Competência internacional; Reg. 1215/2012;
contrato de mútuo
1. O sumário de RG 13/1/2022 (1298/19.6T8BGC.G1) é o seguinte:
Os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para apreciar uma acção em que o autor, residente em Portugal, demanda os réus, domiciliados em França, para exigir a restituição de parte da quantia que lhes emprestou, e o remanescente do preço da venda de um estabelecimento comercial situado em França (ou, na versão dos réus, parte do preço da cessão de quota em sociedade comercial titular do aludido estabelecimento comercial).
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"A competência internacional é aferida em razão dos termos em que o demandante configura a acção, a qual se define através do pedido, da causa de pedir e da natureza das partes. Para o efeito, é necessário considerar os elementos objectivos da demanda, ou seja, a natureza da providência solicitada, a natureza do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, o facto ou acto donde resulta o invocado direito e os elementos subjectivos da acção.
Na presente acção o Autor deduziu dois pedidos, os quais estão devidamente autonomizados sob as alíneas A) e B) do petitório, baseados em diferentes causas de pedir. O primeiro pedido alicerça-se num alegado contrato de empréstimo, pelo Autor aos Réus, de certa quantia (artigos 4º a 10º da p.i.) e o segundo num contrato pelo qual «vendeu o A. ao RR. a sua quota, a sua parte, num estabelecimento comercial, mais concretamente café-restaurante em França, na cidade de Paris» (artigos 11º a 13º, bis, da p.i.) ou, na versão dos Réus, cedeu a quota numa sociedade comercial.
Sabe-se que o Autor reside actualmente em Portugal, onde se fixou definitivamente em 2014 (v. ponto 3 dos factos assentes), que os Réus residem em França há mais de 40 anos (ponto 9), e que ambos os alegados acordos terão sido celebrados antes de o Autor ter regressado a Portugal, o primeiro em 2007/2008 e o segundo em 2014.
Não está demonstrado o local de celebração dos dois acordos e o que foi combinado sobre onde deveria ser restituída a quantia emprestada ou pago o preço da venda da quota/parte no estabelecimento comercial de café-restaurante ou, na versão dos Réus, da cessão da quota da sociedade titular desse estabelecimento.
Todavia, [...] a causa (---) tem elementos de conexão com dois Estados-membros da União Europeia – Portugal e França (os Réus residem em França e o Autor, actualmente, em Portugal, e um dos acordos tem por objecto mediato, na versão do Autor, um estabelecimento comercial sito em França).
Por isso, é aplicável o Regulamento (UE) 1215/2012, de 12 de Dezembro (---) (que de ora em diante designaremos apenas como “Regulamento”), na medida em que nos autos se discute matéria civil – responsabilidade contratual emergente de duas relações contratuais autónomas e distintas – e que não está em causa qualquer das matérias ressalvadas no seu artigo 1º (---).
De harmonia com o disposto no seu artigo 4º, nº 1, «sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado-Membro».
Portanto, em regra uma pessoa deve ser demandada nos tribunais do Estado-membro onde tem o seu domicílio, pelo que no caso dos autos, em princípio, os Réus deveriam ser demandados nos tribunais franceses.
Embora as regras de competência estabelecidas no Regulamento assentem no princípio de que em geral a competência tem por base o domicílio do requerido, estabelecem-se excepções em situações bem definidas, em que a matéria em litígio ou a autonomia das partes justificam um critério de conexão diferente ou, ainda, a permissão de recurso a um foro alternativo.
No considerando 16 do Regulamento explicita-se que «o foro do domicílio do requerido deve ser completado pelos foros alternativos permitidos em razão do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio ou com vista a facilitar uma boa administração da justiça. A existência de vínculo estreito deverá assegurar a certeza jurídica e evitar a possibilidade de o requerido ser demandado no tribunal de um Estado-Membro que não seria razoavelmente previsível para ele». Em concretização de tal considerando, preceitua o nº 1 do artigo 5º do Regulamento que «as pessoas domiciliadas num Estado-Membro só podem ser demandadas nos tribunais de outro Estado-Membro nos termos das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do presente capítulo».
