Prazo de prescrição;
queixa-crime
I–A aplicação do alargamento do prazo prescricional previsto no n.º 3 do art.º 498º do Cód. Civil não está dependente de, previamente, ter sido ou não exercido o direito de queixa, ter havido ou não processo crime ou de o lesante ter sido ou não condenado pela prática do respectivo crime, assim como não impede a aplicação daquele preceito o facto de o processo-crime ter sido arquivado (por qualquer motivo) ou amnistiado.
II–A razão de ser de tal alargamento do prazo prescricional assenta apenas na especial qualidade e gravidade do facto ilícito. Por isto, para a verificação de tal alargamento, é mister que se alegue e prove na acção cível que os factos que são imputados ao lesante integram, em abstracto, determinado tipo criminal.
III–No caso, a apresentação da queixa-crime apresentada pela autora/lesada interrompe o prazo prescricional previsto quer no n.º 1, quer no n.º 3, do art.º 498º do Código Civil.
IV–O prazo assim interrompido reiniciou-se com o trânsito em julgado do despacho de acusação.
V–A pendência do processo-crime (inquérito) como que representa uma interrupção contínua ou continuada (ex vi, do art.º 323., n.º 1 e 4, do Cód. Civil), quer para o lesante, quer para aqueles que (…) com ele são solidariamente responsáveis pela reparação dos danos, interrupção esta que cessará naturalmente quando o lesado for notificado da acusação ou arquivamento (despacho final) do processo-crime instaurado.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"No saneador-sentença objecto de recurso a Exma. Juiz a quo, depois de defender - e bem -, com respaldo em expressiva jurisprudência, que ao caso vertente tem aplicação o prazo alargado de prescrição de 5 (cinco) anos, uma vez que o facto gerador de responsabilidade civil constitui crime (de ofensa à integridade física por negligência) e que a prescrição do respectivo procedimento penal está sujeita a esse mesmo prazo dilatado - artigos 118.º, n.º 1, alínea c) e 148.º do Cód. Penal), afastando, assim, o prazo geral de 3 (três) anos, e que enquanto está pendente inquérito-crime pela prática dos concernentes factos deve considerar-se interrompido o prazo de prescrição do direito à indemnização, por esses mesmos factos, não começando a correr, quer quanto ao lesante, quer relativamente aos que com ele são civilmente responsáveis, antes de terminar a fase de inquérito (quer ela finde com um arquivamento ou com uma acusação), pois só depois dessa decisão do Ministério Público é que lhe é permitido demandar incondicionalmente aqueles que considera terem responsabilidade civil por tais factos, acabou por considerar, certamente por lapso, que se afigura ostensivo, que o direito da Autora já se encontrava prescrito por já terem decorrido mais de 3 (três) anos quando foi intentada a presente acção (10/03/2020) contados da notificação da acusação à Autora (25/01/2016).
Acontece que no caso em apreço é aplicável o prazo alargado de 5 (cinco) anos, pelos fundamentos que a própria Exma. Juiz a quo melhor desenvolve na sentença recorrida os quais sufragamos e damos aqui por reproduzidos, por economia.
E porque assim é, como se refere na Decisão Singular sob reclamação, a outra conclusão se deveria ter chegado na sentença recorrida, pois sendo de aplicar o prazo mais alargado de 5 (cinco) anos e tendo a acusação sido notificada à Autora em 25/01/2016, estava a mesma habilitada a exercer o seu direito à indemnização até 25/01/2021, sendo que só então o mesmo se extinguiria, por decurso do referido prazo prescricional. Com efeito, no caso em apreço o prazo de prescrição não começou a correr enquanto não findou o procedimento criminal iniciado, por se tratar de ofensas à integridade física por negligência, com a queixa apresentada pela ofendida/lesada, ora Reclamada [artigo 148.º, n.ºs 1 e 4, do Cód. Penal].
