Decisão-surpresa;
consequências
1. O sumário de RL 27/1/2022 (2625/21.1T8CSC-2) é o seguinte:
I– Para suprir a falta de autorização do requerido para que seja intentado um processo de acompanhamento, o juiz, previamente, tem de o ouvir pessoal e directamente, sempre que tal não se mostre impossível.
II– O exercício do contraditório realizado através da citação para os pedidos não é o mesmo que a audição prévia, pessoal e directa do requerido.
III– A falta dessa prévia audição acarreta uma nulidade processual, porque a falta dela implica a falta de um acto que a lei prescreve para que seja proferida decisão sobre o suprimento, pressupondo a importância da audição do requerido para o efeito, e por isso é presumido poder influir na decisão da causa (art. 195/1 do CPC).
IV– Essa nulidade processual tem de ser arguida dentro do prazo de 10 dias a contar do seu conhecimento (artigos 199 e 149 do CPC), embora se tenha vindo a admitir, com assumida falta de rigor, que as nulidades processuais, de que a parte só teve conhecimento com a notificação da decisão judicial que a consome, possam ser arguidas no prazo de recurso dessa decisão e com o recurso da mesma.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Dois dos objectivos da reforma do regime das incapacidades foram, segundo Menezes Cordeiro, a primazia da autonomia do visado, cuja vontade deve ser respeitada e aproveitada até aos limites do possível, e a manutenção de um controlo jurisdicional eficaz sobre qualquer constrangimento imposto ao visado (em Código Civil Comentado, I, CIDP/FDUL, Almedina, 2020, páginas 392-393).
Por força disso, o requerimento inicial é comunicado ao requerido que lhe pode responder (arts. 895 e 896 do CPC) e, a nível das diligências de prova, o juiz, em qualquer caso, deve proceder sempre à audição pessoal e directa do requerido, deslocando-se, se necessário, ao local onde ele se encontre, o que, para além do mais, visa averiguar a sua situação (arts. 897 e 898 do CPC).
Daqui decorre desde logo, entre o mais, que o contraditório, cumprido com a citação e resposta do requerido, não é o mesmo que a, nem equivale à audição prévia, pessoal e directa do requerido, pelo que a justificação dada pelo tribunal recorrido, a posteriori, para a falta de audição prévia não está certa.
Menezes Cordeiro comentando o disposto no art. 897/2 do CPC, diz, entre o mais, que “O contacto pessoal com o juiz é decisivo, revogando-se [a norma do CPC antes da reforma de 2013] que o dispensava em certos casos. Se o beneficiário estiver internado ou em casa, impedido de se deslocar, o tribunal irá até ele, para se inteirar da situação e confirmar o que lhe seja dito” (obra citada, pág. 396). E mais à frente (pág. 397), em relação à norma do art. 898 do CPC, acrescenta: “A reforma pretendeu […] dar, ao juiz, um máximo de informação para decidir em consciência, em prol do beneficiário.
Por outro lado, o suprimento da falta de autorização pode ocorrer ou “quando, em face das circunstâncias, este não a possa livre e conscientemente dar, ou quando para tal se considere existir um fundamento atendível” (art. 141 do CC).
Note-se que esta norma rege para a decisão do suprimento, não para a dispensa da audição prévia, pessoal e directa, dispensa que, em princípio a lei não permite, embora, natural e logicamente, não a possa impor quando ela for impossível.
Como diz, Miguel Teixeira de Sousa, “[…] Trata-se de um meio de prova que é obrigatório em qualquer processo de acompanhamento de maiores (art. 139/1 do CC; art. 897/2 do CPC), dado que, por razões facilmente compreensíveis, se pretende assegurar que o juiz tem conhecimento efectivo da real situação em que se encontra o beneficiário. Isto não impede, no entanto, que, se estiver comprovado no processo que essa audição pessoal e directa não é possível (porque, por exemplo, o beneficiário se encontra em coma), o juiz, fazendo uso dos seus poderes de gestão processual (art. 6/1 do CPC) e de adequação formal (art. 547 do CPC), não deva dispensar, por manifesta impossibilidade, a realização dessa mesma audição” (O regime do acompanhamento de maiores: alguns aspectos processuais, de 11/12/2018, em O novo regime jurídico do maior acompanhado, CEJ, 1ª edição, 14/02/2019, página 41).
De qualquer modo, em relação ao suprimento do consentimento, diz Menezes Cordeiro: “O preceito fixa o primado da vontade do acompanhado: está em causa um benefício, de que ele pode ou não querer prevalecer-se. Todavia, em certas situações (anomalia congénita grave, acidente cerebral profundo, depressão total, coma, dependência avançada), o interessado não está em condições de dar uma autorização consciente. A lei poderia enumerar as circunstâncias que possam levar a esse suprimento. A tarefa seria ingrata: ficariam hipóteses de fora sendo que, no fundo, tudo depende do prudente arbítrio do juiz” (obra citada, página 400).
E Miguel Teixeira de Sousa a propósito destas normas (as que se tiram do art. 141 do CC), numa passagem frequentemente citada (e que também o foi pela decisão recorrida), diz: “Isto significa que cabe sempre ao tribunal controlar se se justifica suprir a falta de autorização do beneficiário. [… O qual] deve ser cuidadosamente ponderado pelo tribunal, dado que não é justificável partir do princípio nem de que a falta de autorização pelo eventual beneficiário não é justificada, nem de que este beneficiário não está sequer em condições de conceder a autorização” (obra citada, página 38).
