"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



22/04/2025

Jurisprudência 2024 (153)


Prestação de alimentos;
filho maior; limites


1. O sumário de RC 18/6/2024 (324/11.1TBCTB-G.C1) é o seguinte:

I – A Lei nº 122/15 de 1 de Setembro veio introduzir um nº2 ao artº 1905 do CC, no qual se explicitou, de forma inequívoca, que se mantem para depois da maioridade a pensão fixada em benefício do filho - agora maior - durante a sua menoridade e até que perfaça os 25 anos.

II – Cabe ao progenitor, obrigado ao pagamento de alimentos ao filho menor, o ónus de intentar acção com vista à sua cessação, após a maioridade (artº 989, nº2 do C.P.C.), por apenso à acção onde foram fixados, invocando para o efeito a ocorrência de um dos requisitos constantes deste normativo: a conclusão do processo de educação ou formação profissional do filho; a interrupção desse processo por acto voluntário do filho; a irrazoabilidade da exigência de alimentos ou a sua impossibilidade para os prestar.

III – A maioridade do credor de alimentos não obsta a que se possa recorrer aos mesmos meios coercitivos para a sua cobrança, que os conferidos para protecção dos filhos menores, nomeadamente, os previstos nos artºs 41 e 48 do RGPTC.

IV – No entanto, a legitimidade para os peticionar cabe ao filho maior, credor destes alimentos, ou ao progenitor que assuma o encargo principal de pagar as despesas dos filhos maiores (artº 989, nº3 do C.P.C.) e não ao M.P. face ao estatuído nos art.º s 1º, 2º, 4º, n.º 1, al. i) e 9º, n.º 1 al. d) da Lei 68/2019, de 27/08.

V – É aplicável aos créditos por alimentos os limites de impenhorabilidade previstos no artº 738, nº 4, do C.P.C., ou seja, são impenhoráveis quantias equivalentes à totalidade da pensão social do regime não contributivo.

VI – Apesar deste limite, o tribunal pode sempre ajustar os descontos à real situação e necessidades dos progenitores e dos menores, salvaguardando limite superior ao mínimo legal, quando o julgue indispensável a assegurar a sobrevivência condigna do progenitor.

VII – Para tanto, não basta ao progenitor, devedor destes alimentos, invocar que se encontra a receber subsídio de doença e que sobrevive com dificuldades, atendendo ao facto de este estado e subsídio ter natureza temporária e variável, o progenitor nunca ter pago qualquer quantia a título de alimentos aos seus filhos (durante mais de 4 anos) e a necessidade de ser assegurada uma subsistência condigna ao filho menor.

VIII – A intervenção do Fundo de Garantia de Alimentos a Menores para que, em substituição do progenitor faltoso, assegure o pagamento da obrigação de alimentos nos termos definidos pela Lei nº 75/98 (na redacção introduzida pela Lei nº 24/2017), deve ser requerida pelo Ministério Público ou por aqueles a quem a prestação de alimentos deveria ser entregue (artº 3, nº1), em caso de impossibilidade de cobrança destes alimentos e limita-se apenas às prestações que se vencerem após decisão que fixe o montante a pagar pelo FGADM.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Estipulada a regulação do poder paternal de menores é esta vinculativa para ambos os progenitores, impondo o seu cumprimento escrupuloso.

Com a alteração legislativa verificada com a introdução da Lei 141/2015, este incidente regulado anteriormente no artº 181 da OTM e agora nos artºs 41 e segs. do RGPTC, prevê a imediata tomada de medidas destinadas a obter o pagamento forçado das prestações em dívida, que abrangerá as prestações vincendas, através da dedução das quantias necessárias nos rendimentos regulares que o devedor tiver a receber de terceiro.

