"Constitui hoje jurisprudência firmada por este Supremo Tribunal, que no exercício dos poderes-deveres de reapreciação da decisão de facto impugnada, a Relação tem autonomia decisória, não se limitando à verificação da existência de erro notório por parte do tribunal a quo, mas implica uma reapreciação do julgado sobre os pontos impugnados, em termos de formação, por parte do tribunal de recurso, da sua própria convicção, em resultado do exame das provas produzidas e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir.
Decorre inequivocamente do preceituado no artigo 662º, nº 1, do CPC, que à Relação caberá, sob impulso da oficiosidade, reapreciar a decisão de facto advinda do tribunal a quo, sempre que no confronto da adequada aplicação das regras vinculativas do direito probatório material, se imponha a sua modificação.
Actuação ex officio que provém da regra geral da aplicação do direito, sem embargo da intervenção respeitar o objecto e efeito útil para o recurso interposto, e bem assim o eventual caso julgado parcelar.
Á luz desse enquadramento normativo, situamos, precisamente, o caso sub judicio, em que a Relação, suportada nos efeitos da prova plena por confissão da Ré no tocante à responsabilidade do condutor da viatura segurada pelo acidente, que considerou refletida na carta enviada ao Autor, concluiu estar afastada a pretendida discussão e prova sobre dinâmica factual do sinistro.
No âmbito daquela previsão legal, em que a Relação se limita a aplicar regras vinculativas extraídas do direito probatório material, designadamente quando o tribunal recorrido tenha desrespeitado a força plena de certo meio de prova, como refere Abrantes Geraldes , cabem, « (…) entre outros, quando tenha sido desatendida determinada declaração confessória, constante de documento ou resultante do processo (art. 358° do CC e arts. 454°, n° 1 e 463 do CPC)(…), optando por se atribuir prevalência à livre convicção formada a partir de elementos probatórios (v.g. testemunhas, documento particular sem valor confessório ou prova pericial).» [Quod abundantet, também não constitui motivo impeditivo o facto de o Autor que invocou a seu favor a confissão a Ré, não ter reclamado do despacho saneador que incluiu nos temas de prova matéria relativa às circunstâncias do acidente, visto que a decisão que viesse a ser proferida sobre a reclamação por excesso, apenas seria de impugnar com o recurso interposto da decisão final, atento o disposto no artigo 596º, nº 3, do Código de Processo Civil.]
O Tribunal da Relação não estava, pois, impedido de empreender oficiosamente a alteração da matéria de facto sob esse fundamento, agindo dentro dos limites das competências estabelecidas no artigo 662º, nº1 do CPC e, da economia e objecto da apelação da Ré. [Na sentença a motivação da convicção relativa à dinâmica do acidente não faz qualquer menção ao documento e ao seu conteúdo -cfr. pontos 1 a 13 dos factos provados- assentou sobretudo nos depoimentos das testemunhas.]
Mais do que isso, na situação em juízo, não se tratou de decisão surpresa ou excesso de pronúncia, como argumenta a recorrente .
É comummente aceite que a inibição da prolação de decisões-surpresa, sendo um princípio de actuação crítico para um processo justo, equitativo e igualitário, tem subjacente que os fundamentos usados pelo julgador não foram perspetivados pelas partes, e assumiram reflexo inovatório relevante no sentido da decisão .
Au contraire, no caso sub judicio, de acordo com o disposto no artigo 608º, nº2 do CPC, a Relação estava adstrita a apreciar o valor probatório da aludida declaração da Ré na constante da carta em apreço, apesar do tribunal a quo não lhe ter atribuído significado probatório. [---]
Olvida, por certo, a Ré que o Autor, à semelhança do alegado na petição inicial, reafirmou nas contra-alegações da apelação o propósito de beneficiar da confissão extrajudicial emergente da carta da Ré .
De outro lado, o Tribunal da Relação na perspectiva de poder vir a lançar mão da referida carta para decidir, deu às partes a oportunidade adversial de se pronunciarem sobre a matéria. [---]
Do que resulta, que desde o começo da instância que a invocada confissão da culpa do segurado na produção do acidente, constante da carta junta e confirmada a sua autoria, constituiu objecto de discussão nos respetivos articulados, e mereceu, aliás, extensa refutação pela Ré na contestação; as partes podiam então prever o desfecho e sentido decisório prosseguido pela Relação, enquanto uma das soluções jurídicas plausíveis, face ao direito aplicável. [In Manual de Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1985, pág. 537, nota 2.]
Em suma, a Relação ao conhecer do valor probatório da carta enquanto confissão extrajudicial de factos desfavoráveis à Ré, não incorreu em erro de julgamento, debruçando-se sobre matéria debatida nos articulados, não traduzindo apreciação de questão nova ou decisão surpresa, observado ainda o contraditório em sede recursiva.
Importa agora decidir se, tal como se concluiu no acórdão impugnado, a declaração da Ré constante da carta indicada, assumirá o valor probatório de confissão para os efeitos que se colocam em discussão, i.e, as circunstâncias factuais do sinistro.
Está em discussão a carta junta a fls. 18, cuja autoria reconhecida pela Ré foi vertida pela Relação no ponto 39º da matéria de facto provada- “ Por carta datada de ... .06.2020, dirigida ao autor, pela seguradora foi dito que…” concluímos que a responsabilidade pelo acidente de ... .04.2020 foi de quem conduzia o veículo que garantimos, por isso vamos pagar a reparação dos danos acusados no seu veículo…”.
