"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



25/07/2022

Jurisprudência 2021 (238)


Decisão-surpresa;
excesso de pronúncia; nulidade da decisão


1. O sumário de STJ 16/12/2021 (4260/15.4T8FNC-E.L1.S1) é o seguinte:

I – Encontrando-se a nulidade processual coberta pela decisão judicial que a acolhe (in casu, o saneador-sentença recorrido), o meio adequado para invocar essa infracção às regras do processo é o recurso contra a decisão de mérito, a apresentar junto da instância superior (se for admissível), e não a sua reclamação directamente perante o juiz a quo.

II – O conhecimento do pedido, em fase de saneamento dos autos obriga, de forma imperativa, o juiz à designação de audiência prévia, a realizar nos termos e para os efeitos do artigo 591º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil, facultando às partes a possibilidade de alegarem de facto e de direito sobre a matéria de que irá conhecer.

III – Havendo o juiz contrariado a tramitação processual até aí seguida (a audiência prévia foi designada várias vezes e entretanto adiada), procedido à (implícita) dispensa da realização da audiência prévia sem se encontrarem reunidos os respectivos requisitos processuais indispensáveis para esse mesmo efeito e passado ao conhecimento imediato do mérito da causa, a respectiva sentença é nula por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), 2ª parte do Código de Processo Civil.

IV – A violação das regras processuais que consiste na omissão ilegal da realização de uma diligência obrigatória que deveria ter tido lugar nos autos (a audiência prévia), comunica-se à decisão de mérito subsequente que é proferida fora do momento próprio, numa altura em que ao juiz se encontrava expressamente vedada a possibilidade de tomar conhecimento dessa matéria.

V – Tal decisão de dispensa da audiência prévia, que era no caso obrigatória, constituiu uma verdadeira decisão surpresa entendida enquanto “decisão que decide o que não pode decidir sem audiência prévia das partes”, surpreendendo as partes com o conhecimento que não poderia ter tido lugar antes de as mesmas exercerem o seu direito ao debate da matéria de fundo, de facto e de direito, não se circunscrevendo ao limitado e estrito âmbito da mera irregularidade procedimental, invocável nos comuns termos do artigo 195º, do Código de Processo Civil.

VI – A análise da situação e suas consequências seria completamente diferente se o juiz a quo houvesse, antes de proferir a decisão de mérito, notificado as partes, informando-as deste seu propósito e advertindo-as de que o faria na ausência de oposição destas, o que, a verificar-se, significaria, nessas circunstâncias, a sua anuência a esta agilização do processado, bem como o seu reconhecimento quanto à desnecessidade de alegarem de facto e de direito antes da prolação decisão que, conhecendo do fundo da causa, definiria a sorte do pleito.

VII - A dispensa pelo juiz da realização da audiência prévia, nos casos em que é obrigatória, nos termos do artigo 591º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil, como forma de proporcionar às partes o exercício de faculdades processuais concedidas por lei, está ela própria igualmente sujeita ao contraditório, evitando-se assim decisões surpresa, expressamente vedadas pelo artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil.

VIII – O respeito pelo princípio do contraditório, genericamente consagrado no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, não depende de um juízo subjectivo do juiz quanto à necessidade, segundo o seu entendimento pessoal, de ouvir ou não ouvir as partes, aquilatando se elas ainda têm algo a dizer-lhe que ache relevante para o que há a decidir, mas é, bem pelo contrário, substantivamente assegurado pela imposição do dever processual, que especialmente lhe incumbe, de garantir às partes o direito (que lhes assiste) de dizer aquilo que, no momento processualmente adequado (definido previamente pela lei), ainda entenderem ser, do seu ponto de vista, relevante.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"3 – Dispensa da realização da audiência prévia, obrigatória nos termos do artigo 591º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil, com o imediato conhecimento da procedência de excepção de caducidade, sem que o juiz a quo tenha justificado a sua opção face à anterior designação, por várias vezes, de audiência prévia, entretanto sucessivamente adiada. Consequências. Nulidade processual geral (artigo 195º do Código de Processo Civil) e nulidade do acórdão recorrido por excesso de pronúncia (artigo 615º, nº 1, alínea d), 2ª parte, do Código de Processo Civil). Pretensa desnecessidade face ao debate da matéria jurídica da excepção peremptória nos articulados. Salvaguarda do princípio do contraditório e da proibição de decisões surpresa (artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil). 