Defende a seguradora Recorrida, ora Reclamante, que na Decisão Singular se incorreu em erro de interpretação e de aplicação dos artigos 498.º, n.ºs 1 e 3, do Código Civil e 72.º e 77.º do Código de Processo Penal, por entender que o cômputo do prazo de prescrição se iniciou na data do sinistro [16/11/2011] e que, por isso, o respectivo prazo de 5 anos já havia decorrido aquando da sua citação, em 27/05/2020, ou seja, que o suposto direito da Reclamada já estava prescrito desde 16/11/2016.
Argumenta, para o efeito, que o período de tempo durante o qual esteve pendente o processo-crime não releva para o cômputo do prazo de prescrição, isto é, não interrompe a sua contagem, atento o princípio geral da adesão obrigatória da acção cível à acção penal expresso no artigo 72.º do Cód. Proc. Penal e uma vez que a Reclamada não formulou pedido de indemnização civil naquele processo, nos termos do art.º 77.º do mesmo diploma legal.
Refere, ainda, a Reclamante, que a Decisão Singular em crise está em contradição com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/10/2012, proferido na Revista n.º 198/06.4TBFAL.E1.S1, 1ª Secção, Relator Conselheiro Moreira Alves, disponível em www.dgsi.pt, com o seguinte sumário:
«I- Para o exercício do direito de indemnização, resultante de responsabilidade extracontratual, o lesado pode sempre intentar a acção cível para além do prazo normal de três anos, previsto no art.º 498.º, n.º 1, do CC, desde que alegue e prove, naquela acção, que a conduta do lesante constitui, no caso concreto, determinado crime, cujo prazo de prescrição seja superior.II- A aplicação do alargamento do prazo prescricional, prevista no n.º 3 do art.º 498.º do CC, não está dependente de, previamente, ter corrido processo-crime ou da existência de condenação penal, assim como não impede a acção cível, o facto de o processo-crime ter sido arquivado ou amnistiado.III- O prazo durante o qual esteve pendente o processo-crime, não deve contar-se para o cômputo da prescrição, dado o princípio geral da adesão obrigatória da acção cível à acção penal.»
Dizer, antes de mais, que não assiste razão à Reclamante e que não existe qualquer contradição entre a Decisão Singular e a orientação doutrinária e jurisprudencial seguida pelo Supremo Tribunal de Justiça (doravante “S.T.J.”), que julgamos maioritária.
É claro que a aplicação do alargamento do prazo prescricional a que se refere o n.º 3 do artigo 498.º do Cód. Civil, não está dependente de, previamente, ter corrido processo-crime, e muito menos da existência de condenação penal, assim como não impede a acção cível, o facto de o processo-crime ter sido arquivado, ou amnistiado. A aplicação do referido prazo largado de prescrição do direito de indemnização depende apenas da mera possibilidade da subsunção dos factos à previsão da norma penal [Cfr., entre outros Acs. do STJ de 13.11.1990 e 06.10.2005 In BMJ, 401º, 563 e www.dgsi, respectivamente, e Ac. do TRE, de 30/11/2006, CJ, 2006, Tomo 5.º-252 e, ainda, Pires de Lima e Antunes Varela, notas ao artigo 498.º in Cód. Civil Anotado]
E que o lesado, apesar disso, pode sempre intentar a acção cível para além do prazo normal de 3 anos, desde que alegue e prove, na acção civil, que a conduta do lesante constitui, no caso concreto, determinado crime, cujo prazo de prescrição é superior aos 3 anos consignados no n.º 1 do preceito.
Tal alegação e prova é pressuposto essencial e necessário da improcedência da excepção de prescrição que o réu tenha suscitado, como no caso a Ré suscitou.
Nas alegações da Reclamante suscita-se a questão de saber se a Autora/Reclamada estava obrigada, por força do princípio da adesão obrigatória da acção cível à acção penal expresso no artigo 72.º do Cód. Proc. Penal, a formular pedido de indemnização civil no processo-crime.
A resposta só pode ser negativa, porquanto estão em causa dois crimes de semi-públicos [ofensa à integridade física por negligência] cujo procedimento criminal teve por base uma queixa formulada pela Autora junto do M.º P.º e das autoridades policiais competentes, na qualidade de ofendida/lesada.
