"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



24/10/2024

Jurisprudência 2024 (33)


Decisão arbitral;
impugnação; fundamentos


1. O sumário de STJ 22/2/2024 (111/23.4YRPRT.S1) é o seguinte:

I - Na impugnação duma sentença arbitral, “apenas” se podem invocar/discutir os vícios do percurso, do processo arbitral, que levou os árbitros até à sentença, assim como, atento o disposto nas subalíneas v) e vi) da alínea a) do art. 46.º/3, se podem invocar os vícios da condenação por excesso ou defeito e a falta de fundamentação.

II – Pelo que, sendo taxativos os fundamentos da impugnação de uma sentença arbitral, como claramente resulta do corpo do art. 46.º/3 da LAV, não pode “aproveitar-se” a instauração de tal impugnação para invocar outros e diversos fundamentos, designadamente fundamentos respeitantes ao “mérito” da sentença arbitral.

III – Dizendo-se na sentença arbitral que se irá acompanhar, na decisão da matéria de facto, o relatório pericial, mas transpondo-se incorretamente, por vários vícios de raciocínio, o que resulta do relatório pericial para o que factualmente foi sendo decidido pela sentença arbitral, ocorre um erro no julgamento de facto por parte da sentença arbitral: estamos perante uma sentença arbitral que está “errada” (e não perante uma sentença arbitral não fundamentada), “erro” este que, tendo a ver com o “mérito”, não pode sequer ser corrigido numa impugnação de sentença arbitral.

IV – Uma sentença arbitral mal fundamentada ou erradamente fundamentada, seja de facto ou de direito, não padece das nulidades/vícios referidos nas alíneas v) e vi) do art. 46.º/3/a) da LAV.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"II – Fundamentação [...]

II – B de Direito

Estamos numa ação de anulação de sentença arbitral, ação esta, de anulação, prevista no art.46.º da LAV (Lei da Arbitragem Voluntária aprovada pela Lei nº 63/2011, de 14 de dezembro).

Entre as partes correu termos uma prévia ação arbitral – para dirimir um litígio emergente da execução de um contrato de consórcio celebrado entre as partes para a exploração do Bingo das instalações do antigo Cinema ..., na cidade do ... – sendo da sentença (arbitral) proferida em tal ação arbitral que é intentada, pelo S. C. e Salgueiros, a presente ação de anulação.

Ação esta, de anulação, para que é competente um Tribunal da Relação (cfr. art. 59.º/1/g) da LAV), o que aconteceu, no caso, com a Relação do Porto que, em 1.ª Instância, conheceu da ação de anulação em que nos encontramos, indeferindo-a liminarmente, sendo deste indeferimento – decidido singularmente primeiro e em Conferência depois – que vem interposto o presente recurso de apelação (na medida em que, embora o recurso seja para o Supremo, sendo a decisão recorrida proferida em 1.ª Instância, cabe dela apelação – cfr. art. 644.º/1/a) do CPC), nos termos do art. 59.º/8 da LAV.

E começamos por fazer notar o meio processual em que nos encontramos – ação anulatória de sentença arbitral – por estar aqui, nas regras de tal ação anulatória, o fulcro do desfecho do presente recurso de apelação (como antes esteve o fulcro da decisão do Acórdão da Relação sob recurso).

Como no despacho de admissão liminar deste recurso se disse, “é necessário distinguir, no que diz respeito às sentenças arbitrais, entre a recorribilidade e impugnabilidade: se, por força do art. 39.º/4 da LAV, não há recurso para o tribunal estadual competente, salvo quando as partes, em relação às sentenças arbitrais proferidas segundo o direito constituído, dispuserem diferentemente na convenção ou em acordo posterior a ela, outro tanto não acontece quanto à possibilidade de impugnação, mesmo das sentenças ex aequo et bono, faculdade esta, de impugnação, de que as partes não podem sequer renunciar (salvo no caso do art. 46.º/4da LAV), sob pena de nulidade da renúncia (cfr. art. 46.º/5 da LAV)”.

Efetivamente, no que diz respeito às sentenças arbitrais, a regra legal (supletiva), em matéria de recursos, é a irrecorribilidade, na medida em que, de acordo com o disposto no art. 39.º/4 da LAV, “[a] sentença que se pronuncie sobre o fundo da causa ou que, sem conhecer deste, ponha termo ao processo arbitral, só é suscetível de recurso para o tribunal estadual competente no caso de as partes terem expressamente previsto tal possibilidade na convenção de arbitragem e desde que a causa não haja sido decidida segundo a equidade ou mediante composição amigável.”