Pode resumir-se da seguinte forma a situação processual em análise:

1º - A A. instaurou acção de impugnação da resolução em benefício da massa insolvente contra a Ré.

2º - A Ré impugnou, suscitando a excepção peremptória da caducidade do direito a instaurar a presente acção (artigos 9º a 31º da sua contestação).

3º - A A. respondeu pugnando pela improcedência dessa excepção peremptória (artigos 18º a 32º da sua resposta).

4º - Em fase de saneamento dos autos, o juiz de 1ª instância designou, em 18 de Setembro de 2019, audiência para o dia 10 de Outubro de 2019, para os fins enunciados no artigo 591º, nº 1, alíneas a), b), c), d), e), f) e g), do Código de Processo Civil, com o posterior esclarecimento de que a diligência seria realizada presencialmente, onde se inclui a obrigação do juiz “facultar às partes a discussão de facto e de direito, (...) quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa”.

5º - Houve lugar entretanto ao adiamento da diligência face à iminência da concretização de acordo, tal como foi pedido pelas partes; [...]

6º - Em 19 de Janeiro de 2021, sem qualquer aviso, diligência ou outro pronunciamento, foi proferida sentença que julgou procedente a excepção peremptória de caducidade, antecedida do seguinte introito: “o estado do processo permite, sem necessidade de mais prova, a apreciação total dos pedidos deduzidos, o Tribunal decide conhecer imediatamente do mérito da causa, nos termos dos artigos 591.°, n.° 1, alínea d) e 595.°, n.° 1, alínea b), do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do artigo 17.°, n.° 1, do CIRE”.

Apreciando:

A questão jurídica essencial que se discute na presente revista tem a ver com a licitude ou ilicitude da opção assumida pelo juiz a quo, contrariando a tramitação até aí coerentemente seguida nos autos (e por si determinada enquanto seu titular) quanto à designação de audiência prévia nos termos do artigo 591º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil, ao dispensar de surpresa, implicitamente, tal diligência processual, sem notificação ou aviso às partes, com o singelo fundamento de que “tendo em conta que o estado do processo permite, sem necessidade de mais prova, a apreciação total dos pedidos deduzidos, o Tribunal decide conhecer imediatamente do mérito da causa, nos termos dos artigos 591.°, n.° 1, alínea d) e 595.°, n.° 1, alínea b), do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do artigo 17.°, n.° 1, do CIRE”,  passando a conhecer, em termos finais, do mérito da causa.

Nestas circunstâncias, não procedendo à prévia comunicação às partes para que estas pudessem tomar a posição que bem entendessem, e sem aguardar pela sua reacção, o juiz a quo fê-lo com directa e imediata violação da lei processual aplicável, afrontando o princípio do contraditório, expresso no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil.

Com efeito, não havendo lugar ao prosseguimento dos autos pelo facto de o juiz a quo ter entendido não ser necessária a produção de prova, habilitando os elementos recolhidos nos autos a proferir, conscienciosamente, saneador-sentença conhecendo do objecto do litígio, a lei processual obrigava-o, expressa e imperativamente, à prévia designação de audiência prévia, conforme resulta do disposto no artigo 591º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Civil, onde se prevê, inequivocamente, que a mesma servirá para “facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpre apreciar excepções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa”.

E, de resto, foi o que fez, com toda a naturalidade, durante um ano e três meses (de 18 de Setembro de 2019 a 19 de Janeiro de 2021).

Com efeito, como se refere in “Código de Processo Civil Anotado. Volume I. Parte Geral e Processo de Declaração. Artigos 1º a 702º”, de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, página 687:

“É de toda a conveniência que o juiz não decida, no todo ou em parte, aspectos materiais do litígio sem um debate prévio, no qual os advogados das partes tenham a oportunidade de produzir alegações orais acerca do mérito da causa”.

(No mesmo sentido, vide Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado”, Janeiro de 2021, 4ª edição, a página 650).

A dispensa de realização de audiência prévia, nos termos do artigo 593º, nº 1, não abrange a situação prevista na alínea b) do nº 1 do artigo 591º do Código de Processo Civil (incluindo tão somente as situações previstas nas alíneas d), e) e f) do nº 1 do artigo 591º, e pressupondo sempre que “a acção haja de prosseguir”).

