Processo de insolvência;
reclamação de créditos; legitimidade para recorrer
1. O sumário de RL de 11/7/2024 (23994/16.0T8LSB-B.L1-1) é o seguinte:
I–Tendo o recorrente usado o direito à impugnação da lista de credores reconhecidos, a que alude o normativo inserto no art.º 130.º do CIRE, o que foi depois objeto de apreciação em sede de sentença de verificação e graduação de créditos, com a improcedência da impugnação apresentada pelo recorrente, não há como não reconhecer ao mesmo a legitimidade ad recursum resultante do art.º 631.º n.º 1 do CPC para interpor o presente recurso.
II–Acresce que, o reconhecimento desses créditos comuns, que o recorrente considera indevidamente reconhecidos, sempre lhe causaria um prejuízo direto e efetivo, na medida em que, sendo ele também titular de um crédito comum, verá, necessariamente, reduzida a sua quota-parte no produto da liquidação do património da insolvente, que se mostra insuficiente para a satisfação integral de ambos os créditos reconhecidos, pelo que, também por aqui, assegurada estaria a legitimidade ad recursum resultante do art.º 631.º n.º 2 do CPC para interpor o presente recurso.
III–Sendo o Estado Português titular de um direito de crédito sobre o BPP, tendo visto no âmbito do processo de liquidação do mesmo verificado e reconhecido o seu crédito, nada impede que, à luz dos arts.º 491.º e 501.º do CSC., em face da existência de relação de domínio entre a aqui insolvente e o BPP, e demais pressupostos ali previstos, o mesmo Estado reclame e veja reconhecido o mesmo crédito no âmbito do processo de insolvência da sociedade dominante.
IV–Por outro lado, também a Comissão liquidatária do BPP, em face daquela relação de domínio, poderá exigir e reclamar, à luz do art.º 502.º do CSC, a compensação das suas perdas no âmbito do processo de insolvência da sociedade dominante.
V–As normas previstas nos arts.º 501º e 502º do CSC, ao abrigo das quais o Estado Português e a Comissão liquidatária do BPP, respetivamente, reclamaram créditos sobre a aqui insolvente, enquanto sociedade dominante, não são normas alternativas cuja aplicação cumulativa implique, in casu, o reconhecimento duplicado ou redundante de um mesmo crédito, já que as perdas anuais de um determinado exercício económico, enquanto prejuízo anual, não contemplam necessariamente o passivo da sociedade subordinada, sendo diferentes as causas de pedir de um e outro crédito, não evidenciando os autos o “erro manifesto” que a lei exige para retificação da lista apresentada e homologada pela sentença recorrida.
VI–Ainda que se possa entender que o art.º 82.º n.º 3 do CSC estabelece uma inibição temporária (enquanto durar o processo de insolvência), tal inibição é para propor ações diretamente, ações judiciais que correm por apenso ao processo de insolvência, tal como resulta do n.º 6 do aludido preceito, e não para reclamar créditos à luz do art.º 128.º do mesmo código.
VII–A legitimidade exclusiva do administrador da insolvência para propor aquelas ações contra os responsáveis legais pelo pagamento, tendo em vista o aumento da massa insolvente, não impede nem retira a legitimidade ao credor de exercer o direito que o art.º 501º, n.º 1 do CSC lhe confere, apresentando a sua reclamação de créditos (de que é titular perante a sociedade dominada, que não cumpre as suas obrigações) no âmbito do processo de insolvência da sociedade dominante.
VIII– E é precisamente por os credores poderem sempre reclamar os seus créditos no processo de insolvência, nos termos do art.º 36.º, n.º 1, alínea j) do CIRE, enquanto credores da insolvência (art.º 47.º do CIRE), que o citado preceito não é inconstitucional, permitindo o mesmo tratamento e igualdade material a todos os credores que estejam nessa situação.
