil de 2013 ocorreu no dia 26/01/2022).

E, como supra já se referiu, a exequibilidade da decisão cautelar, quando é deferida sem a prévia audiência contraditória, é totalmente independente do prosseguimento da oposição uma vez que, embora a procedência da oposição possa conduzir à sua revogação ou redução, é inquestionável que não existe, na lei processual civil, qualquer normativo que vede a imediata produção de efeitos práticos ou jurídicos emergentes da decisão cautelar, quando foi deduzida oposição e durante o tempo da sua tramitação. Efectivamente, ao contrário da exigência legal do trânsito em julgado da decisão condenatória ou da atribuição de efeito devolutivo do recurso interposto para conferir eficácia executiva à sentença/decisão condenatória (no aludido art. 704º/1), o legislador não reconheceu qualquer efeito suspensivo da eficácia da decisão cautelar à oposição deduzida nos termos do citado art. 372º/1b).

Frise-se que, pese embora a previsão normativa constante da parte final do nº3 do referido art. 372º («qualquer das decisões constitui complemento e parte integrante da inicialmente proferida») não significa que o recurso interposto relativamente à decisão que aprecia a oposição (no âmbito da qual o «juiz decide da manutenção, redução ou revogação da providência anteriormente decretada») constitua formalmente um recurso (impugnação judicial) da primeira  decisão (que decretou a providência cautelar). Como muito bem se explica no Ac. do STJ de 31/10/2017 [Juíza Conselheira Ana Paula Boularot, proc. nº32262/15.3T8LSB.L3.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.]“a Lei ao estabelecer que por via da oposição que possa ocorrer, o Tribunal se venha a (re)pronunciar sobre a providência anteriormente decretada, está a permitir que possa existir um novo juízo, sobre aquela primeira decisão, constituindo estoutra um seu complemento e parte integrante, peça autónoma, contudo, para efeitos de ulterior interposição de recurso, o qual poderá ser suscitado por qualquer das partes (…) Quer isto dizer que esta decisão última, de manutenção, redução ou revogação do arresto, tem como substrato para além da apreciação dos requisitos justificativos daquela providência, a apreciação dos factos e das provas que justifiquem, ou possam afastar e/ou reduzir a mesma, mas como estamos em sede de oposição, é a decisão desta que será objecto de recurso e, não como entendeu o segundo grau, a primeiramente tomada, embora se possa fazer apelo à fundamentação da mesma, como é óbvio, já que o próprio procedimento de oposição visa o seu contraditório subsequente…” [...]. Deste modo, o recurso interposto na data de 05/04/2022 tem por objecto, apenas e exclusivamente, a decisão que julgou improcedente a oposição proferida na data de 15/03/2022, a qual, para efeitos de recurso, é autónoma e distinta da decisão cautelar proferida na data de 10/12/2021 [ainda que o recurso possa implicar uma «(re)pronúncia» sobre a providência anteriormente decretada, ou seja, um novo juízo sobre aquela anterior decisão]. [...]

Em face do supra exposto, temos necessariamente que concluir que a decisão cautelar dada à execução constitui título executivo desde a data de 27/01/2022, isto é, desde data muito anterior à data em que foi intentada a acção executiva pelos Embargados (06/04/2022), mostrando-se absolutamente infundadas as pretensões recursivas no sentido de que «na data de 06/04/2022 os exequentes/embargados não dispunham de título executivo» e/ou no sentido de que «os Embargantes só estavam obrigados a cumprir a decisão cautelar a partir de 06/04/2022».

Aliás, é no que concerne cumprimento de decisão cautelar que os Embargantes/Recorrentes incorrem noutro enorme equívoco, confundindo o momento processual em que a decisão cautelar se torna exequível (requisito da exequibilidade da sentença/decisão judicial previsto no aludido art. 704º) com o momento a partir do qual estão adstritos ao cumprimento dos segmentos condenatórios (requisito da exigibilidade da obrigação exequenda previsto no art. 713º do C.P.Civil de 2013).

Com efeito, invocaram que «só tinham que cumprir o decretado na decisão proferida na providência cautelar a partir da atribuição do efeito devolutivo ao recurso, na data de 06/04/2022, porquanto até então a decisão ainda não havia transitado em julgado», que «a sanção pecuniária legal só opera com o trânsito em julgado da decisão que condene na realização da prestação» e que «a decisão proferida na providência cautelar só passou a ter força obrigatória a partir do dia 06 de Abril de 2022».