É assim inquestionável que o juiz a quo omitiu, sem qualquer tipo de justificação séria ou fundamentação adequada, a realização de uma diligência processual que estava estritamente vinculado a designar nestas circunstâncias, havendo simultaneamente procedido à (implícita) dispensa da realização da audiência prévia sem se encontrarem reunidos os requisitos processuais indispensáveis para esse efeito.

Importa, portanto, apurar se tal violação das regras do processo corresponde, tal como o recorrente lhe aponta, a uma nulidade da própria sentença, que desse modo foi inquinada pelo vício formal do excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), 2ª parte do Código de Processo Civil, ou se se trata de um mera e comum nulidade processual, enquadrável na previsão genérica do artigo 195º, nº 1, do Código de Processo Civil, e invocável no prazo de dez dias sob pena de sanação (conforme entendeu o acórdão recorrido).

Vejamos:

É sabido que quando está em causa o cometimento de uma nulidade processual coberta pela decisão judicial que a acolhe (in casu, o saneador-sentença recorrido), o meio adequado para invocar tal infracção às regras do processo é o recurso contra essa decisão, a apresentar junto da instância superior (se for admissível), e não a sua reclamação directamente perante o juiz a quo. [...]

Ora, a conduta processual do juiz a quo quanto à não realização da audiência prévia que era suposto ter tido lugar, e que já fora devidamente por si designada em obediência à tramitação legal adequada, dispensando-a sem mais e passando a proferir decisão antes do momento em que tal lhe era processualmente permitido, constitui, sem dúvida alguma, uma falta processual traduzida, simultaneamente, na omissão de um acto que a lei prescreve e no cometimento de outro que a lei lhe proíbe (promoveu e determinou a ausência de uma diligência processual de natureza obrigatória – audiência prévia – e produziu um acto de julgamento que a lei, naquele concreto momento, ainda não lhe permitia).

Trata-se, de resto, de um exemplo perfeito e acabado de um acto ferido de nulidade que é totalmente coberto pelo despacho judicial através do qual o juiz de 1ª instância, a destempo, optou por conhecer de mérito, sem se importar com o direito especialmente conferido às partes de, previamente, alegarem de facto e de direito sobre a questão de fundo que foi determinante para a sorte da lide.

Simultaneamente, nestas especiais circunstâncias, a nulidade cometida comunica-se ao despacho saneador-sentença, inquinando-o, ficando a decisão judicial (que não deveria ter sido proferida), contaminada por um vício que atinge o próprio acto jurisdicional de julgamento.

Neste contexto, não é razoável o sistema jurídico impedir a parte vencida, que se vê inesperadamente confrontada (note-se que estava em curso a designação, já ordenada por várias vezes, da audiência prévia) com a decisão de mérito que a desfavoreceu, fazendo-a perder a causa, de impugnar em termos gerais, através da interposição do competente recurso, o erro de julgamento que consistiu no conhecimento processualmente abusivo da procedência da excepção peremptória da caducidade do direito a instaurar a acção.

Não se trata de invocar, através de reclamação, uma simples irregularidade no processamento dos autos, que aliás nunca foi expressamente assumida pelo juiz a quo (o mesmo nada referiu que explicasse a razão pela qual, ao contrário do que havia feito até aí, não reconheceu às partes o direito processual conferido na alínea b) do nº 1 do artigo 591º do Código de Processo Civil), mas do exercício do direito a impugnar a única verdadeira decisão que foi efectivamente tomada: a procedência da excepção peremptória antes de as partes terem a possibilidade de a discutir, contraditoriamente e em sede própria, para além do que referiram a este propósito nos articulados. [...]

In casu, o acto nulo é o acto de julgamento em si, com a definição final do direito aplicável à relação material controvertida, e não propriamente qualquer decisão interlocutória (que inexiste formalmente) que se debruçasse sobre a obrigação ou dispensa de realização da audiência prévia.

De modo que a reacção da apelante terá que passar pela inerente interposição de recurso de apelação contra a decisão proferida, integrando, nos respetivos fundamentos, a arguição da referida nulidade ao abrigo do disposto no artigo 615º, nº 1, alínea d), 2ª parte, do Código de Processo Civil. [...]

Com efeito e como se disse, o tribunal a quo ao decidir como decidiu, sem que antes tivesse levado a cabo a diligência processual a que se encontrava vinculado, conheceu de matéria (excepção peremptória de caducidade que constitui o fundo da causa) que, naquele exacto momento e nesse concreto circunstancialismo, não lhe competia conhecer, excedendo manifestamente os seus poderes de cognição.

