"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



27/07/2022

Jurisprudência 2022 (11)


Apresentação de coisas e documentos;
processo arbitral


1. O sumário de RL 27/1/2022 (22927/20.3T8LSB-B.L1-2) é o seguinte:

I.–Nos termos do art.º 38.º da LAV compete aos tribunais estaduais apoiar a jurisdição arbitral na produção de prova, a pedido da parte interessada, para tal autorizada pelo tribunal arbitral.

II.–A ação especial para apresentação de coisas ou de documentos (art.º 1045.º e seguintes do CPC) pode ser utilizada para forçar a apresentação de documentos do lado da contraparte na ação arbitral.

III.–Inexistem obstáculos ao deferimento da intimação da sociedade requerida para juntar aos autos documentos que foram suficientemente identificados no âmbito do processo arbitral e cuja relevância para o processo arbitral foi previamente apreciada pelo tribunal arbitral.

IV.– A tal não obsta a circunstância de a requerida alegar que alguns dos documentos não existem e/ou que já juntou alguns deles no processo arbitral: caberá à requerida apresentar os documentos que existirem e que ainda não tiver juntado ao processo arbitral.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O art.º 19.º da LAV, sob a epígrafe “Extensão da intervenção dos tribunais estaduais”, anuncia que “nas matérias reguladas pela presente lei, os tribunais estaduais só podem intervir nos casos em que esta o prevê.” Trata-se de “estabelecer, de modo solene, uma regra de tipicidade fechada, relativamente às situações nas quais os tribunais do Estado podem intervir” (Menezes Cordeiro, Tratado da arbitragem, Almedina, 2015 pág. 214). O legislador, ao permitir (arbitragem voluntária) ou impor (arbitragem necessária) o recurso a formas privatísticas de resolução jurisdicional de litígios, por ajuizar que estas têm, em certas circunstâncias, vantagens sobre a jurisdição estadual (celeridade, especialização dos julgadores), pretende que estas não se diluam ou percam com desnecessárias interferências do tribunal estadual.

Uma das situações de intervenção da jurisdição estadual na arbitragem previstas na lei é a enunciada no art.º 38.º da LAV:

Solicitação aos tribunais estaduais na obtenção de provas
1- Quando a prova a produzir dependa da vontade de uma das partes ou de terceiros e estes recusem a sua colaboração, uma parte, com a prévia autorização do tribunal arbitral, pode solicitar ao tribunal estadual competente que a prova seja produzida perante ele, sendo os seus resultados remetidos ao tribunal arbitral.
2- O disposto no número anterior é aplicável às solicitações de produção de prova que sejam dirigidas a um tribunal estadual português, no âmbito de arbitragens localizadas no estrangeiro”.

Socorrendo-nos da terminologia de Manuel Pereira Barrocas, dir-se-á que a intervenção do tribunal estadual no processo arbitral pode assumir duas vertentes: uma, em apoio do processo arbitral; outra, no controlo da legalidade da sua atuação. A primeira é cooperativa com a arbitragem, a segunda é fiscalizadora (cfr. Manuel Pereira Barrocas, Manual de Arbitragem, 2.ª edição, 2013, Almedina, p. 260).

É justamente na dimensão cooperativa ou de apoio do processo arbitral que o tribunal estadual pode ser chamado a intervir na produção de prova no âmbito do processo arbitral, ao abrigo do art.º 38.º da LAV (cfr. Manuel Pereira Barrocas, ob. cit., pp. 265 e 266).

É certo que cabe ao tribunal arbitral “determinar a admissibilidade, pertinência e valor de qualquer prova produzida ou a produzir” (art.º 30.º n.º 4 da LAV).

Porém, no caso de falta de cooperação das partes ou de terceiros na produção da prova, os árbitros veem-se confrontados com a falta de poderes de autoridade (ius imperii) para imporem condutas e executarem ordens manu militari ou cominarem sanções (cfr., v.g., Menezes Cordeiro, ob. cit., pág. 350).

Tal dificuldade poderá ser suprida mediante o recurso aos tribunais estaduais.

A intervenção do tribunal estadual será requerida pela parte nela interessada, mediante prévia autorização do tribunal arbitral. A necessidade dessa autorização prévia justifica-se pela autonomia do tribunal arbitral e pelo caráter meramente instrumental da intervenção do tribunal estadual (cfr., v.g., Mariana França Gouveia, Curso de Resolução Alternativa de Litígios, 3.ª edição, 2018, reimpressão, Almedina, pág. 256).

Na sua intervenção o tribunal estadual competente aplicará as respetivas normas processuais adjetivas (cfr. Armindo Ribeiro Mendes, in Lei da Arbitragem Voluntária Anotada, coordenação de Dário da Moura Vicente, Almedina, 3.ª edição, reimpressão, 2018, pp. 120 e 121).

Contrariamente ao que porventura seria desejável, na lei processual civil não se encontra tramitação específica e expressamente desenhada para acorrer a esta intervenção subsidiária e de apoio dos tribunais estaduais aos tribunais arbitrais (criticando esta omissão, cfr. Menezes Cordeiro, ob. cit., pág. 352).

De todo o modo, certo é que a parte interessada terá de instaurar no tribunal estadual competente uma ação proposta com esse único fim (cfr. Mariana França Gouveia, ob. cit., pág. 256).

E é perfeitamente equacionável a aplicabilidade, em certos casos, da ação especial de apresentação de coisas ou documentos prevista no art.º 1045.º e seguintes do CPC (cfr. Manuel Pereira Barrocas, ob. cit., p. 285).

