"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/10/2024

Jurisprudência 2024 (18)

Oposição à execução;
processo declarativo; falta de intervenção do réu

 
I. O sumário de RL 25/1/2024 (4118/19.8T8OER-A.L1-2) é o seguinte:

1. A fundamentação da sentença deve ser de facto – com indicação dos factos provados e não provados - e de direito – com a indicação, interpretação e aplicação das normas jurídicas correspondentes, e assenta no direito das partes a saberem as razões da decisão do tribunal, de modo a poderem avaliar a bondade da mesma e, se for caso disso, ponderar a sua impugnação, constituindo uma fonte de legitimação da decisão judicial.

2. A decisão sob recurso é nula por falta de fundamentação de facto, nos termos do art.º 615.º n.º 1 al. b) do CPC, ao não fazer o elenco dos factos que tem como assentes ou tidos como provados, limitando-se singelamente a afirmar a verificação ou não das exceções que aprecia e a indicar de forma conclusiva a norma jurídica correspondente.

3. O art.º 729.º do CPC ao elencar os casos em que pode haver lugar a oposição à execução quando esta se funda em sentença, prevê na sua al. d) que o executado pode opor-se quando tenha existido “Falta de intervenção do réu no processo de declaração, verificando-se alguma das situações previstas na alínea e) do artigo 696.” remetendo dessa forma para aqueles fundamentos do recurso de revisão.

4. Não estamos perante um caso em que há uma falta absoluta de intervenção da R. no processo declarativo onde foi proferida a sentença dada à execução, como é exigência do corpo da al. e) do art.º 696.º do CPC, quando a R. aí foi devidamente citada, tomando por isso conhecimento da ação que havia sido intentada contra si e até teve intervenção no processo, ainda que não tenha apresentado contestação.

5. A integração da subalínea iii) da al. e) do art.º 696.º do CPC exige que o R. não tenha podido apresentar contestação por motivo de força maior, conceito que, como a própria expressão indica, impõe que o evento causador de tal omissão não seja imputável à parte por estar fora do seu controle, podendo aplicar-se aqui o conceito de justo impedimento previsto no art.º 140.º do CPC.

6. Não configura um motivo de força maior para a não apresentação de contestação, a falta de conhecimento atempado da decisão da segurança social sobre o patrocínio judiciário requerido, notificada para morada que a R. indicou quando formulou o requerimento e que é a da sua sede, só tendo informado a segurança social que pretendia a notificação numa nova morada cerca de sete meses depois da formulação do pedido de proteção jurídica e quando já havia sido proferida decisão sobre ele.

7. O caso julgado, tal como a litispendência, tem como objetivo evitar que o julgador seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior, tal como dispõe o n.º 2 do mesmo artigo, ao que estão subjacentes razões de confiança e segurança dos cidadãos nas decisões judiciais, também no sentido de que uma vez decidida a questão a mesma fica definitivamente resolvida.

8. No que se refere à identidade da causa de pedir, importa avaliar os factos que foram alegados pelas partes e que suportam o pedido formulado na ação que já foi decidida e naquela que é proposta mais tarde, só havendo identidade de causa de pedir, nos termos do art.º 581.º n.º 4 do CPC, se os factos submetidos à apreciação do tribunal em ambas as ações forem essencialmente os mesmos. 

9. Não há identidade de pedido e de causa de pedir entre duas ações, ainda que o litígio se centre no mesmo contrato de compra e venda que foi celebrado entre as partes, quando: no primeiro processo, a A. vem pedir o cumprimento do contrato pela R. no sentido da sua condenação no pagamento do remanescente do preço acordado que não foi pago, tendo-se discutido também os factos alegados pela ali R. relativos aos defeitos dos bens, que não obstante se tenha apurado que existiram ficou também provado que foram substituídos ou reparados; no segundo processo, a A., R. na primeira ação, vem invocar factos novos e posteriores, que se reportam aos bens que foram substituídos e reparados, alegando que estes vieram posteriormente a apresentar os mesmos defeitos, pedindo a condenação da R. no pagamento de uma indemnização correspondente aos danos sofridos.