Em facilidade de exposição, antecipamos, que se acompanha o acórdão recorrido, no sentido confessório da missiva endereçada ao Autor .
Do seu teor, à luz do sentido extraído pelo normal declaratário, comunicado o sinistro à Ré seguradora da viatura automóvel interveniente no embate que envolveu o velocípede conduzido pelo Autor, a Ré reconheceu a responsabilidade do seu segurado/condutor pelo acidente.
E, assumiu claramente o pagamento - regularização dos prejuízos advindos, o que concluiu e efetivou, após averiguação que por sua conta e para o efeito realizou, i.e, a Ré aceitou sem reserva ou condição a obrigação (contratual) de reparar os danos causados pelo condutor da viatura segurada ao lesado-Autor .
Neste contexto em concreto tal declaração, s.d.r., não pode deixar de valer como instrumento confessório extrajudicial de factualidade desfavorável, vertida em documento particular, dirigido à parte contrária, e à qual a lei atribui a força probatória plena.
Aproximando.
Nos termos do artigo 376º do Código Civil, o documento particular cuja autoria se encontre reconhecida faz prova plena “quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento” (n.º 1), implicando ainda que “os factos compreendidos na declaração se consideram provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante (...)” (n.º 2)).
E, de harmonia com o disposto no artigo 352° do Código Civil, a confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária, e como dispõe o artigo 355°, n° 1 do mesmo código, a confissão pode ser judicial ou extrajudicial.
Por outro lado, sabido que, na aceção comum do termo “responsabilidade “ pelo acidente rodoviário, [isso] equivale à actuação do - condutor /interveniente que lhe deu causa - enquanto sequência dos factos naturalísticos, dinâmicos e causais do evento, [pelo que] supomos ocioso contrariar o sentido de declaração confessória no domínio dos “factos” desfavoráveis ao confidente-declarante.
Outro sentido, s.d.r., na normalidade social, não pode retirar-se da comunicação da Ré, afirmando inequivocamente “ ..concluímos que a responsabilidade pelo acidente de ... .04.2020 foi de quem conduzia o veículo que garantimos, por isso vamos pagar a reparação dos danos acusados no seu veículo…”
Vem a contendo citar os ensinamentos de Antunes Varela / Miguel Bezerra / Sampaio e Nora a propósito do instituto da confissão - «A meio termo entre a confissão do facto e a confissão do pedido se situam aqueles casos em que a parte reconhece o direito ou a relação jurídica invocada pela contraparte contra ela.» [---]
Objeta ainda a recorrente que na sua contestação impugnou a declaração constante da carta, motivada por erro de avaliação inicial do acidente, matéria que não foi incluída nos temas de prova, sem reclamação do Autor, pelo que não podia a Relação considerar verificados os efeitos de prova da confissão.
Cuidamos que não logrou por tal via infirmar o valor confessório da missiva dirigida ao Autor.
Perante a irretratabilidade da confissão, para atingir a sua eficácia o confidente terá de demonstrar que, além do facto confessado não corresponder à realidade, o confitente errou acerca dele ou que foi vítima de outra causa de falta ou de vício da vontade.
Sucede que a Ré, na contestação, limitou-se a “contrariar” a confissão sem fundamento operante, alegando que errou na análise dos elementos do acidente, e que após a citação, veio a reavaliar, concluindo que afinal o Autor também contribuiu para o embate, ao entrar inopinadamente na faixa exterior da rotunda onde foi embatido pelo veículo segurado.
Entre outras vantagens de meios materiais e humanos, o segurador dispõe na normalidade de peritos/técnicos aprestados a indagar e avaliar das causas e dinâmica dos acidentes em fase litigiosa, estando de resto legal adstrita, a apresentar com brevidade uma proposta de resolução do diferendo ou, declinar a responsabilidade contratual .
Observe-se, que a Ré não alegou qualquer facto superveniente à comunicação dirigida ao Autor, como seja o conhecimento de outra circunstância do acidente, ou até a prestação de informações erradas pelo segurado, simplesmente “reavaliou” a situação factual sob o seu juízo e critério, que envolvia a culpa do Autor na produção do embate.
Vale isto para concluir que a declaração produzida pela Ré na carta constitui o reconhecimento da assunção da responsabilidade pela ocorrência do acidente em nome do seu segurado.
Declaração de factualidade desfavorável à posição da confidente, realizada com os requisitos exigidos para que a confissão tenha eficácia probatória plena, na fase do processo judicial que a opõe ao Autor, apta a alicerçar a convicção probatória quanto à dinâmica do acidente, e da culpa exclusiva do condutor do veículo segurado.
O Tribunal da Relação exerceu, pois, em regularidade, os poderes de modificabilidade da decisão de facto que lhe estão acometidos e, em observância das regras do direito probatório material convocadas, conforme o preceituado nos artigos 662°, nº 1, 674º, n.º 3, do CPC; mantém-se, pois, o consignado na decisão de facto.
Por último, perante o enquadramento jurídico operado, assente que as causas do acidente de viação são imputáveis, em exclusivo, ao condutor da viatura segurada na Ré, a reapreciação pela Relação da matéria de facto impugnada sobre a dinâmica do sinistro redundaria em actividade manifestamente inútil, ao arrepio dos princípios de economia e celeridade processuais."
[MTS]