Nestes termos, do disposto no artº 41 nº 1 do RGPTC, decorre que “Se, (…) um dos pais ou a terceira pessoa a quem aquela haja sido confiada não cumprir com o que tiver sido acordado ou decidido, pode o tribunal, oficiosamente, a requerimento do Ministério Público ou do outro progenitor, requerer, ao tribunal que no momento for territorialmente competente, as diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso em multa até vinte unidades de conta e, verificando-se os respetivos pressupostos, em indemnização a favor da criança, do progenitor requerente ou de ambos.”, designando conferência de pais, ou excepcionalmente, notificar o requerido para, no prazo de cinco dias, alegar o que tiver por conveniente.(nº3.)

Os presentes autos foram instaurados ao abrigo do art.º 48.º do RGPTC, o qual estabelece diversos meios de cobrança expedita e coerciva dos alimentos devidos, quando não for voluntariamente satisfeita a prestação nos 10 dias seguintes ao vencimentoadoptando-se as seguintes providências:

“a) Se for trabalhador em funções públicas, são-lhe deduzidas as respetivas quantias no vencimento, sob requisição do tribunal dirigida à entidade empregadora pública;

b) Se for empregado ou assalariado, são-lhe deduzidas no ordenado ou salário, sendo para o efeito notificada a respetiva entidade patronal, que fica na situação de fiel depositário;

c) Se for pessoa que receba rendas, pensões, subsídios, comissões, percentagens, emolumentos, gratificações, comparticipações ou rendimentos semelhantes, a dedução é feita nessas prestações quando tiverem de ser pagas ou creditadas, fazendo-se para tal as requisições ou notificações necessárias e ficando os notificados na situação de fiéis depositários.

2 - As quantias deduzidas abrangem também os alimentos que se forem vencendo e são diretamente entregues a quem deva recebê-las.

É aplicável aos créditos por alimentos os limites de impenhorabilidade previstos no artº 738, nº4, do C.P.C., ou seja, são impenhoráveis quantias equivalentes à totalidade da pensão social do regime não contributivo.

Ora, como a pensão social no regime não contributivo foi actualizada para o ano de 2024, pelo artº 18 da Portaria n.º 424/2023 de 11 de Dezembro, para o montante de € 245,79, constituindo este montante o valor intocável pelas deduções ordenadas, o despacho recorrido viola esta disposição, tendo em conta que ao recorrente é pago subsídio de doença no montante de € 379,80.

No entanto, atendendo à revogação deste despacho no que se reporta aos alimentos devidos à filha maior, o valor final enquadra-se neste preceito (52,00+€40,00-€379,80 = € 287,80).

Alega, no entanto, o recorrente, que o valor que resta não assegura a sua subsistência condigna, sobrevivendo da ajuda de familiares.

Efectivamente o artº 1 e 2 da Constituição consagram o direito fundamental a uma existência condigna, fundado no respeito pela dignidade humana, que cabe ao Estado assegurar pelo estabelecimento de regimes de solidariedade social, designadamente mediante a atribuição de prestações de natureza social, como os rendimentos de reinserção social, os subsídios de desemprego e de doença, etc. Este direito encontra ainda consagração no artº 63, nº1 e 3 da Constituição que, conforme afirmado no Ac. do Tribunal Constitucional nº 509/2002 “garante a todos o direito à segurança social e comete ao sistema de segurança social a proteção dos cidadãos em todas as situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho, implica o reconhecimento do direito ou da garantia a um mínimo de subsistência condigna”.

Ao legislador ordinário é reconhecida, no entanto, ampla margem de conformação deste sistema de protecção, desde que seja assegurado, o mínimo indispensável a uma subsistência condigna.

Este princípio que determinou a limitação constante do referido nº 4 do artº 738 do C.P.C., resulta ainda de anterior entendimento expresso em Acórdão do Tribunal Constitucional nº 62/2002 (publicado no Diário da República, II Série, de 11 de Março de 2001), a respeito dos artºs 821, nº 1 e 824, nº 1 al. b) e nº 2 do anterior regime processual civil, no qual se decidiu “julgar inconstitucionais, por violação do princípio da Dignidade Humana contido no princípio do Estado de Direito, tal como resulta das disposições conjugadas dos artigos 1.º e 63.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição da República, os artigos 821.º, n.º 1 e 824.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2 do Código de Processo Civil, na interpretação segundo a qual são penhoráveis as quantias percebidas a título de rendimento mínimo garantido” tendo em conta que “a prestação de segurança social em causa não exceder o mínimo adequado e necessário a uma sobrevivência condigna.”