10. Os factos alegados pela A. na segunda ação não põem em causa, nem pretendem representar de uma forma diferente a situação contratual das partes já apreciada e decidida na primeira ação, antes correspondem a factos novos que surgem mais tarde ainda no desenvolvimento daquela relação contratual, não podendo dizer-se que correspondem ao núcleo essencial de factos que já haviam sido objeto de julgamento, o que revela a diversidade das causas de pedir.

11. Não é cometida qualquer irregularidade pelo tribunal quando envia à R. a notificação da sentença para a morada onde a mesma havia sido citada e corresponde à sua sede, exatamente conforme previsto no art.º 249.º n.º 1 e 5 do CPC, não obstante a carta tenha sido devolvida ao processo com a indicação de “mudou-se”, o que não obsta a que a notificação produza os seus efeitos, como estabelece o n.º 2 do referido artigo.


II. Na fundamentação do (multifacetado) acórdão escreveu-se o seguinte:

"IV. Razões de Direito

- do motivo de força maior para a não intervenção do Recorrente no processo declarativo

Alega a Recorrente que a sua falta de intervenção na ação declarativa onde foi proferida a sentença dada à execução ficou a dever-se a motivo de força maior, nos termos do art.º 696.º al. e) subalínea iii) e por via disso no art.º 729.º al. d) do CPC. Refere que o que determinou a falta de apresentação de contestação no processo declarativo onde foi proferida a sentença dada à execução, foi a falta de notificação tempestiva da Segurança Social da decisão de indeferimento do pedido de apoio judiciário que havia apresentado, o que deve ser encarado como motivo de força maior, que não lhe é imputável, nem aos seus representantes.

A decisão recorrida, relativamente a esta questão colocada pela Embargante, limitou-se a referir: “A embargante invoca fundamentos de recurso de revisão (CPC 696º/e)), mas o presente tribunal não é competente para os apreciar (CPC 697º/1.).”

Com esta decisão, que não pode deixar de considerar-se ter sido proferida com muita ligeireza e precipitação, o Exm.º Juiz a quo não teve em conta: em primeiro lugar, que o Embargante não veio interpor nenhum recurso de revisão da sentença, que coubesse apreciar; em segundo lugar, que aqueles fundamentos do recurso de revisão, são os mesmos que podem servir de base à oposição à execução, conforme prevê o art.º 729.º n.º 1 al. d) do CPC por remissão, que não foram por ele apreciados.

O art.º 729.º do CPC vem elencar os casos em que pode haver lugar a oposição à execução quando esta se funda em sentença, prevendo na sua al. d), na redação que lhe foi dada pela Lei 117/2019 de 13 de setembro, que o executado pode opor-se quando tenha existido “Falta de intervenção do réu no processo de declaração, verificando-se alguma das situações previstas na alínea e) do artigo 696.

O art.º 696.º do CPC diz respeito aos fundamentos do recurso de revisão, indicando de forma taxativa os casos em que a sentença transitada em julgado pode ser objeto de revisão e prevendo designadamente, para o que agora nos interessa, na sua al. e) que tal pode ocorrer quando:

 “e) Tendo corrido o processo à revelia, por falta absoluta de intervenção do réu, se mostre que:

i) Faltou a citação ou que é nula a citação feita;
ii) O réu não teve conhecimento da citação por facto que não lhe é imputável;
iii) O réu não pode apresentar a contestação por motivo de força maior;”