Assim, com relevo para o caso dos autos, prevê-se no artigo 7º, nº 1, do Regulamento:
«As pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro:1)a) Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão;b) Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será:— no caso da venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues,— no caso da prestação de serviços, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados;c) Se não se aplicar a alínea b), será aplicável a alínea a)».
Impõem-se algumas considerações com vista a conseguir interpretar adequadamente este preceito.
Primeiro, para a delimitação dos conceitos utilizados na mencionada disposição é relevante o direito da União Europeia, uma vez que a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) aponta no sentido de que os conceitos expressos nos Regulamentos têm carácter autónomo, ou seja, têm um significado no contexto do direito da União Europeia e não propriamente aquele que especificamente lhe é dado pelo direito nacional de cada um dos seus Estados-Membros. Portanto, a referência interpretativa não é o direito de qualquer dos Estados com os quais a causa tem elementos de conexão, mas antes o direito da União Europeia, partindo do contexto da disposição e dos objectivos prosseguidos com o respectivo instrumento. Como se assinala no acórdão de 16.06.2016 do TJUE, proferido no processo C-511/14 (Pebros Servizi Srl contra Aston Martin Lagonda Ltd.), «decorre das exigências tanto de aplicação uniforme do direito da União como do princípio da igualdade que os termos de uma disposição de direito da União que não contenha nenhuma remissão expressa para o direito dos Estados-Membros para determinar o seu sentido e o seu alcance devem normalmente ser interpretados de modo autónomo e uniforme em toda a União Europeia, interpretação essa que deve ser procurada tendo em conta o contexto da disposição e o objectivo prosseguido pela regulamentação em causa (acórdão de 5 de Dezembro de 2013, Vapenik, C-508/12, EU:C:2013:790, nº 23 e jurisprudência referida)».
Segundo, o preceito toma por referência, quanto aos contratos de compra e venda e de prestação de serviços, a obrigação característica do contrato e não a obrigação controvertida na acção. Adoptou uma definição autónoma de lugar do cumprimento, enquanto critério de conexão ao tribunal competente em matéria contratual, para as acções fundadas em contratos de compra e venda ou de prestação de serviços, identificando as obrigações que são características de um (entrega dos bens) e de outro (prestação do serviço), relevantes para fundamentar uma conexão razoavelmente forte do contrato com um concreto lugar para justificar a competência alternativa àquela que cabe ao Estado do domicílio do demandado e ainda suficientemente segura para evitar a possibilidade de o requerido ser demandado no tribunal de um Estado-membro que não seria razoavelmente previsível para ele.
Terceiro, o artigo 7º apenas refere dois tipos contratuais – a compra e venda de bens e a prestação de serviços, mas isso não significa que não seja aplicável a outras modalidades de contratos. O intérprete deve reconduzir o negócio celebrado pelas partes a uma dessas modalidades a fim de poder aplicar o referido critério de competência (5).
Sendo patente que os Réus residem em França e que, por isso, em princípio, deveriam ser demandados nos tribunais desse Estado, o Autor só poderia intentar a acção perante os tribunais portugueses, enquanto foro alternativo, caso da configuração da acção efectuada na petição inicial resultasse que as obrigações em questão deviam ser cumpridas em Portugal.
Nada resultando de útil sobre uma eventual convenção sobre o «lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão», havia que recorrer ao disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 7º do Regulamento.
