"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



08/10/2024

Jurisprudência 2024 (21)

 
Processo penal;
arresto preventivo; impugnação
 
 
1. O sumário de RP 25/1/2024 (13738/15.9T9PRT-K.P1) (decião individual) é o seguinte:

I – As regras que presidem à apreciação do pedido de arresto formulado no processo penal e, bem assim, naturalmente, a eventual aposição àquele, são as regras do processo civil.

II – Todavia, vem sendo entendido que tal não significa que se apliquem as normas do processo civil aos trâmites processuais que não tenham especificidade própria do procedimento cautelar, os quais são determinados pelo processo penal.

III – Daqui decorre que as regras aplicáveis ao recurso interposto da decisão do arresto ou da oposição ao arresto são as consagradas no processo penal, pois é este que desenha o tal travejamento basilar do regime jurídico do arresto como medida de garantia patrimonial.

IV – Ora, nas regras pertinentes ao recurso inclui-se naturalmente o prazo em que o arrestado pode recorrer, mas já não as regras que ditam a admissibilidade do recurso, por se tratar de uma especificidade própria do processamento do procedimento cautelar, com norma específica, por motivos que se prendem com a construção processual da providencia, quando o arrestado não foi ouvido e fez uso de outro meio de defesa.

V – Porém, os arrestados não podem simultaneamente interpor recurso e deduzir oposição do despacho que decretou o arresto.

VI – E, atenta a diversidade de regimes de recurso relativamente à decisão que decretou o arresto e à decisão que decide a oposição ao arresto, e dado não haver dúvidas que a decisão de oposição ao arresto é passível de recurso e, ainda, que nesse recurso se podem compreender as questões suscitadas também pela decisão inicial ou que decretou o arresto, não se vislumbra que sejam preteridos direitos do arguido/arrestado/reclamante ou que haja qualquer interpretação inconstitucional, que também não foi argumentada.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A questão a decidir é a de saber se é de manter a rejeição do recurso interposto da decisão inicial de arresto, sem que os arrestados hajam sido ouvidos antes do decretamento da providência, com base no disposto no artigo 372º, n.º 1 do CPC, atento o entendimento sufragado pelo tribunal de que o arguido preventivamente arrestado não pode usar simultaneamente a oposição ao arresto e o recurso dessa decisão.
 
Vejamos.
 
Decorre dos autos que os arrestados/reclamantes não foram ouvidos previamente ao decretamento do arresto. E ainda que, após notificação da decisão de arresto deduziram oposição.
 
Passemos à questão.
 
Dispõe, o artigo 10º da lei 5/2002 de 11.01, que «em tudo o que não contrariar o disposto na presente lei é aplicável ao arresto o regime do arresto preventivo previsto no código de processo penal.»
 
Dispõe o artigo 228º, n.º 1 do CPP que «a requerimento do Ministério Público ou do lesado, pode o juiz decretar o arresto, nos termos da lei do processo civil...».
 
Resulta desta disposição que as regras que presidem à apreciação do pedido de arresto formulado no processo penal e, bem assim, naturalmente a eventual aposição àquele, são as regras do processo civil.
 
Todavia, vem sendo entendido que tal não significa que se apliquem as normas do processo civil aos trâmites processuais que não tenham especificidade própria do procedimento cautelar, os quais são determinados pelo processo penal.
 
Tendo essencialmente em atenção que «o arresto preventivo é uma medida de garantia patrimonial de natureza processual penal, aplicada de acordo com o disposto no CPP, sendo subsidiariamente aplicável a lei do processo civil em tudo o que o código não preveja e se harmonize com os princípios gerais do processo penal.”
[Manuel da Costa Andrade/ Maria João Antunes, “Da natureza processual penal do arresto preventivo” RPCC, 27, I. pág. 137.] [2] Como decorre do mesmo estudo, a pág. 144: «As normas da lei processual civil terão (…) de ser aplicadas sem pôr em causa nem contrariar as imposições de direito processual penal. Direito a que cabe: definir o lugar do arresto preventivo na tipologia dos meios coercivos, em geral, e das medidas de garantia patrimonial em particular, precisar a sua intencionalidade e programa político criminal e desenhar o travejamento basilar do respetivo regime jurídico.»]
 
 
Daqui decorre que as regras aplicáveis ao recurso interposto da decisão do arresto ou da oposição ao arresto são as consagradas no processo penal, pois é este que desenha o tal travejamento basilar do regime jurídico do arresto como medida de garantia patrimonial.
 
