"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



28/05/2024

Jurisprudência 2023 (179)


Petição inicial;
petição inepta; petição deficiente

1. O sumário de RG 19/10/2023 (112/23.2T8VRL.G1) é o seguinte: 

I - Uma petição diz-se inepta quando, pura e simplesmente, faltar o pedido e a causa de pedir, mas também quando esta ou aquele forem ininteligíveis, e é ininteligível quando não pode saber-se, nem depreender-se, qual o pedido ou a causa de pedir.

II - A petição inepta distingue-se da petição deficiente; neste caso, apesar do pedido e da causa de pedir serem compreensíveis, a petição apresenta-se incompleta, ou com imprecisões e insuficiências na exposição e concretização da matéria de facto.

III - Não se verificando a ineptidão, mas apresentando-se a petição deficiente deve ser proferido despacho pré-saneador convidando o autor a aperfeiçoar o seu articulado (cfr. artigo 590º n.º 2 e 4 do CPC).


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Inconformados com o despacho saneador proferido pelo Tribunal a quo, na parte em que julgou verificada a ineptidão da petição inicial, vieram os Recorrentes invocar em primeiro lugar que a dispensa da audiência prévia, sem mais, é suscetível de configurar uma omissão de formalidade legal, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 195º n.º 1 do CPC e violação do principio do contraditório e da cooperação.

Sustentam ainda que a petição inicial não é inepta, que o Tribunal a quo devia ter procedido ao aproveitamento do articulado dos Autores e proferido um despacho pré-saneador, convidando-os a aperfeiçoar o articulado apresentado, e que a decisão recorrida é nula nos termos das alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 615º do CPC.

São estas, por isso, as questões que se colocam no presente recurso e que importa apreciar e decidir.

Para o efeito, as incidências fáctico-processuais a considerar são as descritas no relatório e no despacho recorrido.

Relembramos o teor deste último, que transcrevemos na parte que aqui releva:

“(…) Sobre a exceção de ineptidão da p.i: art 186º, n.º 1 e n.º 2, al.a) do Cód de Proc Civil

Conforme referem os autores na sua réplica, os réus invocam a ineptidão da p.i com dois fundamentos distintos, a saber, uma contradição entre o pedido e a causa de pedir, bem como uma alegada ininteligibilidade do pedido. No tocante à ininteligibilidade, os réus consideram que a p.i é inepta pela omissão de elementos essenciais que levam à falta de causa de pedir, sendo o pedido nela inserto suportado por conclusões; com efeito, alegam não perceber em que prédio rústico dos autores ou propriedades como dizem, estes alegam ter danos, pois apenas se referem aos mesmos na globalidade, sem identificar em cada facto, o prédio rústico que alegadamente foi usurpado e destruído; no tocante à contradição, alegam existir contradição na p.i entre os pontos 10, 11, 12, 19 e 20, na medida em que ora dizem que a faixa de terreno é propriedade dos réus, ora dizem que é parte integrante do prédio dos autores. Concluem assim que a petição é inepta nos termos indicados.

Em sede de réplica, os autores consideram que da conjugação dos seus citados artigos 10.º a 12.º, resulta claro que os autores, quando se reportam à parcela de terreno propriedade dos RR. se referem àquela que é, efetivamente, titulada por estes, situada junto dos aludidos prédios rústicos titulados pelos autores e não à parcela de terreno dos autores ocupada pelos réus, como pretendem estes fazer crer, induzindo em erro o douto tribunal; mais alegam que numa leitura atenta da p.i que a identificação dos prédios é realizada, discriminando-se os artigos matriciais dos terrenos propriedade dos AA., juntando-se, ainda, aos autos as respetivas certidões prediais: terminam peticionando a improcedência da exceção alegada.

Isto posto:

A ineptidão da petição inicial consiste numa exceção dilatória geradora da nulidade de todo o processo (art. 186º, n.º 1 e art. 577º, al.b), ambos do Cód de Proc Civil).

O Código de Processo Civil considera que é inepta a petição quando (a) falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir; (b) o pedido estiver em contradição com a causa de pedir ou (c) se cumulem causas de pedir e pedidos substancialmente incompatíveis (art. 186º, n.º 1, al.b) do Cód de Proc Civil). [...]

In casu, o Tribunal considera que se verificam os vícios apontados, a contradição entre o pedido e a causa de pedir e a ininteligibilidade da causa de pedir.