Sendo certo que o recurso a essa ação especial autónoma pode justificar-se, como ponderam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, “face a um quadro processual em que se tenham esgotado, sem sucesso, os meios coercitivos processuais normais para obtenção do documento ou exibição da coisa, subsistindo um interesse juridicamente atendível na apresentação do documento ou da coisa” (Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2020, Almedina, pág. 487).

Como decorre do Relatório supra e do factualismo descrito, o CLUBE/requerente/apelado, demandado pela SAD numa ação arbitral, requereu que a SAD/requerida/apelante juntasse aos autos arbitrais determinados documentos e prestasse determinadas informações. Tal requerimento foi deferido pelo tribunal arbitral, que intimou a SAD a juntar ao processo arbitral esses elementos. Não tendo a SAD cumprido essa intimação (a não ser parcialmente), o tribunal arbitral autorizou o CLUBE a recorrer aos tribunais estaduais para obter a efetivação da prestação desses elementos.

Foi com esse objetivo que o CLUBE instaurou a ação sub judice.

A SAD contestou a sua obrigação de prestação dos referidos elementos.

O tribunal a quo rejeitou os obstáculos invocados pela SAD para não prestar os referidos elementos, tendo reconhecido o direito do CLUBE à sua obtenção no seio do processo instaurado pelo CLUBE. Porém, o tribunal quo, no mesmo despacho (datado de 10.5.2021), após notar que “a requerida também suscitou dúvidas quanto à identificação dos documentos cuja apresentação é requeridadeterminou que o CLUBE fosse notificado para “em aperfeiçoamento ao seu requerimento inicial, concretizar devidamente todos os documentos cuja apresentação requer, esclarecendo, designadamente, todas as dúvidas suscitadas pela requerida na sua contestação.” (cfr. n.º 3 do Relatório supra).

No aludido despacho o tribunal a quo não analisou as supostas dúvidas, limitando-se à transcrita referência genérica, sem individualização dos aspetos que careceriam de esclarecimento.

Fica a impressão de que o tribunal a quo quis, sobretudo, dar ao CLUBE/requerente a possibilidade de se pronunciar sobre as supostas dúvidas, adiantando, se fosse o caso, qualquer explicitação que julgasse relevante.

E, na verdade, o que o CLUBE fez na sua resposta, supratranscrita no n.º 4 do Relatório, foi reiterar os elementos que já havia solicitado e cuja junção já havia sido determinada pelo tribunal arbitral, nada adiantando de verdadeiramente relevante para além do que já fora determinado, mais realçando que o que fora pedido era claro e não justificava quaisquer dúvidas por parte da SAD.

Após o que o tribunal a quo, dando execução ao que já havia decidido no aludido despacho de 10.5.2021, proferiu o despacho ora recorrido, no qual se limitou a fixar prazo para que a SAD apresentasse nos autos “os documentos indicados pelo requerente” (cfr. n.º 6 do Relatório supra).

Ora, do exposto resulta que o despacho ora recorrido se limitou a dar cumprimento ao que fora autorizado pelo tribunal arbitral, não ocorrendo nenhuma indevida substituição do tribunal arbitral na indicação da prova a ser produzida, prova essa que estava claramente identificada.

De resto, no acórdão da 6.ª secção da Relação de Lisboa, datado de 04.11.2021, a decisão de 10.5.2021 foi parcialmente confirmada, tendo sido excluídos do âmbito da ação tão só os pedidos de apresentação de informações e respetivos documentos de suporte (cfr. n.º 5 do factualismo provado). Ficou assim assente nos autos, com força de caso julgado, que a SAD estava obrigada à apresentação neste processo dos documentos solicitados pelo CLUBE, com exceção dos documentos de suporte das mencionadas informações. Isto é, ficou assente que a SAD não terá de prestar, neste processo, as informações peticionadas sob os n.ºs 2, 3, parte do n.º 7 e n.º 8. Isto porque nesse acórdão se considerou que a espécie processual utilizada pelo CLUBE (ação especial de apresentação de coisas ou documentos) não se coadunava com a obrigação de prestação de informações.

Permaneceram, pois, como objeto deste processo os seguintes documentos, mencionados nos n.ºs 1, 4, 5, 6 e parte do n.º 7 do despacho n.º 10 do Tribunal Arbitral (cfr. n.º 4 do factualismo dado como provado), a saber:

1.-Cópia dos mapas financeiros apresentados na Liga Portuguesa ..... ..... respeitantes aos jogos em casa da Autora com o B....., S..... e P..... nas épocas 2014/2015, 2015/2016, 2016/2017 e 2017/2018.

4.-Cópia de todos os contratos, qualquer que seja a sua natureza, que tenham sido celebrados com os atletas (…), mesmo aqueles que já não estejam em vigor, nomeadamente por terem sido modificados ou revogados.

5.-Cópia de todos os contratos, qualquer que seja a sua natureza, incluindo de transferência, agenciamento, comparticipação em negócio ou outro, que tenham sido celebrados com terceiros e que digam respeito aos atletas (…), incluindo (mas sem limitar) os que digam respeito aos respetivos direitos de formação desportiva, direitos económicos, direitos de imagem, mesmo aqueles que já não estejam em vigor, nomeadamente por terem sido modificados ou revogados.

6.-Cópia de todas as faturas, recibos ou quaisquer outros elementos contabilísticos integrados na contabilidade da Autora, emitidas pela Autora ou por terceiras entidades e que digam respeito às realidades referidas em 4. e 5., independentemente de existir contrato escrito.

7.-Cópia de todos os contratos, de todas as faturas, de todos os recibos respeitantes à utilização, pela Autora, do Complexo Desportivo ..... (relvado principal e adjacentes, bem como zonas técnicas ou outras) e do Estádio B..... (em S_____) durante as épocas 2017/2018 e 2018/2019."

[MTS]