IX–A existência de um crédito litigioso, em discussão em juízo, que não se confunde com um crédito condicional a que apela o art.º 50.º do CIRE, não dispensa o credor de reclamar o aludido crédito nos autos de insolvência, se nele quiser obter pagamento, em face do que decorre dos arts.º 90.º e 128.º do CIRE.
X–Após a declaração de insolvência do devedor e aberta a fase processual de reclamação de créditos, com vista à sua ulterior verificação e graduação no âmbito do respetivo processo de insolvência, deixa de ter qualquer interesse e utilidade o prosseguimento de quaisquer ações declarativas, pois que os alegados créditos têm que ser objeto de reclamação no processo de insolvência e discutido no âmbito desse mesmo processo, mediante o seu reconhecimento ou não, por parte do AI, na lista de créditos apresentada nos autos, e possibilidade de impugnação com posterior decisão.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"IV-/ Do objeto do recurso:
Questão prévia:
(i)- Da legitimidade do recorrente
Principia o recorrente por afirmar a sua plena legitimidade e interesse para recorrer da sentença de verificação e graduação de créditos, pois que, alega, o reconhecimento (indevido) de créditos comuns do Estado Português causa, sempre e em qualquer caso, um prejuízo direto e efetivo ao recorrente, também ele titular de um crédito comum, na medida em que reduz a sua quota-parte no produto da liquidação do património da insolvente.
Em contra-alegações, defende o MP, em representação do Estado Português, que a sentença recorrida não tem incidência direta nos interesses e na esfera jurídica do recorrente, relevando, somente, de forma reflexa e indireta, uma vez que o seu crédito já foi reconhecido nos termos reclamados, estando em igualdade para com o recorrido em face de os créditos de ambos serem considerados comuns.
Vejamos então.
Nos termos do art.º 631.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, aplicável ex vi art.º 17.º, n.º 1, do CIRE, os recursos podem ser interpostos por quem, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido, bem como pelas pessoas direta e efetivamente prejudicadas pela decisão, ainda que não sejam partes na causa ou sejam apenas partes acessórias.
Como se vê, este normativo, nos seus n.ºs 1 e 2, convoca um critério formal e subjetivo e um critério material e objetivo, respetivamente, que pressupõe, na primeira parte, a condição de parte principal nos autos e neles vencida, e, na segunda parte, um prejuízo real ou um interesse direto do recorrente na procedência do recurso.
Sobre esta matéria, Abrantes Geraldes (na obra “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2ª edição, pág. 71/72), diz-nos, que «A exigência de um prejuízo direto tem subjacente a ideia de que a decisão visa diretamente o recorrente, afastando os casos em que o prejuízo, ainda que efetivo, é indireto, reflexo ou mediato, ou atinge unicamente a pessoa representada (…)».
Se nas situações normais a legitimidade para recorrer se afere através de um critério formal, verificando se o recorrente é parte no processo e conferindo o resultado da lide, nos casos em que o recurso advenha de terceiro diretamente prejudicado pode revelar-se necessária a demonstração dos factos onde assenta o alegado interesse, o que, sem embargo dos poderes de averiguação do tribunal, deve ser feito pelo recorrente no requerimento de interposição de recurso (arts. 637º, n.º 2, e 641º, n.º 2, al. a)).».
No caso em apreço, teremos ainda de nos ater ao facto de o processo de Insolvência constituir um procedimento universal e concursal, cujo objetivo é a obtenção da liquidação do património do devedor, por todos os seus credores, destinando-se a massa insolvente à satisfação dos credores, de acordo com o que é decidido na sentença de verificação e graduação de créditos.
O incidente da verificação de créditos, que corre por apenso ao processo de insolvência (art.º 132.º do CIRE), deve assim englobar todos os créditos da insolvência, visando o pagamento pelo produto da massa insolvente (art.º 128.º, n.º 5, do CIRE), segundo as regras estabelecidas nos CIRE (arts.º 172.º e ss).