Em primeiro lugar, na sua douta p.i, os autores alegam ser proprietários de dois imóveis inscritos na matriz sob os artigos ...55... e ...80º; posteriormente, alegam que os réus são praticaram diversos atos de ocupação de parte de ambos imóveis (pontos 13 a 17) e terminam peticionando a condenação dos mesmos a reconhecer que são donos e legítimos proprietários do imóvel descrito no artigo 1º da presente petição inicial e de que a parcela de terreno de que os réus se apoderaram, numa área aproximada de 300 m2 é parte integrante do prédio dos autores.

Ora, uma simples leitura da p.i revela que o ponto 1 da p.i não se refere a um mas a dois imóveis (inscritos na matriz sob os artigos ...55... e ...80º;), sendo que os autores peticionam a condenação dos réus no reconhecimento da propriedade de um, sem especificar qual; por outro lado, os autores ora alegam que os réus ocuparam parte de ambos os imóveis (cfr pontos 13 a 17, onde se referem sempre aos imóveis no plural), ora alegam que os réus ocuparam uma parte de um dos imóveis com a dimensão de 300m2 e pretendem a condenação dos réus na desocupação do mesmo e reposição no estado anterior à ocupação (mais uma vez sem especificar qual deles).

Conforme decorre do exposto no parágrafo anterior, os autores vão referindo-se alternadamente à ocupação de ambos os imóveis e à ocupação de um só imóvel, peticionando o reconhecimento do direito de propriedade sobre ele e a correspondente desocupação, sem nunca identificar o imóvel em concreto.

Daqui decorre que o pedido formulado pelos autores se encontra em contradição com a causa de pedir pois pede a desocupação de um dos prédios (sem especificar qual) e ao longo da sua exposição vai acusando os réus de terem ocupado dois prédios (art 186º, n.º 1 e n.º 2, al.b) do Cód de Proc Civil).

Em segundo lugar, entendemos que o pedido formulado pelos autores é ininteligível, pois peticiona o reconhecimento do direito de propriedade sobre um dos prédios, quando o artigo para que remete menciona dois (artigos 1255º e 1280º), o que gera o vício referido no art 186º, n.º 1 e n.º 2, al.a) do Cód de Proc Civil.

Note-se que em sede de réplica teve a oportunidade de especificar quais o imóvel em concreto que alegam ter sido ocupado, sem que o tenham feito, pelo que não se irá proceder a um novo convite ao aperfeiçoamento pois já tiverem a possibilidade de o fazer.

Termos em que consideramos nulo todo o processo, por inepetidão da p.i, com os fundamentos indicados (art 186º, n.º 1 e n.º 2, al.a) e b) do Cód de Proc Civil)”.

Vejamos então se assiste razão aos Recorrentes. [...]

***
3.2. Da ineptidão ou da prolação de despacho pré-saneador a convidar os Autores ao aperfeiçoamento da petição inicial

Sustentam por fim os Recorrentes que, apesar de se não verificar a ineptidão da petição inicial, a padecer a mesma de alguma desconformidade sempre poderia ser de alguma imprecisão, suscetível de sanação, pelo que deveria o Tribunal a quo ter procedido ao aproveitamento do articulado dos Autores, e, bem assim, proferido um despacho pré-saneador, convidando a aperfeiçoar o articulado apresentado.
Vejamos.

Dispõe o artigo 186º n.º 2 do CPC que:

“2 - Diz-se inepta a petição:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis”.

Por outro lado, se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial (n.º 3 do mesmo preceito).

Uma petição diz-se inepta quando, pura e simplesmente, faltar o pedido e a causa de pedir, mas também quando esta ou aquele forem ininteligíveis, correspondendo a ininteligibilidade à falta daqueles.

Como ensinava já o Prof. Alberto dos Reis (Comentário ao Código de Processo Civil, Volume 2º, Almedina, 1945, p. 359 e sgs.) uma petição é ininteligível quando não pode saber-se, nem depreender-se, qual o pedido ou a causa de pedir.

No que toca à causa de pedir, impõe-se que os factos essenciais sejam apresentados com clareza e concisão. A causa de pedir traduz-se no facto jurídico material, concreto, em que se baseia a pretensão deduzida em juízo (cfr. artigo 581º n.º 4 do CPC), consistindo a falta de causa de pedir na omissão dos factos essenciais que servem de fundamento ao efeito jurídico pretendido.