A propósito desta questão e da questão da interrupção da prescrição durante a pendência do processo-crime, veja-se, por expressivo, o Acórdão do S.T.J., de 22/01/2004, CJ/STJ, Tomo I- 37, com o seguinte sumário:
“I- Pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo (princípio da adesão) só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei – art.º 71.º do CPP. Daí que, em princípio, se haja de admitir que o prazo de prescrição não corre enquanto pender a acção penal, nos termos do disposto no art.º 306.º, n.º 1, do Cód. Civil.II-Tendo sido instaurado processo-crime contra o lesante pela alegada prática de um crime semi-público (ofensas corporais por negligência) mediante a apresentação oportuna da competente queixa por parte do lesado, torna-se patente que o lesado manifestou, ainda que de forma indirecta, a sua intenção de exercer o direito a ser indemnizado pelos danos que lhe foram causados pelo arguido/lesante.III-A pendência do processo-crime (inquérito) como que representa uma interrupção contínua ou continuada (ex vi, do art.º 323., n.º 1 e 4, do Cód. Civil), quer para o lesante, quer para aqueles que (…) com ele são solidariamente responsáveis pela reparação dos danos, interrupção esta que cessará naturalmente quando o lesado for notificado do arquivamento (ou despacho final) do processo-crime adrede instaurado.IV-Não é razoável que o início da contagem do prazo prescricional para o exercício do direito de indemnização possa ocorrer durante a pendência do inquérito.V- Só depois de esgotadas as possibilidades de punição criminal ficará o lesado habilitado a deduzir, em separado, a acção de indemnização, face ao disposto no n.º 1 do art.º 306.º do Cód. Civil. - «o prazo de prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido».VI-Com a participação dos factos (em abstracto criminalmente relevantes) ao Ministério Público ou às entidades policiais competentes, se interromperá o prazo de prescrição contemplado no n.º 1 do art.º 498.º do Cód. Civil, não começando, de resto, a correr enquanto se encontrar pendente o processo penal impeditivo da propositura da acção cível em separado (…).” [No mesmo sentido, o Ac. do TRP, de 01/12/2014, proc. n.º 41/13.8T2SVV-A.P1, disponível em www.dgsi.pt.]
Com efeito, no caso dos autos está apenas em causa a prática de dois crimes de ofensa à integridade física por negligência, p. p. pelo artigo 148.º, n.º 1, do Cód. Penal, cujo procedimento criminal depende de queixa do ofendido/lesado (art.º 148.º, n.º 4, do Cód. Penal).
No âmbito do direito processual penal (artigo 71º), encontra-se consagrado o princípio de adesão, nos termos do qual o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.
Ora, a alínea c) do n.º 1 do artigo 72º do CPP admite a reclamação de indemnização cível, decorrente do facto criminoso, fora do processo penal, quando “o procedimento depender de queixa ou de acusação particular”.
Tudo visto, é de concluir que o direito de indemnização da Autora não se encontrava prescrito quando esta propôs, em 10/03/2020, a presente acção cível, quer se perfilhe o entendimento maioritário da nossa jurisprudência, que considera que o inicio do cômputo do prazo de prescrição - no caso de 5 (cinco) anos - se dá com o encerramento do inquérito-crime, que ocorre com a definitividade (“trânsito em julgado”) do despacho de arquivamento ou de acusação ou de pronúncia/não pronúncia, após a sua notificação ao arguido e/ou ofendido/assistente, por aplicação do critério definido no art.º 306º, nº 1 do Cód. Civil [No caso, a Autora/Reclamada foi notificada da dedução da acusação em 25/01/2016, pelo que a seguir-se o referido critério a prescrição apenas ocorreria em 25/01/2021], quer se considere, como a Autora/Recorrente/Reclamada parece defender, que o início do computo do prazo prescricional, até aí interrompido, se dá com o trânsito em julgado da decisão final proferida no processo-crime, designadamente com a definitividade da sentença condenatória. Neste último caso esse direito só se extinguiria em 29/09/2021 (29/09/2016 + 5 anos)."
[MTS]
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