 Nessa altura, faltava dar a oportunidade às partes, no âmbito da audiência prévia que já tinha sido para esse preciso efeito várias vezes designada, de discutir de facto e de direito a matéria substantiva em causa, influenciando por essa via a posição a adoptar pelo julgador, enquanto lídima expressão do princípio do contraditório que o legislador exigiu, em termos imperativos, que fosse respeitado naqueles exactos termos (e não noutros).

Ao não o fazer, ignorando e desvalorizando o preceito legal indicado, o juiz de 1ª instância avançou para a pronúncia que a lei lhe vedava, extravasando e torpedeando nitidamente os limites dos poderes de cognição que a lei lhe concedia.

Em suma, tal excesso de pronúncia – que é no fundo do que se trata – integra-se de pleno na situação típica prevista no artigo 615º, nº 1, alínea d), 2ª parte, do Código de Processo Civil, não se limitando a uma simples omissão de uma diligência que deveria ter tido lugar e que, por falta imputável ao juiz da causa, não sucedeu. (sobre este ponto, vide Miguel Teixeira de Sousa in https://blogippc.blogspot.com, em comentário ao acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24 de Setembro de 2020, versando uma situação de que a presente é praticamente um decalque).

No acórdão recorrido, embora se tenha reconhecido que a realização da audiência prévia era, neste caso, obrigatória, e que a sua omissão constituía uma indiscutível nulidade processual, acabou por concluir-se também que tal nulidade processual se encontrava sanada pela não arguição tempestiva (no prazo geral de dez dias a contar do seu conhecimento).

Consignou-se quanto a este ponto:

“A decisão proferida, apreciando da exceção de caducidade do direito de instaurar a acção e resolvendo o litígio, exclusivamente, por via da apreciação dessa exceção perentória, não constituiu, em absoluto, qualquer surpresa para as partes que, no processo, já tinham expendido as posições respetivas sobre essa questão. Aliás, a autora apelante pronunciou-se duplamente sobre a matéria, fazendo-o na petição inicial, em impugnação antecipada e, posteriormente, respondendo à contestação, em articulado que o tribunal admitiu, exatamente considerando que sempre teria que ser salvaguardado o princípio do contraditório, conforme despacho a que supra se fez referência no relatório.

Ou seja, no caso em apreço, não pode configurar-se a sentença como uma decisão judicial proferida em excesso de pronúncia: o juiz podia, manifestamente, decidir o pleito com base na referida exceção, como fez, pois os intervenientes processuais já tinham exercido o direito de audição sobre a mesma, não podendo invocar qualquer prejuízo atinente à falta de audição ou violação do contraditório, ou que foram confrontados inopinadamente com uma decisão que fundamentou a sua análise em questão que nunca se tinha deparado às partes.
 
O ponto é que a sentença foi proferida no momento processual errado, à margem da tramitação devida porquanto, como se viu, se impunha, previamente, a realização de um ato processual, a audiência prévia; em bom rigor, a situação corresponde ao “exemplo” “académico” dado por Miguel Teixeira de Sousa e a que se fez referência.

Conclui-se que estamos perante uma hipótese de nulidade do processo e não de nulidade de sentença. Aquela segue o regime previsto no art. 195.º, nº1 e devia ter sido arguida pela apelante, parte interessada (art. 197.º, nº1) nos dez dias subsequentes à notificação da sentença (art. 199.º, nº1) e não em sede de recurso pelo que, não tendo a apelante reclamado, em devido tempo, dessa nulidade, tem que considerar-se a mesma como sanada.
 
Assim sendo, e não tendo a apelante suscitado qualquer outra questão a esta Relação, mais não resta senão considerar que improcedem as conclusões de recurso”.

Discorda-se.

A omissão da realização de uma diligência obrigatória que deveria imperativamente ter tido lugar nos autos (a audiência prévia), constituindo de facto uma evidente violação das leis do processo que, sendo qualificada como nulidade processual nos termos do artigo 195º do Código de Processo Civil, é logicamente comunicável à decisão de mérito subsequente.

A prática do acto em referência aconteceu fora do momento próprio e numa altura em que ao juiz se encontrava expressamente vedada a possibilidade de tomar conhecimento dessa matéria (mérito do pedido).