Quanto ao pedido a lei processual “impõe também que o pedido seja formulado de modo claro e inteligível, que seja preciso e determinado. Compreende-se perfeitamente esta exigência legal, na medida em que se torna indispensável para assegurar à contraparte o exercício do direito de defesa e colocar o autor a coberto de decisões judiciais que, porventura, tenham um alcance ou sentido diferentes dos pretendidos. Sendo um elemento fundamental para definir o objeto do processo, deve apresentar características que o tornem inteligível, idóneo e determinado, conforme Castro Mendes refere na sua obra Direito Processual Civil, vol. II, pág. 290. A petição inicial será pois inepta, quando por meio dela não puder descobrir-se que tipo de providência o autor se propõe obter ou qual o efeito jurídico que pretende conseguir por via da ação (…)” (Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, 1997, p. 105).

A autor deve expressar a sua vontade de forma a que a mesma possa ser facilmente apreendida por terceiros de modo a permitir a definição dos contornos do direito no caso concreto quando tiver de ser proferida a sentença; assim, será inepta uma petição que contenha um pedido vago e abstrato como quando o autor pretende proibir o réu de todo e qualquer ato ofensivo de interesses do autor, ou ainda quando pretende a condenação na entrega de um prédio rústico ou urbano, sem qualquer identificação, ou o reconhecimento da propriedade de uma parcela de terreno, sem indicar a sua área, sem delimitações ou outros elementos identificadores.

Da petição inepta deve, contudo, distinguir-se a petição deficiente; neste caso, apesar do pedido e da causa de pedir serem compreensíveis, a petição apresenta-se incompleta, ou com imprecisões e insuficiências na exposição e concretização da matéria de facto.

Assim, a petição inepta, nos termos referidos, não pode ser objeto de convite ao aperfeiçoamento; de facto, careceria de qualquer sentido determinar o aperfeiçoamento quando não existe de todo (falta) ou é ininteligível o pedido ou a causa de pedir.

Não se verificando a ineptidão, mas apresentando-se a petição deficiente, deve ser proferido despacho pré-saneador convidando o autor a aperfeiçoar o seu articulado (cfr. artigo 590º n.º 2 alínea b) do CPC).

“A mera insuficiência na densificação ou concretização adequada de algum aspeto ou vertente dos  factos essenciais em que se estriba  a pretensão deduzida (implicando que a petição, caracterizando, em termos minimamente satisfatórios, o núcleo factual essencial integrador da causa petendi, omite a densificação, ao nível tido por adequado à fisionomia do litígio, de algum aspeto caracterizador ou concretizador de tal factualidade essencial) não gera o vício de ineptidão, apenas podendo implicar a improcedência, no plano do mérito, se o A. não tiver aproveitado as oportunidade de que beneficia para fazer adquirir processualmente os factos substantivamente relevantes, complementares ou concretizadores dos alegados, que originariamente não curou de densificar em termos bastantes” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26/03/2015, Processo n.º 6500/07.4TBBRG.G2,S2, Relator Lopes do Rego, disponível em www.dgsi.pt).

Analisemos então o caso concreto. [...]

Da análise dos articulados (petição inicial e réplica) apresentados pelos Autores resulta alegado que são donos e legítimos proprietários de dois prédios rústicos, sitos no lugar de ..., freguesia ..., concelho ..., destinados à cultura de oliveiras e vinha, registados na competente Conservatória do Registo Predial ..., respetivamente, sob o artigo n.º ...80 e ...55, pedindo em primeiro ligar a condenação dos Réus no reconhecimento dos Autores enquanto donos e legítimos proprietários dos supraditos prédios rústicos.

Alegam ainda que desde o dia .../.../2021, os Réus por si e através de terceiros, sob a sua ordem e direção, têm vindo a cortar, arrancar e destruir árvores de fruto, nomeadamente 2 (dois) pessegueiros, 1 (uma) ameixoeira, 2 (duas) oliveiras, 2 (dois) marmeleiros, 1 (um) cipreste, 1 (uma) figueira e 16 (dezasseis) videiras, todas localizadas nos aludidos prédios rústicos; que entre os dias 26 e 28 de fevereiro de 2022, os Réus, por si e através de terceiros, sob a sua ordem e direção, invadiram os aludidos prédios rústicos e destruíram 6 (seis) manilhas de 40 cm, propriedade dos Autores, usando, para tanto, uma máquina/trator com a matrícula ..-XP-.. e que em março de 2022, invadiram novamente os aludidos prédios rústicos, principalmente o prédio identificado no artigo n.º ...0 e parte do prédio identificado no artigo n.º ...5, e iniciaram a remoção/deslocação de terras, recorrendo ao uso de maquinaria pesada e procederam à plantação de algumas oliveiras, atuando como se os aludidos prédios fossem sua propriedade e deslocaram e alteraram marcos divisórios, através da destruição e posterior reconstrução de muros e marcos divisórios das propriedades, usurpando vários m 2 de propriedade, mormente a área aproximada de 300 m.