Sendo que, no caso, como resulta da cláusula 14.ª do Contrato de Consórcio, as partes acordaram sujeitar a “apreciação e decisão de qualquer litígio emergente deste contrato (…) ao Tribunal arbitral”, o qual “julgará de acordo com a equidade”, sendo que “as decisões proferidas pelo Tribunal Arbitral constituirão caso julgado, não sendo assim suscetíveis de recurso, ao qual cada uma das partes expressamente renuncia”, ou seja, as partes não só não previram expressamente a possibilidade de recurso (previram, isso sim, o seu contrário), como previram que a causa arbitral fosse decidida segundo a equidade, pelo que afastada ficou a possibilidade de interporem recurso da sentença arbitral que aprecie e decida qualquer litígio emergente do contrato de consórcio celebrado entre as partes.

Daí que – e bem – o S. C. e Salgueiros, em vez de interpor recurso da sentença arbitral (recurso esse que, repete-se, seria inadmissível), tenha vindo apresentar, diretamente na Relação do Porto, a presente ação de anulação da sentença arbitral proferida em 08/03/2023 (processada autonomamente e não nos próprios autos do processo arbitral).

Mas, claro, podendo impugnar a sentença arbitral pela presente ação anulatória – na medida em que a regra legal (supletiva), em matéria de impugnação, é a impugnabilidade (cfr. art. 46.º/1 e 5 da LAV) – tal não significa, sendo taxativos os fundamentos da impugnação fixados na LAV (como claramente resulta do advérbio “só”, constante do corpo do art. 46.º/3 da LAV), que possa aproveitar tal impugnação para invocar outros e diversos fundamentos, designadamente os respeitantes ao “mérito” da sentença arbitral.

Caso fosse admissível recurso da sentença arbitral, seria o próprio “mérito” da sentença arbitral, o seu sentido, que seria colocado em causa: perante um erro in judicando, um erro de julgamento (de facto ou de direito), cometido pelos árbitros, o recorrente pediria que a sentença fosse revogada ou modificada.

Mas, estando em causa “apenas” a impugnação da sentença arbitral, não se pode invocar/discutir o “mérito” e o sentido da sentença arbitral: estando em causa a impugnação da sentença arbitral, “apenas” se podem invocar/discutir os vícios do percurso, do processo arbitral, que levou os árbitros até à sentença, assim como, atento o disposto nas subalíneas v) e vi) da alínea a) do art. 46.º/3, se podem invocar os vícios da condenação por excesso ou defeito e a falta de fundamentação; sendo que, verificado o vício invocado, o tribunal estadual não procede à substituição da sentença arbitral por outra de sentido diferente, antes se limitando a decretar, como consequência, a supressão da sentença arbitral da ordem jurídica (cfr. art. 46.º/9 da LAV).

Enfim, sintetizando, não podendo haver recurso da sentença arbitral proferida e sendo o “mérito” duma sentença arbitral apenas suscetível de ser discutido por via do recurso, isso significa que não se podem colocar e decidir pela via da impugnação questões respeitantes ao “mérito” da sentença arbitral proferida, sob pena de, a ser de outro modo, se desrespeitar a inadmissibilidade do recurso.

Convindo neste ponto salientar que a regra da inadmissibilidade do recurso da sentença arbitral proferida foi, como já se referiu, estabelecida pelas próprias partes na cláusula 14.ª do Contrato de Consórcio, ou seja, foram as próprias partes – o S. C. e Salgueiros e a Pauta de Flores – que estabeleceram que aceitariam e não discutiriam nos Tribunais Estaduais o “mérito” de uma sentença arbitral que dirimisse um qualquer litígio emergente da execução do contrato de consórcio celebrado.

E, claro, estamos a insistir neste ponto (como acima referimos, reside aqui o fulcro do desfecho da presente ação anulatória) por o que o S. C e Salgueiros repetidamente invoca – no pedido de retificação da primitiva sentença arbitral, na PI da presente ação anulatória, na reclamação para a Conferência e nas alegações da presente apelação – ter a ver com o “mérito” da sentença arbitral e não com vícios da condenação por excesso ou por defeito ou com a falta de fundamentação da sentença arbitral, ou seja, por o S. C e Salgueiros invocar algo que não cabe nos fundamentos que podem ser suscitados/decididos na impugnação da sentença arbitral.

Os poderes de conhecimento e decisão do Tribunal Estadual, na ação de impugnação da sentença arbitral, restringem-se, repete-se, aos fundamentos elencados no art. 46.º/3 da LAV, nada mais lhe sendo permitido conhecer/decidir a propósito da sentença arbitral, nomeadamente reexaminar todo o processo, corrigir os erros e preencher as omissões de facto ou de direito de que a sentença arbitral padeça e passar a proferir uma sentença de mérito sã sobre a causa (sentença que as partes, insiste-se sempre, convencionaram não ser suscetível de recurso para os Tribunais Estaduais, o mesmo é dizer, que as partes convencionaram não ficar sujeita à apreciação de mérito pelos Tribunais Estaduais).

