O depoimento prestado em violação do sigilo profissional do advogado determina a aplicação do regime específico do artigo 92.º, n.º 5, do Estatuto da Ordem dos Advogados.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"16. A primeira questão consiste em averigar se, de acordo com o artigo 92.º, n.º 5, do Estatuto da Ordem dos Advogados, o depoimento do Dr. FF e os documentos juntos à petição inicial com os n.ºs 21 e 22 podem fazer prova em juízo.
17. A Autora, agora Recorrente, deduz como causa de pedir da presente acção o facto de o contrato de transacção descrito nos factos dados como provados sob as letras M-O ter sido concluído na pressuposição de que a Ré, agora Recorrida, concluiria com a Autora, agora Recorrente, um contrato de compra e venda de toda a fracção autónoma designada pelas letras BX, integrada no prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número 679/960325 e inscrito na matriz sob o artigo 3266.
Ou seja — a metade da fracção autónoma designada pelas letras BX teria sido atribuída à Ré, agora Recorrida, DD [---], para que a Ré, agora Recorrida, a vendesse, na totalidade, à Autora, agora Recorrente, AA. [...]
— o depoimento do Dr. FF incidiu sobre as negociações com o advogado da Ré, agora Recorrida, acerca da venda da fracção autónoma designada pelas letras BX;
— os documentos n.ºs 21 e 22 confirmariam o seu depoimento, ao darem conta de que entre os dois foram trocados e-mail, em que se discutiam as razões por que o contrato-promessa de compra e venda não fora concluído.
20. Ora, o artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados é do seguinte teor:
Artigo 92.º— Segredo profissional
1. — O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:
a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;
b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;
c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;
d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;
e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;
f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.
2. — A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.
3. —O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.
4. — O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.
5. — Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.
6. — Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional.
7. — O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua atividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5.
8. — O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior, nos termos de declaração escrita lavrada para o efeito, o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração, consistindo infração disciplinar a violação daquele dever.
21. O Tribunal de 1.º instância e o Tribunal da Relação consideraram que o depoimento do Dr. FF e os documentos n.ºs 21 e 22 incidiam sobre factos “cujo conhecimento lhe [advinha] do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços” [---] — e os argumentos deduzidos pelas instâncias devem subscrever-se, sem qualquer reserva.
22. Em primeiro lugar, o artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados não permite que o advogado seja dispensado dos seus deveres de sigilo pela parte que representa, ou que o advogado seja dispensado dos seus deveres de sigilo para que seja feita a prova de que, no decurso das negociações, foi concluído um acordo, ainda que não formalizado, com o advogado que representa a contraparte [---]
23. Em concreto, a prova de que foi concluído um acordo, ainda que não formalizado, sempre seria condição necessária da prova de que o acordo foi ou não foi cumprido.
24. Em segundo lugar, a convicção de que o depoimento prestado pelo Dr. FF nunca poderia determinar uma confiança justificada da Autora, agora Recorrente, sempre significaria uma convicção contrária a disposições legais que a Autora, agora Recorrente, conhecia ou, ainda que não conhecesse, devia conhecer [---]
25. A decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância e pelo Tribunal da Relação não pode de forma nenhuma representar-se como uma capaz de frustrar uma confiança justificada da Autora, agora Recorrente — e, em especial, que a decisão proferida pelas instâncias não pode de forma nenhuma representar-se como uma decisão surpresa.
26. O raciocínio só pode ser reforçado pela circunstância de a questão do segredo profissional ter sido evocada na audiência de julgamento.
27. O Tribunal de 1.ª instância chama a atenção para que, “no decurso do depoimento da testemunha foi a questão do sigilo relembrada e referidas as necessárias repercussões de tal circunstância teria na ponderação da prova” e o Tribunal da Relação para que “o tribunal, apesar de ter ouvido a testemunha sem declarar logo a prova inadmissível”:
I. — “foi sempre perguntando [à testemunha] se as negociações entre os advogados foram públicas, levadas a cabo à frente de todos os intervenientes, nomeadamente da notária que presidiu ao acordo, ao que a testemunha foi sempre dizendo que sim”,
II. — foi sempre perguntando aos mandatários das partes “se estavam conscientes de que o depoimento em questão poderia eventualmente estar a violar o sigilo profissional”.