E no artigo 55º do articulado de réplica reiteram que pretendem ver reconhecido o seu direito de propriedade sobre a faixa de terreno que os Réus invadiram, principalmente no prédio identificado com o artigo n.º ...0 e parte do prédio identificado com o artigo n.º ...5, mormente numa área aproximada de 300 m2.

Assim, e da leitura dos seus articulados conclui-se que os Autores, alegando serem proprietários de dois prédios, invocam a prática de atos pelos Réus violadores desse direito, designadamente a ocupação de uma parcela de terreno com cerca de 300 m2 que faz parte desses seus prédios. E pretendem a condenação dos Réus no reconhecimento desse seu direito de propriedade e na entrega da parcela aos Autores, repondo o estado em que esta se encontrava, retirando as plantações indevidamente cultivadas, abstendo-se de, no futuro, praticar atos que perturbem a posse e o direito de propriedade dos Autores.

É certo que no pedido de reconhecimento da parcela mencionam “referido prédio” em vez de “referidos prédios”, mas no contexto de toda a sua alegação facilmente se percebe, tal como os Recorrentes alegam, que tal se deve a um lapso de escrita, devendo ler-se no plural.

Da interpretação da petição inicial resulta, quanto a nós, que a alegação e a pretensão dos Autores são perfeitamente inteligíveis, não padecendo de contradição.

De referir que a apreciação de uma peça processual deve partir do pressuposto que a mesma terá que ser interpretada no sentido de apurar se a mesma permite a um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário (cfr. artigos 236° e 295º do Código Civil) compreender o que está em causa na relação material em litígio.

À interpretação dos articulados devem aplicar-se os princípios de interpretação das declarações negociais pelo que valem com o sentido que um declaratário normal deva retirar dos mesmos e tal interpretação deve ter presente a máxima da prevalência do fundo sobre a forma (neste sentido v. o Acórdão desta Relação de 31/10/2019, Processo n.º 4180/18.0T8BRG.G1,Relatora Margarida Almeida Fernandes, disponível em www.dgsi.pt).

De facto, o esforço interpretativo deve ser feito no sentido de procurar, dentro do possível, dirimir materialmente os conflitos que são colocados nos tribunais, tendo presente uma preocupação de prevalência do fundo sobre a forma de molde a procurar ir ao encontro do que é efetivamente pretendido pelas partes no processo, independentemente de eventuais incorreções formais.

Não subscrevemos, por isso, o entendimento do tribunal a quo da verificação de contradição entre o pedido e a causa de pedir e de ininteligibilidade da causa de pedir; como já referimos, a alegação e a pretensão dos Autores afiguram-se-nos perfeitamente inteligíveis, não podendo a menção a “referido prédio”, no contexto de toda a petição inicial, desencadear a invocada ineptidão da petição inicial.

Contudo, a petição inepta distingue-se da petição deficiente, aqui se abarcando os casos em que, apesar do pedido e da causa de pedir serem compreensíveis, a petição apresenta insuficiências na exposição e concretização da matéria de facto.

In casu, embora a causa de pedir e o pedido sejam compreensíveis, concluímos que a petição inicial apresenta insuficiências na matéria de facto respeitante à identificação da referida parcela com cerca de 300 m2, pois, embora seja referido pelos Autores que a mesma se situa nos dois prédios rústicos por si identificados, principalmente no prédio identificado com o artigo n.º ...0 e em parte do prédio identificado com o artigo n.º ...5, não concretizam a área ocupada em cada um dos referidos prédios e nem indicam as respetivas delimitações e/ou outros elementos identificadores.

Tais insuficiências, entendemos nós, podem ser supridas mediante o convite de aperfeiçoamento da petição inicial nos termos previstos no artigo 590º n.º 2 alínea b) e 4 do CPC, pelo que tem, nesta parte, de proceder o presente recurso, revogando-se a decisão recorrida e determinando-se a notificação dos Autores para querendo procederem ao aperfeiçoamento da petição inicial, apresentando no prazo de 15 dias articulado em que completem o inicial nos moldes acima referidos."

[MTS]