Como supra já se explicou, o trânsito em julgado da sentença condenatória configura um requisito específico da exequibilidade da sentença/decisão judicial condenatória (cfr. o referido art. 704º/1): em regra, só pode ser executada após a verificação do seu trânsito em julgado, mas esteja legalmente consagrada a possibilidade excepcional de ser executada mesmo quando foi objecto de recurso desde que a este tenha sido atribuído efeito devolutivo (não se pode deixar aqui de referir que os Embargados/Recorrentes também se confundem, e entram mesmo em contradição, ao alegarem, simultaneamente, que «ocorreu o trânsito em julgado» e que «o recurso tem efeito devolutivo»). Estamos no âmbito da «exequibilidade extrínseca».

Já a exigibilidade configura um dos requisitos legais da obrigação exequenda (pressuposto substancial) previstos no aludido art. 713º, sendo que a exigibilidade da obrigação coincide com o seu vencimento, não sendo exigível a prestação quando a obrigação está sujeita a prazo que ainda se não venceu, ou a uma condição que ainda se não verificou. Em conformidade com o disposto do art. 777º/1 do C.Civil, é exigível a prestação quando a obrigação se encontrar vencida ou o seu vencimento estiver depende, de acordo com estipulação expressa ou com esta norma geral supletiva, de simples interpelação do devedor. Estamos no âmbito da «exequibilidade intrínseca».

Como se refere no Ac. desta RG de 28/11/2019 [Juíza Desembargadora Margarida Fernandes, proc. nº3334/18.4T8GMR-A.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.]“No que concerne a exequibilidade a doutrina distingue-se a exequibilidade extrínseca da exequibilidade intrínseca. A exequibilidade extrínseca reporta-se à exequibilidade do título ou à exequibilidade da pretensão incorporada ou materializada no título, requisito de certeza para acesso directo à realização coactiva de uma obrigação que é devida. Respeita ao preenchimento dos requisitos para que um documento possa desempenhar a função de título executivo. A falta de título está relacionada com esta exequibilidade. A exequibilidade intrínseca diz respeito à obrigação exequenda e às suas características materiais, obrigação essa que tem que subsistir no momento da execução. Diz respeito à validade ou eficácia do acto ou negócio incorporado no título. Tem como requisitos a certeza, a exigibilidade e a liquidez da obrigação exequenda (713º do C.P.C.). A sua não verificação impede que o devedor seja executado quanto a tal prestação”.

Ora, embora só possa ser executada após o trânsito em julgado ou, tendo sido interposto recurso, a este tenha sido fixado efeito devolutivo, uma vez que os procedimentos cautelares visam a emissão de uma decisão interina (provisória) destinada a assegurar a efectividade do direito ameaçado até ser proferida a decisão definitiva na acção principal, uma vez que a decisão cautelar em apreço respeita a um procedimento cautelar especificado de restituição provisória da posse, cujo deferimento impõe a entrega efectiva/material da coisa esbulhada e uma vez que a decisão cautelar em apreço impôs imediatamente três deveres aos Embargantes/Recorrentes (obrigação/prestação de restituição da posse do caminho, obrigação/prestação de retirada e demolição de blocos colocados na entrada do caminho e obrigação/prestação de absterem-se da prática de actos que impossibilitem a circulação do caminho), então verifica-se que tais obrigações se tornaram exigíveis (vencidas) precisamente desde a data em que estes foram citados (interpelados judicialmente) no âmbito do procedimento (quer do teor da decisão cautelar, quer para exercerem o respectivo contraditório), isto é, desde a data de 11/01/2022.

Por conseguinte, estando adstritos ao cumprimento de tais obrigações/prestações desde a data da citação (interpelação judicial), os Embargantes/Recorrentes estavam também sujeitos à obrigação acessória de imediato pagamento da quantia diária fixada a título de sanção pecuniária compulsória a partir do momento em que incumpriram alguma daquelas três obrigações (incumprimento este que, como supra já se mencionou, foi expressamente alegado no requerimento executivo)."

*3. [Comentário] A orientação adoptada no acórdão mereceu acolhimento em MTS, CPC online, Art. 362.º a 409.º (vs. 2024.04), art. 372.º, n.º 20.

MTS