Não estando em causa nestes autos um verdadeiro acto de penhora, a natureza do acto para efeitos de impenhorabilidade e de controlo do cumprimento constitucional dos direitos ínsitos nos artºs 1 e 2 da nossa Constituição, é irrelevante, uma vez que, conforme se refere em Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 306/2005 “O que conta é tratar-se de uma providência judicial de apreensão e afectação de certa parcela de rendimentos periódicos daquela natureza (pensões sociais ou retribuição do trabalho por conta de outrem) à satisfação coerciva de dívidas do seu titular, com a consequente possibilidade de a diminuição do respectivo rendimento disponível lhe não permitir a satisfação das necessidades básicas em termos compatíveis com a dignidade da pessoa humana.”

 Ainda sobre a possibilidade de dedução de uma parcela da pensão social, no caso de invalidez, de um progenitor, para satisfação da prestação de alimentos devida a filhos menores, veio pronunciar-se o aludido Acórdão, considerando que aos pais cabe “o dever constitucionalmente autonomizado como dever fundamental e de cujo feixe de relações a prestação de alimentos é o elemento primordial. É o que directamente resulta de no n.º 5 do artigo 36.º da Constituição se dispor que os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos” e que há que ter em consideração que nestes casos “entram em colisão o dever e o direito correlativo de manutenção dos filhos pelos progenitores, situação em que, de qualquer dos lados, fica em crise o princípio da dignidade da pessoa humana, vector axiológico estrutural da própria Constituição (…) até que as necessidades básicas das crianças sejam satisfeitas, os pais não devem reter mais rendimento do que o requerido para providenciar às suas necessidades de auto-sobrevivência.

É este essencialmente o princípio a considerar. Aos progenitores cabe o dever de manutenção dos seus filhos, assegurando-lhes níveis de subsistência condigna. Há que referir que ao filho menor deveriam ser prestados alimentos no valor de € 52, valor muito inferior (pressupondo que o outro progenitor estará obrigado a prestação de igual montante) àquele que é o RSI. Na realidade como afirma este Acórdão que vimos referindo, é este o valor que “ no subsistema de solidariedade social se assume como o mínimo dos mínimos compatível com a dignidade da pessoa humana.

Por essa razão, arguida a inconstitucionalidade deste preceito, veio o Tribunal Constitucional no seu Acórdão nº 54/2022, não julgar “ inconstitucional a norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 48° do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (R.G.P.T.C.) em conjugação com o n.º 4 do artigo 738.º do Código do Processo Civil, quando interpretada no sentido de não estabelecer nenhuma diferenciação, fundada na natureza ou no montante dos rendimentos da pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos, e de não estabelecer como limite mínimo de aplicabilidade a preservação de montante equivalente ao valor do IAS.”

É certo que estes juízos explanados nos Acórdãos acima citados se referem à compatibilidade destas normas com a Constituição, não proibindo o tribunal de, no caso concreto, ajustar os descontos à real situação e necessidades dos progenitores e dos menores.

Mas, no caso em apreço, não basta que o progenitor venha invocar que se encontra a receber um subsídio de doença e que sobrevive com dificuldades, tendo em conta que este subsídio sofreu variações, sendo o valor agora fixado a partir de Dezembro, tem natureza temporária e não foi seguramente a causa do não pagamento das prestações vencidas antes do acidente de viação sofrido pelo progenitor e que os filhos, em especial o seu filho menor, igualmente carecem de sustento e que lhes seja assegurada uma vida condigna.

Não tendo sido alterado o montante da prestação devida e não existindo nenhuns elementos para considerar totalmente impenhorável quantia para além da assegurada pelo artº 738, nº 4 do C.P.C., improcede este argumento."

[MTS]