Ora, nas regras pertinentes ao recurso inclui-se naturalmente o prazo em que o arrestado pode recorrer, mas, no caso concreto, já não as regras que ditam a admissibilidade do recurso, por se tratar de uma especificidade própria do processamento do procedimento cautelar, com norma específica, por motivos que se prendem com a construção processual da providencia, quando, como é o caso, o arrestado não foi ouvido e fez uso de outro meio de defesa.
 
Como decorre do n.º 1 do artigo 372º do CPC:
 
1 - Quando o requerido não tiver sido ouvido antes do decretamento da providência, é-lhe lícito, em alternativa, na sequência da notificação prevista no n.º 6 do artigo 366.º:
a) Recorrer, nos termos gerais, do despacho que a decretou, quando entenda que, face aos elementos apurados, ela não devia ter sido deferida;
b) Deduzir oposição, quando pretenda alegar factos ou produzir meios de prova não tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da providência ou determinem a sua redução, aplicando-se, com as adaptações necessárias, o disposto nos artigos 367.º e 368.º.
 
Por sua vez, o n.º 3 do mesmo artigo dispõe:
 
3 - No caso a que se refere a alínea b) do n.º 1, o juiz decide da manutenção, redução ou revogação da providência anteriormente decretada, cabendo recurso desta decisão, e, se for o caso, da manutenção ou revogação da inversão do contencioso; qualquer das decisões constitui complemento e parte integrante da inicialmente proferida.
 
Vejamos o que pretendeu o legislador com estas disposições para cabalmente dar resposta às dúvidas - inconstitucionalidades(?) - que sobressaem nesta reclamação.
 
Fazendo apelo ao Sr. Conselheiro Lopes do Rego
[Cf. Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2ª edição, 2004, Almedina, p. 356 e 357]:
 
Diz-nos o Sr. Conselheiro, na vigência do artigo 388º do CPC anterior que, compulsado, é nas disposições transcritas em tudo idêntico ao atual artigo 372º do CPC: «... se o requerido não foi ouvido antes do decretamento da providencia, conserva naturalmente tal direito “geral” ao recurso – que terá como função a reapreciação da decisão recorrida, sem naturalmente envolver, como é típico do nosso sistema de recursos, a apreciação de “matéria nova”.
 
Pretendendo o requerido, não oportunamente ouvido, exercer o direito de defesa de que ficou privado, trazendo à colação novos factos ou meios de prova não valorados pelo tribunal, tendentes a afastar os fundamentos da providencia ou a determinar a sua redução aos “justos limites”, é-lhe facultada a dedução superveniente da defesa, em prazo contado da notificação da decisão que decretou a providência (...) a tramitação da oposição “superveniente”, prevista neste preceito, obedece estritamente ao estatuído acerca do formalismo da oposição que teria sido pertinente deduzir no momento próprio, se tivesse ocorrido prévia audição do requerido; (...).
 
O sistema instituído visa evitar que a parte tenha o ónus de lançar mão simultaneamente do recurso (...) e do exercício da oposição subsequente, sempre que entenda que concorrem os pressupostos das alíneas a) e b) do nº 1 deste preceito – com o inconveniente manifesto de questões, muitas vezes conexas, estarem simultaneamente a ser reapreciadas na 1ª instância e na Relação.
 
Daí que, verificando-se os fundamentos da oposição, traduzidos na invocação de matéria nova, deva a parte começar por deduzi-la, aguardando a prolação da decisão que a aprecie, que se considera “complemento e parte integrante” da sentença inicialmente proferida: e abrindo-se, só neste momento, a via do recurso, relativamente a todas as questões suscitadas, quer pela decisão originária, quer pela que a completa ou altera
 
Com efeito, uma vez que foi deduzida oposição ao arresto decretado a decisão proferida «é uma mera “decisão provisória insuscetível de constituir caso julgado que precluda a ulterior apreciação jurisdicional da oposição deduzida supervenientemente pelo requerido, constituindo a segunda decisão complemento ou parte integrante da primeira, pelo que – emitida esta – o procedimento passa a ter uma decisão unitária. Deduzida oposição nestes termos, e sendo admissível recurso desta segunda decisão, proferida sobre a oposição, o seu objeto pode compreender a impugnação pelo requerido dos fundamentos da decisão inicial que decretou a providência.
[Cf. Ac. do STJ de 06.07.2000, CJ/STJ, 2000, 2º, págs. 153 a 155]»
 
Resulta assim claro que os arrestados não podem simultaneamente interpor recurso e deduzir oposição do despacho que decretou o arresto. Resultam claras as razões da construção legal da disposição no seu todo. [...]
 
Temos assim, por clara a inadmissibilidade do recurso, neste momento."

MTS