"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



22/10/2024

Jurisprudência 2024 (31)

 
Dupla conforme;
"
segmento decisório autónomo e cindível"*
 
 
1. O sumário de STJ 8/2/2024 (8223/17.7T6CBR.C1.S1) é, na parte agora relevante, o seguinte:

I. Transpondo o critério aprovado no acórdão de uniformização de jurisprudência de 20 de Setembro de 2022, www.dgsi.pt, proc. n.º 545/13.2TBLSD.P1.S1-A, segundo o qual a dupla conforme deve ser aferida relativamente a cada segmento decisório autónomo, para um recurso de revista no qual se questiona a validade de diversas cláusulas contratuais integrantes de um contrato de seguro de grupo não contributivo, ramo vida, cumpre avaliá-la separadamente para as cláusulas cuja validade foi objecto de decisões cindíveis – isto é, não interdependentes –, tenham ou não sido levadas formalmente à parte decisória da sentença e do acórdão recorrido, desde que integrem o objecto do recurso, tal como foi definido pela recorrente nas conclusões das suas alegações.

II. As nulidades atribuídas pela recorrente ao acórdão recorrido apenas poderão ser apreciadas se a revista for admissível.

III. Não há dupla conforme impeditiva da revista quando as decisões das instâncias assentam numa concepção radicalmente diferente sobre o papel dos contratantes num seguro de grupo e, em consonância com essa concepção, sobre os deveres da seguradora e do tomador do seguro, relativamente ao aderente/beneficiário, no que toca à comunicação das cláusulas que integram o contrato.

IV. Há dupla conforme relativamente a uma cláusula julgada nula por ambas as instâncias, por unanimidade, na Relação, e pelo mesmo fundamento.

V. Só há nulidade por omissão de pronúncia quando o tribunal deixa conhecer de questões que estivesse obrigado a apreciar; não quando não considera argumentos trazidos pelas partes para sustentar a sua posição quanto a essas questões. Esta regra, definida a propósito da sentença, é aplicável à 2.ª instância e não é alterada pela definição do objecto do recurso, mas é afastada quando a sua decisão ficar prejudicada.

VI. Para efeitos de prova da incapacidade, quer uma Perícia Médico-Legal, quer um Atestado Médico de Incapacidade Multiusos, estão sujeitos à regra da livre apreciação da prova pelo tribunal. [...].

 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"4. Antes do mais, cumpre verificar se o presente recurso é admissível. O recorrido sustenta a sua inadmissibilidade, por se verificar o obstáculo da dupla conformidade entre as decisões das instâncias (n.º 3 do artigo 671.º do Código de Processo Civil).

Nas alegações de recurso, a recorrente explica por que razão considera não existir tal obstáculo; não é assim necessária a sua notificação para responder antes de decidir.

Sobre o que se se deve entender por dupla conforme entre as decisões das instâncias, impeditiva do recurso de revista, nos termos do n.º 3 do artigo 671.º do Código de Processo Civil, foi aprovado o acórdão de uniformização de jurisprudência de 20 de Setembro de 2022, www.dgsi.pt, proc. n.º 545/13.2TBLSD.P1.S1-A que, embora tirado no âmbito de uma açcão de indemnização, revela uma concepção segundo a qual a dupla conforme deve ser aferida relativamente a cada segmento decisório autónomo.

Transpondo essa concepção para esta acção, dever-se-á proceder a essa aferição relativamente às diversas cláusulas contratuais que foram objecto de decisões cindíveis (isto é, não interdependentes), desde que, naturalmente, integrem o objecto do recurso, tal como foi definido pela recorrente nas conclusões das suas alegações.

As nulidades atribuídas pela recorrente ao acórdão recorrido apenas poderão ser apreciadas se a revista for admissível.

Analisadas tais conclusões, verifica-se que a recorrente pretende que o Supremo Tribunal de Justiça conheça das seguintes questões:

– nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia (concl. I, IV), falta de fundamentação (concl. X) e excesso de pronúncia (concl. XIII);

– valor probatório do “documento de incapacidade atribuído pela segurança social” (concl. II) e admissibilidade das presunções referidas na concl. XVI;

– Falta de fundamentação relativa aos pontos de facto n.º 57, 58 e 59, e devolução à Relação para que “os aprecie com base nas alegações que o recorrente efectuou no recurso de apelação”, cumprindo o n.º 5 do artigo 607.º do Código de Processo Civil (concl. III);

– erro de julgamento quanto às demais questão de mérito.

No presente caso, só se coloca a questão da eventual dupla conformidade quanto às decisões sobre a questão de mérito; no fundo, sobre as cláusulas analisadas pelas instâncias, tenham ou não sido levadas formalmente à parte decisória da sentença e do acórdão recorrido.