Aliás, continuando a dizer a mesma coisa por diferente modo, não será despiciendo chamar a atenção para o já referido art. 46.º/9 da LAV, em que se diz expressamente que “o tribunal estadual que anule a sentença arbitral não pode conhecer do mérito da questão ou questões por aquela decidas, devendo tais questões, se alguma das partes o pretender, ser submetida a outro tribunal arbitral para serem por este decididas”, isto é, que situa a impugnação da sentença arbitral no campo da mera revisão e não no domínio do reexame da causa/pedido, o que faz com que seja a própria sentença estadual anulatória, caso se pronuncie sobre o mérito da sentença arbitral, a incorrer em nulidade (por se pronunciar sobre questão de que não pode conhecer – art. 615.º/1/d)/2.ª parte do CPC).

E estamos com todos estes “rodeios” e explicações para que fique finalmente claro que, tendo o invocado pelo S. C. e Salgueiros a ver com o “mérito”, não podemos decidir sobre tal “mérito” e, em consequência, não podemos corrigir o erro de julgamento em que incorreu a sentença arbitral.

Tendo em vista mostrar que estava a respeitar os fundamentos taxativos de impugnação fixados na LAV (no já referido art. 46.º/3 da LAV), o S. C. e Salgueiros qualificou o que invocou como configurando vícios de condenação por excesso ou por defeito e como vício de falta de fundamentação, porém, o que invocou é claramente um erro do julgamento de facto da sentença arbitral.

Repare-se:

Começava por estar em causa, na ação arbitral, saber se o contrato de consórcio celebrado entre as partes havia ou não sido resolvido pela Pauta Flores e, a tal propósito, a sentença arbitral concluiu, primeiro, que a Pauta Flores resolveu o contrato e, depois, que o fez ilicitamente; após o que a sentença arbitral considerou, não obstante tal ilicitude, que a resolução produziu os seus efeitos (foi eficaz), passando então o S. C. e Salgueiros, de acordo com o decidido na sentença arbitral, a ter o “direito a ser indemnizado, equivalendo a indemnização ao que seria devido ao credor se o contrato continuasse a vigorar e a ser executado” ou, mais exatamente, segundo concretização também efetuada na sentença arbitral, a ser “devida ao S. C e Salgueiros a meação dos lucros auferidos pela Pauta Flores na atividade de exploração do Bingo levada a cabo por esta sociedade isoladamente nos anos de 2016 e 2017”.

Estabelecido/decidido tal aspeto jurídico do litígio, passava então a estar em causa a liquidação da participação do S. C e Salgueiros no resultado líquido do Consórcio – sabido que a cláusula 9.ª do Contrato de Consórcio fixava tal participação em 50% – mais exatamente o acerto da participação do S. C. e Salgueiros no período da execução contratual (entre 2012 e a produção dos efeitos resolutivos em meados de março de 2016) e o cálculo da indemnização ao S. C e Salgueiros (de meados de março de 2016 ao final de 2017), ou seja, no fundo e em termos práticos, passava a estar em causa o cálculo do resultado líquido do consórcio durante 6 anos, sendo que 50% de tal montante seria o direito do S. C. e Salgueiros, pelo que, caso já tivesse recebido quantia superior, seria a Paula Flores credora da diferença e, caso a quantia recebida fosse inferior, seria o S. C e Salgueiros credor da quantia necessária a perfazer os 50% a que tinha direito.

E foi sobre isto – sobre tal tarefa de liquidação – que se ocupou a maior parte da sentença arbitral, ou seja, sem que se possa dizer que a mesma padece de falta de fundamentação e/ou que haja incorrido em condenação por excesso ou por defeito.

O que claramente sucedeu foi que a sentença arbitral se equivocou em raciocínios que fez para estabelecer a liquidação da participação do S. C e Salgueiros no resultado líquido do contrato de consórcio e para, depois, estabelecer o crédito do S. C. e Salgueiros.

E este Supremo (como antes a Relação) não pode, como já se referiu, decidir/corrigir – se o fizesse, estaria a incorrer na nulidade do art. 615.º/1/d)/2.ª parte do CPC – um erro no julgamento da matéria de facto cometido pela sentença arbitral, porém, para melhor explicarmos ao A./recorrente o motivo por que a presente impugnação estava ab initio condenada ao fracasso, ousamos “no limite de tal nulidade” afirmar que a sentença arbitral se equivocou em vários dos raciocínios que fez para estabelecer a liquidação da participação do S. C e Salgueiros no resultado líquido do contrato de consórcio e para, depois, estabelecer o crédito do S. C. e Salgueiros; e podemos fazê-lo por ser a própria sentença arbitral a dizer, por várias vezes, que seguiu, na decisão de facto, o relatório subscrito pelo perito presidente (e pelo perito do S. C e Salgueiros) e tão só o fazemos com o objetivo, repete-se, de melhor explicar, ao justificar tal afirmação, que o que o recorrente invoca é um erro do julgamento de facto da sentença arbitral (e sendo um erro do julgamento de facto não configura vícios de condenação por excesso ou por defeito e/ou vício de falta de fundamentação)."

[MTS]