O conhecimento da excepção peremptória de caducidade teria que ser obrigatoriamente discutida e apreciada no âmbito da audiência prévia, como impõe o preceito legal referido – artigo 591º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil - e nunca – sem a anuência das partes - fora dela.

Não se vislumbra, assim, de que forma a ausência de arguição pela parte interessada da nulidade, nos termos do artigo 195º do Código de Processo Civil, no prazo de dez dias consignado nos artigos 199º, nº 1 e 149º, nº 1, do mesmo diploma legal, possa de algum modo obstar – e muito menos sanar – à gritante e manifesta ilegalidade cometida pelo juiz ao conhecer de mérito da causa na fase do saneamento, fora dos exactos limites que lhe foram legalmente impostos para o efeito, com supressão, totalmente incompreensível e arbitrária, de uma diligência judicial de realização obrigatória, que se destinaria, no fundo, à possibilidade de prévia discussão contraditória – perante o juiz em sede audiência prévia e não em qualquer outro momento processual – acerca da suficiência dos elementos reunidos para a decisão imediata da causa e das razões de direito que em todo o caso a condicionariam.(sobre este ponto, vide Miguel Teixeira de Sousa in https://blogippc.blogspot.com, em 12 de Outubro de 2021, subordinada ao título “Por que se teima em qualificar a decisão-surpresa como uma nulidade processual”, em comentário ao acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 9 de Setembro de 2021, proferido no processo nº 1883/20.3T8STR.A.E1, publicado in www.dgsi.pt., onde mais uma vez se sublinhou que: “a orientação segundo a qual o proferimento de uma decisão surpresa constitui uma nulidade processual conduz ao proferimento pelos tribunais de recurso de decisões que são inevitavelmente nulas por excesso de pronúncia nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), e 685º do Código de Processo Civil”).

Por outro lado, e em termos decisivos para a sorte da presente revista, cumpre assinalar que a sentença impugnada constituiu efectivamente uma verdadeira decisão surpresa entendida enquanto “decisão que decide o que não pode decidir sem audiência prévia das partes”(cfr. Miguel Teixeira de Sousa in https://blogippc.blogspot.com, (Jurisprudência 2020 -163), em comentário ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Junho de 2000, proferido no processo 496/13.0TVLSB.L1.S1).

E este vício, intrínseco ao acto de julgamento em que são exorbitados os poderes de cognição do julgador, surpreendendo as partes com o conhecimento que não poderia ter tido lugar antes de as mesmas exercerem o seu direito ao debate sobre a matéria de fundo, de facto e de direito, não se circunscreve ao limitado e estrito âmbito da mera irregularidade procedimental, invocável nos comuns termos do artigo 195º, do Código de Processo Civil. (vide Miguel Teixeira de Sousa in https://blogippc.blogspot.com, Jurisprudência 2021 (29), onde enfatiza que: “não há que confundir o caso em que o tribunal se pronunciou (em qualquer dos sentidos possíveis) sobre a nulidade processual com o caso em que o tribunal, através da sentença que profere, comete ele próprio uma nulidade (da sentença) pela falta da audiência prévia das partes e pela pronúncia de uma decisão-surpresa (artigo 3º, nº 3, CPC). No fundo, importa distinguir entre a pronúncia do tribunal sobre uma nulidade processual e a pronúncia do tribunal que implica a nulidade da sua decisão”).

Por isso mesmo é que a reacção da parte contra tal violação do seu direito ao contraditório – que é disso que substantivamente se trata – tem o seu lugar próprio perante o tribunal superior e não junto do juiz a quo que lhe deu causa, sob forma de mera reclamação.

O que efectivamente provocou a nulidade em apreço foi a pronúncia sobre o mérito da causa do juiz de 1ª instância, sem respeitar o contraditório (artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil) consubstanciado no debate a realizar em audiência prévia das partes, tendo decidido em momento no qual a lei não lhe permitia proferir sentença, culminando numa verdadeira e proibida decisão surpresa, e não qualquer outra – não formalmente assumida - passível da invocação de nulidade nos termos gerais. [...]

Ou seja, e em suma, a dispensa pelo juiz da realização da audiência prévia, nos casos em que é obrigatória, nos termos do artigo 591º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil, como forma de proporcionar às partes o exercício de faculdades processuais concedidas por lei, está ela própria igualmente sujeita ao prévio contraditório, evitando-se assim decisões surpresa, expressamente vedadas pelo artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil. [...]"

[MTS]