28. Em resposta à primeira questão, dir-se-á que, de acordo com o artigo 92.º, n.º 5, do Estatuto da Ordem dos Advogados, o depoimento do Dr. FF e os documentos juntos à petição inicial com os n.ºs 21 e 22 não podem fazer prova em juízo.
29. A segunda questão consiste em averiguar se o depoimento prestado em violação do sigilo profissional determina a aplicação do regime das nulidades principais, ou a aplicação do regime das nulidades secundárias, ou a aplicação de um regime autónomo, distinto do regime das nulidades processuais.
30. A Autora, agora Recorrente, alega que está em causa uma nulidade processual secundária, dependente de invocação pelo interessado e, sobretudo, sanável.
31. Ora, entre o caso comum de prestação de um depoimento em violação de um dever de sigilo profissional e o caso específico de prestação de um depoimento em violação do dever de sigilo profissional do advogado há uma diferença fundamental.
32. Os casos comuns de prestação de depoimento em violação de um dever de sigilo profissional podem porventura reconduzir-se ao conceito e ao regime das nulidades processuais secundárias — daí que o conhecimento da nulidade dependa de uma reclamação do interessado 7, dentro dos prazos do artigo 199.º do Código de Processo Civil 8.
33. O caso específico em violação do dever de sigilo profissional do advogado, esse, não pode reconduzir-se ao conceito e, sobretudo, não pode reconduzir-se ao regime das nulidades processuais secundárias:
34. O artigo 92.º, n.º 5, do Estatuto da Ordem dos Advogados ao determinar que “[os] actos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo”, contém uma cominação específica 9.
35. O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Maio de 2022 — proceso n.º 126/20.4T8OAZ-A.P1.S1 — di-lo de forma explícita:
“O n.º 5, do […] artigo 92.º, estabelece como consequência da violação do sigilo profissional do advogado, que as provas que desrespeitem o dever de segredo não são idóneas a fundamentar a demonstração dos factos revelados nas negociações […].
“com esta cominação específica, a produção dos meios de prova com esta incidência não constitui uma simples nulidade inominada secundária, a ser arguida, nos termos dos artigos 195.º e 199.º do Código de Processo Civil […], revelando-se antes uma violação de uma proibição de produção de prova, cuja consequência é a proibição da sua valoração, tendo essa violação um tratamento autónomo do que se encontra previsto para as nulidades processuais, podendo, designadamente, tal infração ser conhecida em recurso, sem que a nulidade da produção do respetivo meio de prova tenha que ser arguida nos termos previstos no artigo 199.º do Código de Processo Civil”.
36. Entendendo-se, como se entende, que o depoimento prestado em violação do sigilo profissional do advogado determina a aplicação de um regime autónomo, distinto do regime das nulidades processuais, deve conhecer-se do vício e decidir-se a terceira questão — se deve ser determinada a anulação de todo o processo a partir do depoimento do Dr. FF e o regresso à fase processual em que deveria ter sido requerido o incidente de levantamento do sigilo profissional.
37. Ora, não há nenhuma razão para dar à Autora, agora Recorrente, uma segunda oportunidade para fazer a prova dos factos dados como não provados sob os n.ºs 12-14.
38. A consequência jurídica da prestação de depoimento em violação do dever de sigilo profissional do advogado é a inidoneidade do meio de prova para a demonstração dos factos alegados.
39. O juízo sobre se o facto está ou não provado deve formular-se como se não tivesse sido prestado o depoimento, ou como se não tivessem sido apresentados os documentos relacionados com factos sujeitos a sigilo profissional — se o facto tiver sido dado como provado com fundamento exclusivo no depoimento do advogado, deverá ser dado como não provado [---]; se não, poderá ser dado como provado ou como não provado, em função dos demais meios de prova.
40. O resultado só pode ser reforçado pela circunstância de ter sido perguntado aos mandatários das partes “se estavam conscientes de que o depoimento em questão poderia eventualmente estar a violar o sigilo profissional” — se a Autora, agora Recorrente, decidiu correr o risco, não há razão, para que, depois de concretizado o risco, lhe seja concedida uma segunda oportunidade para fazer com que o depoimento do Dr. FF e os documentos n.ºs 21 e 22 sejam considerados na decisão final."
[MTS]