Por ser assim, os credores da insolvência que pretendam fazer valer os seus direitos de crédito no âmbito do respetivo processo, têm que apresentar a competente reclamação de créditos, dispondo para o efeito do prazo fixado na sentença de declaração de insolvência. A reclamação é feita mediante requerimento dirigido ao administrador da insolvência, acompanhado de todos os documentos probatórios disponíveis (art.º 128.º).
As reclamações apresentadas são depois apreciadas pelo administrador da insolvência, o qual deve apresentar nos autos a lista de todos os credores por si reconhecidos e a dos não reconhecidos, lista que pode ser sujeita a impugnação, nos termos do disposto no art.º 130.º n.º 1 do CIRE, que dispõe que “Nos 10 dias seguintes ao termo fixado no n.º 1 do artigo anterior, pode qualquer interessado impugnar a lista de credores reconhecidos através de requerimento dirigido ao juiz, com fundamento na indevida inclusão ou exclusão de créditos, ou na incorreção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos.”
A essa impugnação pode haver “Resposta”, nos termos consignados no o art.º 131.º que estipula que «1- Pode responder a qualquer das impugnações o administrador da insolvência e qualquer interessado que assuma posição contrária, incluindo o devedor. 2- Se, porém, a impugnação se fundar na indevida inclusão de certo crédito na lista de credores reconhecidos, na omissão da indicação das condições a que se encontre sujeito ou no facto de lhe ter sido atribuído um montante excessivo ou uma qualificação de grau superior à correta, só o próprio titular pode responder. 3- A resposta deve ser apresentada dentro dos 10 dias subsequentes ao termo do prazo referido no artigo anterior ou à notificação ao titular do crédito objeto da impugnação, consoante o caso, sob pena de a impugnação ser julgada procedente».
A ser assim, tendo o recorrente usado, no caso dos autos, do direito à impugnação da lista de credores reconhecidos, a que alude o normativo inserto no citado art.º 130.º do CIRE, o que foi depois objeto de apreciação em sede de sentença de verificação e graduação de créditos, com a improcedência da impugnação apresentada pelo recorrente (ainda que por extemporaneidade) não há como não reconhecer ao mesmo a legitimidade ad recursum resultante do art.º 631.º n.º 1, do CPC. As especificidades processuais do procedimento de verificação e graduação de créditos por apenso a processo de insolvência, faz com que - neste particular confronto, entre reclamante/impugnante, em que este peticionava a exclusão dos créditos daquele, incluídos na lista apresentada pelo AI nos autos, pretensão em que decaiu, com a improcedência daquela impugnação, - o recurso interposto tenha que ser analisado então, desse ponto de vista, por quem, sendo parte nos autos, ficou vencido, atento o conflito existente entre impugnante e titular do crédito reconhecido.
Acresce que, seja como for, o reconhecimento de créditos comuns do Estado Português, que o recorrente considera indevidamente reconhecidos, causará ao recorrente, como este bem argumenta, sempre e em qualquer caso, um prejuízo direto e efetivo, pois que, sendo também ele titular de um crédito comum, verá, necessariamente, reduzida a sua quota-parte no produto da liquidação do património da insolvente. Tendo sido reconhecidos ao recorrente e ao recorrido créditos sobre a insolvência, igualmente graduados como comuns, que serão pagos na proporção respetiva, sempre que a massa insolvente se mostre insuficiente para a sua satisfação integral (cfr. artsº 176.º do CIRE e 604.º, n.º 1, do CC), dúvidas não restam, também por aqui, sobre a legitimidade do recorrente para interpor o presente recurso, nos termos do disposto no art.º 631.º n.º 2 do CPC, tendo em consideração os prejuízos reais e efetivos que a sentença recorrida (na parte de que se recorre) produziria na sua esfera jurídica, o que aqui se reconhece e declara.
Reconhece-se, pois, ao recorrente legitimidade para interpor o presente recurso."
[MTS]
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