Cingindo-nos ao alegado pelo Autor, na configuração que lhe deu na petição inicial (a versão dos Réus – relativa à cessão de uma quota numa sociedade comercial – não releva para este efeito), quanto ao “contrato de compra e venda” de uma “quota” ou “parte” de um estabelecimento comercial de café-restaurante sito em Paris, França, verifica-se que o lugar do cumprimento da obrigação característica desse contrato não se situa em Portugal mas sim em França. Esse negócio, nos termos alegados nos artigos 11º e segs. da petição inicial, constitui um contrato de compra e venda, pelo que o lugar do cumprimento corresponde ao local da entrega do bem, em conformidade com o disposto no artigo 7º, nº 1, al. a), do Regulamento. Como tem por objecto um estabelecimento comercial, de café-restaurante, situado em França, são os tribunais franceses os competentes para a apreciação da correspondente pretensão. Verifica-se, assim, uma coincidência entre os dois critérios de conexão: tanto o domicílio dos Réus (art. 4º, nº 1) como o lugar onde a obrigação característica do contrato de compra e venda devia ser cumprida (artigo 7º, nº 1, al. a)) se situam em França, daí a incompetência internacional dos tribunais portugueses.
Quanto ao contrato de mútuo, também não vislumbramos qualquer elemento de conexão com o nosso país, para além da irrelevante circunstância de se ter alegado na petição que foi celebrado entre cidadãos portugueses, numa data (segundo o alegado na p.i., «sensivelmente no ano de 2007, inícios de 2008») em que tanto Autor como Réus residiam em França.
Em conformidade com o disposto no artigo 4º, nº 1, do Regulamento, há um inequívoco elemento de conexão com o Estado francês, na medida em que os Réus residem nesse país há mais de 40 anos. Esse será sempre o critério aplicável no caso de não se apurar um elemento de conexão que permita operar a determinação do foro alternativo previsto no artigo 7º, nº 1, do Regulamento.
Como já referimos aquando da apreciação da decisão sobre a matéria de facto relativa ao incidente, o Autor não especificou na petição inicial onde foi celebrado o alegado contrato de mútuo – se em Portugal se em França – e também não alegou qual o lugar acordado para o cumprimento da obrigação de restituição do dinheiro emprestado, apenas tendo concretizado que devia ser restituído no prazo de 90 dias (art. 6º da p.i. - «Empréstimo esse, no montante de 15.000,00€, dinheiro que o A. entregou ao R. marido e que este utilizou, com a obrigação aceite por este de lho devolver passados 90 dias»). Só no requerimento de resposta à matéria de excepção alegou que «resulta do processo, da pi, que o A. alega que emprestou dinheiro aos RR., em Portugal», o que não tem qualquer correspondência com o que consta dos artigos 4º a 10º da p.i..
Nem alegou tais factos na petição inicial e também não logrou demonstrá-los no âmbito do incidente. Por isso, seja qual for a subsunção que se faça dos factos relativos ao contrato de mútuo, os tribunais portugueses não são os competentes para a apreciação da presente causa.
Por um lado, caso se considere que o contrato de mútuo não se encontra previsto no artigo 7º, nº 1, do Regulamento, sempre seria aplicável o critério do domicílio dos Réus, uma vez que o domicílio do requerido no território dos Estados–membros da União Europeia desempenha a função de critério geral de competência. Por outro lado, como correctamente se apontou na decisão recorrida, mesmo que se reconduzisse tal espécie contratual à compra e venda ou à prestação de serviços, sempre haveria de considerar-se que o Autor não logrou provar ter concedido o empréstimo aos Réus em Portugal ou a existência de qualquer estipulação no sentido de que o reembolso do dinheiro emprestado devia ocorrer no nosso país. Também neste último caso restaria aplicar o critério do domicílio dos Réus.
Portanto, os Réus só podiam ser demandados nos tribunais do Estado onde têm o seu domicílio, ou seja, em França.
Por isso, bem andou o Tribunal recorrido ao concluir que não se verificam os pressupostos que, nos termos do artigo 7º do Regulamento 1215/2012, fariam admitir a demanda dos Réus num tribunal português. Sendo assim, o Juízo Local Cível de Bragança é internacionalmente incompetente para a tramitação dos presentes autos."
[MTS]
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