Pelo que é possível tirar desta norma o reforço do princípio de que a audição prévia, pessoal e directa, deve ocorrer para, entre o mais, se apurar se é verdade o alegado sobre a situação invocada para pedir o suprimento da falta de autorização e que tal só não deve acontecer se o requerido, pelas razões gravíssimas elencadas, ou equivalentes, não estiver em condições de ser ouvido para o efeito.
Trata-se de uma decisão tomada contra o requerido, que o afecta, pelo que, só em circunstâncias excepcionais, já referidas, se poderia dispensar a audição prévia, pessoal e directa dele sobre os factos alegados para o suprimento da falta de autorização, de acordo, de resto, com o princípio 13, inserido na Parte III, relativa aos princípios processuais, da Recommendation n.º R (99) 4 Of The Committee Of Ministers To Member States, On Principles Concerning The Legal Protection Of Incapable Adults: Right to be heard in person: The person concerned should have the right to be heard in person in any proceedings which could affect his or her legal capacity (na versão em francês: Principe 13 – Droit d'être entendu personnellement: La personne concernée devrait avoir le droit d'être entendue personnellement dans le cadre de toute procédure pouvant avoir une incidence sur sa capacité juridique); ou seja (na tradução do google): Direito de ser ouvido pessoalmente: A pessoa em causa deve ter o direito de ser ouvida pessoalmente em qualquer processo que possa afectar a sua capacidade jurídica.
Ou seja, respeitando a qualquer processo, não deve ser restringido só à questão principal, mas também à questão incidental, tão relevante quanto aquela, da possibilidade do processo se iniciar sem ou contra a vontade do beneficiário.
Ou, como diz o ac. do TRP citado abaixo: “O regime definido para o processo abrange tudo o que o integra, e por isso, também o concreto incidente de suprimento de autorização, o qual merece da parte do juiz uma especial atenção, já que de tal decisão depende, ou não, a promoção do processo e este processo visa salvaguardar e reforçar a defesa dos interesses do beneficiário (art. 140/1 CC).”
Circunstâncias excepcionais que nem sequer estavam indiciadas, pois que, como diz a própria decisão recorrida, “No caso em análise, o requerido foi citado na sua própria pessoa, pelo que o Sr. funcionário não concluiu que aquele estava impossibilitado de perceber o seu conteúdo e alcance. [E o] requerido constituiu mandatário judicial, emitindo a competente procuração.”
A falta desta audição é a omissão de um acto que a lei prescreve, ou seja, uma irregularidade que pode, evidentemente, influir na decisão da causa – pois que a lei prescreve essa audição precisamente para ser tida em conta na decisão – pelo que é uma irregularidade que produz nulidade (art. 195/1 do CPC).
No mesmo sentido de tudo o que antecede, com fundamentação mais desenvolvida, veja-se o ac. do TRP de 24/09/2020, proc. 16021/19.7T8PRT.P1.
A nulidade afecta a decisão tomada quanto ao suprimento e tudo o que tiver ocorrido posteriormente com base no entendimento de que a requerente tem legitimidade para acção por força desse suprimento (art. 195/2 do CPC), sendo que, nesta parte, tal terá de ser decidido pelo tribunal recorrido por este processo não ter elementos para o decidir.
O prazo para arguição dessa nulidade é de 10 dias a contar do seu conhecimento decorrente da notificação da sentença (artigos 149 e 199/1 do CPC), o que no caso, levaria à intempestividade do recurso, mas tem vindo a ser admitido, “numa compreensão inteligente da razão de ser dos ónus processuais”, embora num entendimento menos rigoroso da lei, que, neste caso, o prazo seja o do recurso e que a questão possa ser levantada no próprio recurso (assim, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 2.º, 3.ª edição, Almedina, 2021, reimpressão de 2017, páginas 739-740, anotação 6 ao art. 615 do CPC, com indicação de acórdãos nesse sentido, sendo que desde então se têm multiplicado decisões no mesmo sentido em vários tipos de situações diferentes), entendimento que, dada a sua generalização, não se deve contrariar para evitar desigualdades na aplicação da lei em casos semelhantes (art. 8 do CC)."
*3. [Comentário] No que respeita às consequências da falta de audição do requerido não se pode acompanhar, salvo o devido respeito, o decidido no acórdão, remetendo-se para o seguinte post.
O acórdão acaba por construir uma nulidade processual que não segue o regime da nulidade processual: não tem o prazo de arguição da nulidade processual e não é conhecida pelo tribunal com competência para conhecer dela. Afinal, o que resta da nulidade processual?
*3. [Comentário] No que respeita às consequências da falta de audição do requerido não se pode acompanhar, salvo o devido respeito, o decidido no acórdão, remetendo-se para o seguinte post.
O acórdão acaba por construir uma nulidade processual que não segue o regime da nulidade processual: não tem o prazo de arguição da nulidade processual e não é conhecida pelo tribunal com competência para conhecer dela. Afinal, o que resta da nulidade processual?
MTS