É certo que coincide a condenação da ora recorrente no pagamento da indemnização – recorde-se que a apelação foi julgada improcedente – e que as mesmas cláusulas foram apreciadas, tendo-se decidido que não integravam o contrato que se considerou vincular o autor, e que o acórdão recorrido foi votado por unanimidade; mas é igualmente certo que difere a fundamentação que levou à exclusão das cláusulas de 2013, cumprindo indagar se essa diferença é ou não essencial, na acepção do n.º 3 do artigo 671.º do Código de Processo Civil; ou seja, como o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido, se, no que é essencial, se a fundamentação acolhida na sentença e no acórdão recorrido para desconsiderar essas cláusulas de 2013 difere.

Como se escreveu no acórdão deste Supremo Tribunal de 28 de Maio de 2015, cuja doutrina se mantém, “Na verdade, temos entendido que só pode considerar-se existente uma fundamentação essencialmente diferente quando a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado, de modo radicalmente ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada – ou seja, quando tal acórdão se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1ª instância (Ac. de 19/2/15, proferido pelo STJ no P. 302913/11.6YIPRT.E1.S1)”.

Ora, no que toca às cláusulas introduzidas em 2013 que ambas as instâncias consideraram não poderem integrar o contrato que vale relativamente ao autor, a sentença considerou-as excluídas do contrato com fundamento em não lhe terem sido comunicadas pela ré seguradora, porque era sobre a ré seguradora que, a título principal, competia a comunicação e informação ao autor.

Já no acórdão recorrido, por se divergir do entendimento acabado de transcrever, considerando tais cláusulas não excluídas do contrato por falta de comunicação pela seguradora, conheceu-se da “pretensão deduzida pelo mesmo [autor] sob a al. d) do petitório”, qualificada como pedido subsidiário, e julgaram-se as cláusulas nulas, por serem abusivas.

Não se entende que se trate de um pedido subsidiário, isto é, a ser apreciado apenas se o pedido principal for julgado improcedente (n.º 1 do artigo 554.º do Código de Processo Civil); a interpretação da al. D) vai antes no sentido de conter uma causa de pedir alternativa; o que, todavia, não releva para saber se ocorre ou não dupla conforme.

Entende-se que não ocorre dupla conforme impeditiva da revista, quanto a estas cláusulas. As decisões das instâncias assentam numa concepção radicalmente diferente sobre o papel dos contratantes num seguro de grupo e, em consonância com essa concepção, sobre os deveres da seguradora e do tomador do seguro, relativamente ao aderente/beneficiário, no que toca à comunicação das cláusulas que integram o contrato."
 

 *3. [Comentário] a) O Ac. STJ 7/2022, de 18/10, uniformizou jurisprudência no seguinte sentido: 

«Em acção de responsabilidade civil extracontratual fundada em facto ilícito, a conformidade decisória que caracteriza a dupla conforme impeditiva da admissibilidade da revista, nos termos do artigo 671.º, n.º 3, do CPC, avaliada em função do benefício que o apelante retirou do acórdão da Relação, é apreciada, separadamente, para cada segmento decisório autónomo e cindível em que a pretensão indemnizatória global se encontra decomposta.»

O decidido no acórdão de uniformização é aceitável no caso concreto que o motivou: era pedida uma indemnização global, mas havia distintos danos patrimoniais e danos não patrimoniais, pelo que, no fundo, o que o STJ fixou foi que, num caso de cumulação de pedidos, a dupla conforme é aferida autonomamente para cada um desses pedidos. A bondade da solução é muito mais discutível se a mesma é transposta para (i) uma acção respeitante a uma indemnização (unitária) por acidente de trabalho e (ii) para cada um dos segmentos decisórios de uma sentença ou de um acórdão.

No caso concreto de que se ocupou o acórdão, as consequências não são desastrosas, porque, como nele se refere, pode dizer-se que as decisões das instâncias, apesar de concordantes na condenação das demandadas, têm uma fundamentação essencialmente distinta. Noutros termos: no caso, não estava preenchido o critério do art. 671.º, n.º 3, CPC. 

A solução que consta do acórdão uniformizador torna-se, no entanto, particularmente discutível se ela vier a ser aplicada a "cada segmento decisório autónomo e cindível" de todo e qualquer acórdão da Relação que confirme a decisão da 1.ª instância. Passar a discutir em cada recurso de revista interposto nessas condições o que no acórdão recorrido é "segmento decisório autónomo e cindível" é complicar ainda mais um filtro de acesso ao STJ que, em si mesmo, é muito discutível, dado que o que devia ser apreciado no plano normativo passa então a ser apreciado no plano casuístico.

b) O que consta do sumário quanto ao valor probatório do Atestado Multiusos foi ultrapassado pelo decidido no (aliás, discutível) Ac. STJ 8/2024, de 25/6.

MTS