Avaliando este preceito legal, diz-nos com toda a clareza o Acórdão do TRP de 29 de setembro de 2021 no proc. 1250/20.9T8VLG-A.P1 in www.dgsi.pt : “Em tese geral, importa referir que o conceito de revelia relevante para efeitos do art. 696.º, n.º 1, do Código de Processo Civil designa a “falta absoluta de intervenção, por si ou por meio de representante, no processo em que foi proferida a sentença a rever” (José Alberto dos Reis, anotação ao art. 771.º em Código de Processo Civil anotado, vol. VI “apud” Acórdão do STJ de 8 de Abril de 2021, processo nº 3678/10.3TBCSC-A.L1.S1, em dgsi.pt, onde se citam ainda outras passagens similares do mesmo autor). Ora, como ficou dito na decisão recorrida e ressalta dos autos, não está em causa que essa intervenção, entendida de forma abrangente, incluindo não estar presente e também não se fazer representar, existiu; não se deve confundir a ausência de uma participação ativa com a impossibilidade dessa participação. Como se compreende, a parte pode não acudir ao processo o que não significa que nele não tenha podido estar presente; são realidades distintas. Essa impossibilidade parece afastada, desde logo, pela circunstância de o ora recorrente ter diligenciado, junto da Segurança Social pela concessão de apoio judiciário, face à interposição da ação em que veio a ser condenado; esta interveniência aparta a verificação da dita revelia absoluta independentemente do efeito que esse pedido tenha tido no destino do processo. (…) Não se ignora que a Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro, veio alterar os requisitos para que se intente o recurso de revisão densificando-o. Destarte, a alínea e) do artigo 696º do CPC expressamente indica os casos em que o réu não logrou apresentar a contestação por motivo de força maior (sub-alínea iii). Porém, nada se alterou no preceito quanto à existência de uma “falta absoluta de intervenção do réu” (…).”

Manifestamente, não estamos perante uma situação que possa enquadrar-se no âmbito do ponto iii) da al. e) do art.º 696.º e consequentemente no art.º 729.º al. d) do CPC, não se verificando este fundamento válido de oposição à execução, contrariamente ao invocado pela Embargante.

Senão vejamos

Se atentarmos nos factos apurados, verifica-se, que não estamos perante um caso em que há uma falta absoluta de intervenção da R. no processo declarativo em questão, como é exigência do corpo da al. e) do art.º 696.º do CPC.

Na ação declarativa onde foi proferida a sentença dada à execução a R. foi devidamente citada, tomando por isso conhecimento da ação que havia sido intentada contra si e até teve intervenção no processo, nele se apresentando a prestar a informação de que havia formulado junto da segurança social requerimento de proteção jurídica. O que aconteceu foi que a R. não apresentou contestação no processo para o qual foi citada, mas não pode dizer-se que nele não teve qualquer intervenção.

De qualquer modo, a integração desta norma impõe que o R. não tenha podido apresentar contestação por motivo de força maior, conceito que exige desde logo, como a própria expressão indica, que o evento causador de tal omissão não seja imputável à parte, por estar fora do seu controle, podendo aplicar-se aqui o conceito de justo impedimento previsto no art.º 140.º do CPC – neste sentido pronuncia-se também o citado Acórdão do TRP.

No caso, a situação relatada pela Embargante não configura um motivo de força maior para não ter apresentado contestação naquele processo. Pelo contrário, não pode deixar de reconhecer-se que, mesmo a considerar-se ter existido uma falta de conhecimento atempado da decisão da segurança social, tal lhe foi inteiramente imputável. Veja-se que quando requereu o benefício de apoio judiciário a morada que a R. indicou foi a da sua sede, para a qual foi inicialmente notificada, só tendo informado a segurança social de uma nova morada com pedido de notificação para a mesma, cerca de sete meses depois da formulação do pedido de proteção jurídica, quando já havia sido proferida decisão sobre ele e enviada notificação para a sua sede. É por isso da sua inteira responsabilidade a circunstância (alegadamente) de não ter recebido a notificação da segurança social sobre o pedido que apresentou e que lhe foi enviado.

Em conclusão, não há uma absoluta falta de intervenção da R. na ação declarativa onde foi proferida a sentença que serve de base à execução e a falta de apresentação de contestação em tal processo não encontra justificação em qualquer motivo de força maior, não se mostrando preenchido o pressuposto da parte final da al. e) do art.º 696.º do CPC e consequentemente do art.º 729.º al. d) do CPC, não podendo servir de fundamento à oposição à execução.

[MTS]